quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Carta -- Yuri Kestenberg

Na cozinha ela olhou para mim. Não sei porquê acompanhou-me até lá, fui pegar um pano qualquer para secar o chão que ela havia maculado, foi por compaixão ao nervosismo que explicava a minha hiperatividade, foi amizade a quem sempre vale prestar compania, foi dó do aio entristecido. Correndo à área de serviço, apressei-me em dizer:

- Não venha, por aqui o chão está molhado.

O que ela aceitou de bom grado, já me encontrava agachado. Com o pano na mão, debrucei-me sobre o tanque. Ela me dá ânsias, e lá consternei a própria face. Das duas uma: em um níquel de segundos desmascara-me, ou ao mesmo preço esvai o momento, deperdiça a moeda rogando um desejo sobre o meu ombro, e estatela-te no poço de líquida alma. Perturbações. Isso me dá ânsias.

Supondo a primeira hipótese e a transfigurando em opção, de lá olho pra baixo. Não tanto ao que se mire o ralo, o que seria muito desprezo, nem tão alto que mire a insolente bica, ao que pela cena já esvairia as forças.

- Sabes o que me deixa triste?

Ao passo que seu rosto branco revele uma comiserada surpresa, ela esperava que algo fosse dito, atiçava a vertigem do diálogo durante a curta estada branca cozinha, bem iluminada, uns restos de festa sobre a pia, uma certa distância com porta aberta.

- Dizes que é feia, quando não é, e afirmas ser burra sempre, sendo o extremo oposto. Desvalorizas-te por demais, vivendo ao lado do exemplo mór dum estouvado. Não aguento.

No que o leitor afirma piegas o rumo da história tomado, sinceramente, posso justificar-me. E que mesmo assim ria das minhas excusas diretas, excuso-me, e tento compreensão na própria folha, cuja gramatura serve de distância ao ridículo. Já acostumei ao ridículo, à real amizade da angústia, e o sobrolho sempre direcionou-se à desilusão, quando presente em calorosos beijos e abraços ao canto da sala, pode-se dizer até em rotina. Ordena o estômago de quem escreve para embrulho, que é o que real aconteceu.

A rebelião interna que levou às hemácias exigirem as primeiras palavras foi deveras algo incomum, ele não era dado a isso. Quieto, suportar a pancada sempre lhe conviu, um gemido quieto, pudicismo e ética fizeram escolher esse caminho durante a vida, e calejado todo já está. A pancada demora a doer. Dessa vez era demais.

- De todas as misérias – e aqui se emprega o feminino, que aparenta ser mais digno de misericórdia – essa é a única que me faz chorar. O meu pai me processar na Justiça, os meus irmãos passarem necessidade, à minha mãe faltar dinheiro, a magreza que me aflige, o futuro que mostra os dentes, os amigos que vão ao largo. Nada realmente me faz chorar, não menisca o límbico, a não ser você, e antes de tudo a tua desvalorização e a clara solidão à que você destranca a porta.

E ele chorou aquela noite.●


Yuri Kestenberg é graduando em Matemática Aplicada pela UFRJ

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