Fernando J.
Cardim de Carvalho é professor Emérito do Instituto de Economia da UFRJ, além
de ser um dos mais ilustres pós-Keynesianos do Brasil. Entre suas publicações
mais importantes vale citar Mr Keynes and
The Post Keynesians: Principles of Macroeconomics for a Monetary Production
Economy (1992), e Dívida Pública:
Propostas para Aumentar a Liquidez (2003), além de diversos artigos.
Como se
tornou impossível ignorar, desde 2007, quando a crise financeira se iniciou nos
Estados Unidos, e 2008, quando ela contagiou um grande número de países
(inclusive o Brasil), o mundo praticamente inteiro vive uma situação de crise
econômica e social profunda. O desemprego na União Europeia como um todo é
superior a 11% da população economicamente ativa (o que exclui aqueles
desempregados que já desistiram de procurar empregos, chamados de
“desencorajados”), mas chega a um quarto da PEA (população economicamente
ativa) em países como a Espanha. Jovens são particularmente punidos pela falta
de oportunidades de trabalho. Na Espanha, novamente, cerca de metade dos jovens
com idade suficiente para ingressar no mercado de trabalho não encontram
emprego. A emigração voltou a ser a saída para um grande número de jovens na
Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia e outros países europeus, como no final do
século XIX. Diferentemente daquela época, porém, esses países são abandonados
por jovens com formação universitária, cuja qualificação para o trabalho mais
produtivo um dia será amargamente lembrada com saudade e cobiça por sociedades
envelhecidas e empobrecidas, que com certeza lembrarão dos tempos em que a
parte mais promissora de sua juventude foi forçada a buscar construir sua vida
em outro lugar. Nos Estados Unidos a situação não é tão dramática, pelo menos
no momento, mas o desemprego também prossegue elevado, cerca de 9%, a economia
prossegue mantendo uma taxa de crescimento medíocre, e o horizonte continua
marcado por nuvens negras, em uma permanente ameaça de novas tempestades. Para
nós, no Brasil e em outros países ditos “emergentes”, a ilusão de que
estaríamos protegidos destes ventos solares, se desfez rapidamente no ano
passado, em que se aprendeu que é possível minimizar seus impactos (embora não
seja possível simplesmente anulá-los), mas apenas através da adoção de
políticas econômicas muito mais eficientes e nem planejadas do que o que se
praticava até então e cujo perfil mais exato ainda é objeto de busca.
Em meio a
tudo isso, pesquisadores e estudantes de ciências sociais (inclusive economia e
história) veem-se em uma posição peculiar, frente a uma oportunidade única, eu
não diria em cada geração, mas, na verdade, em pelo menos duas ou três
gerações. A crise atual já dura, se contada a partir do inicio de 2007, mais de
cinco anos, sem solução à vista. Praticamente ninguém aposta em uma recuperação
efetiva em menos de cinco anos, e muitos sugerem pelo menos dez anos antes que
as dificuldades possam ser dadas como superadas. Se a crise, por intervenção
divina (ou, como diríamos nós, pela intervenção de fatores exógenos) acabasse
hoje, por sua duração, alcance e intensidade ela já seria classificada como uma
depressão. Economias capitalistas
conhecem frequentes períodos de dificuldades. Na verdade, costumam ser tão
frequentes e sistemáticos, que um ramo importante da teoria econômica se dedica
há muitas décadas exatamente ao estudo dos chamados “ciclos econômicos”, isto é,
o fenômeno da repetição periódica de períodos de expansão e contração, chamados
de prosperidade e recessão. Usando uma expressão que costumava ouvir de minha
bisavó, a teoria dos ciclos nada mais é do que uma versão formalizada do princípio
de que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Períodos de
prosperidade sempre serão inevitavelmente sucedidos por recessões (ainda que
perceber a sucessão de fases seja mais fácil do que conseguir descobrir uma
razão sólida para isso).
Não é disso
que se fala quando se fala de uma depressão. Depressões são situações em que a
contração é tão forte e profunda que a repetição de fases é interrompida,
sabe-se lá por quanto tempo. Uma depressão não é apenas uma recessão
especialmente dura, mas uma situação em que os mecanismos normais de
recuperação da economia são danificados em tal extensão que essa recuperação só
poderá ser conseguida pela intervenção de algum fator exógeno (novamente,
talvez alguma divindade, mas mais provavelmente o Estado mesmo).
É consenso
entre analistas que o mais próximo da situação que conhecemos pode ser
encontrado na Grande Depressão da década de 1930. Naquela década, a crise
iniciada com o colapso do sistema bancário norte-americano entre 1931 e 1933
levou a economia daquele país, e o resto do mundo, a uma situação da qual só se
conseguiu sair com o início da Segunda Guerra Mundial, que, do ponto de vista
econômico, nada mais foi do que um período de enorme crescimento de gastos
públicos, redinamizando as economias envolvidas.
Observar o
desenrolar de uma crise como a atual é um privilegio dos estudantes e
pesquisadores de ciências sociais. Mal comparando (ou talvez bem comparando), é
como ser um epidemiologista nos tempos da Peste Negra. Pode-se observar “ao
vivo” e em “tempo real”, como esses processos se desenrolam, como o colapso
financeiro americano de 2007/2008 se transmutou na crise da dívida pública na
Europa, na reorientação do crescimento chinês para o mercado interno, na busca
de novas estratégias de crescimento no Brasil. Mas a oportunidade não existe
apenas para economistas. Observar a polarização política nos Estados Unidos ou,
um fenômeno ainda mais significativo, a desintegração de sociedades como a
grega, ou a emergência de partidos políticos de extrema-direita em praticamente
toda a Europa, as ameaças a própria existência da União Europeia, o desenrolar
das tensões políticas na China, fenômenos que se não resultam da crise são
fortemente influenciados por ela, é um desafio para estudantes de ciência
política, sociologia, história. Até mesmo a geografia mais tradicional está sendo
desafiada pelas iniciativas gregas, por exemplo, de vender parte de seu
território (especialmente suas cobiçadas ilhas) para pagar o que lhes é imposto pelos credores europeus.
A grande
depressão dos anos 2010 representa, portanto, uma grande oportunidade de estudo
para cientistas sociais de todas as áreas. Não é razão para euforia, é claro,
porque se trata de um período de intenso sofrimento para um número astronômico
de pessoas em todo o mundo. Mas vale sempre a pena lembrar que do estudo gerado
pela grande depressão dos anos 1930 emergiram políticas que garantiram o maior
período de prosperidade conhecido na história do capitalismo, no pós-Segunda Guerra.
É importante não apenas torcer para que desta crise possamos sair com um
conhecimento de processos e de instrumentos de intervenção igualmente
eficientes. É preciso investir esforços e pesquisas para que isto ocorra. ●
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