Luiz Eduardo Soares é professor de antropologia e
ciência política na UERJ. Foi Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio
de Janeiro (1999-2000) e Secretário Nacional de Segurança Pública (2003). É
co-autor de Elite da Tropa (2006) e Cabeça de Porco (2005) e autor de Meu Casaco de General(2000), e Legalidade Libertária (2006), entre
outros títulos.
a Vicente Guindani
O novo presidente do Senado chama-se Renan
Calheiros. Se você, calouro, jovem estudante da UFF, não se lembra desse nome,
um gole no Google refrescará sua memória. Mas não é disso que pretendo tratar.
Quero refletir sobre o que ele disse, em seu pronunciamento histórico: “A ética
não é fim, é meio.”
Pois eu digo: é o fim.
Segundo Renan, o fim é o desenvolvimento do país.
Em outras palavras: pode-se alcançar a finalidade desejada (aqui, para efeito
do argumento, não importa qual ela deveria ser; posso deixar ao senador a
escolha) por meio ético ou anti-ético (como observou Vicente Guindani, em sua
página no Facebook). Portanto, o fim visado independe do meio empregado para
atingi-lo. Seu valor independe do meio adotado. Seu conteúdo é autônomo,
relativamente ao juízo ético. Ou talvez o senador preferisse afirmar que o fim
contém, sim, valor e mereceria avaliação sobre sua qualidade ética, mas tal
qualidade não guardaria relação com o meio mobilizado para construi-lo. Ou
seja: a melhor sociedade possível, segundo qualquer critério, poderia
perfeitamente ser fruto de uma carnificina. O genocídio não macularia a pureza
de sua arquitetura sublime.
Já se viu aonde nos leva a teoria Calheiros
sobre a dissociação entre meios e fins: não haveria nenhum problema com a
corrupção, desde que os fins fossem elevados. Tampouco seriam questionáveis
práticas ostensivamente anti-éticas, mesmo as truculentas, desde que se
pusessem a serviço de finalidades nobres. Foi essa a tese postulada pelo
General Ernesto Geisel, penúltimo ditador do regime militar inaugurado com o
golpe de 1964, em seu depoimento ao CPDOC, da FGV, quando lhe perguntaram sobre
a tortura: em certas situações, é necessária, é defensável, admitiu o déspota
ancião. Pelo menos ele teve a hombridade de confessar o que pensava e o que
fez, ou mandou fazer, aos presos políticos. Outros líderes da ditadura foram
pusilânimes e hipócritas. Essa virtude, entretanto, não torna seus crimes menos
graves.
E o que dizem aqueles policiais que continuam
torturando, depois do fim da ditadura? Afirmam o mesmo: se o fim é nobre, o
mais torpe dos meios justifica-se. É a teoria Bush, aplicada em Guantânamo e
nas masmorras que a CIA mantém mundo afora. O discurso não muda: para salvar a
vida de uma criança sequestrada no Rio de Janeiro; para livrar o Brasil dos
riscos de ver-se tragado pelo abismo comunista; para salvar a civilização
ocidental ameaçada por atos de terror nuclear: tortura-se o suspeito. Foi
também o que fizeram –e com a mesma racionalização-- os soldados de De Gaulle
na Argélia, os operadores de Fidel em Cuba, os fascínoras de Pinochet no Chile
e os açougueiros do partido comunista na Coréia do Norte. Como foi a praxe
entre nazistas, stalinistas e os tiranos de todos os tempos.
A teoria Calheiros não é apenas
inconsistente, filosoficamente. Ela é parte de uma linhagem histórica cujo
rastro de sangue mal se oculta sob a retórica ornamental. Nesse campo, caminham
de mãos dadas a corrupção patrocinada pelas melhores intenções socialistas; os
golpes de mesa no movimento estudantil, tramados pela sagacidade dos militantes
sectários; os dossiês forjados pela esperteza dos políticos progressistas; e o
pau de arara dos verdugos da direita mais selvagem.
Nos livros sagrados da esquerda dogmática,
direitos humanos e ética humanista não passam de categorias decadentes do
vocabulário pequeno-burguês. Nas Bíblias da direita, essas categorias são meros
artifícios românticos e idealistas para defender bandidos ou para enfraquecer a
defesa da lei e da ordem. Rejeito ambas as visões, e as considero cínicas e
manipuladoras. De meu ponto de vista, o postulado kantiano permanece
insuperável: a dignidade do ser humano constitui um fim em si mesmo e não pode
ser reduzida a instrumento ou meio para quaisquer fins, mesmo que sejam os mais
elevados. Quando aceitamos a menor concessão nessa matéria, sacrificamos,
irremediavelmente, as ideologias mais generosas, as mais belas utopias e a
própria razão da esperança na política. Torturas e violações dos direitos
humanos são intoleráveis, estejam a serviço de poderes à direita ou à esquerda.
Até porque poderes que torturam merecem uma única qualificação: impostura. Por
outro lado, os fins carregam consigo as virtudes ou os horrores dos meios
empregados para alcançá-los. São os meios que sopram no oco do fim edificado
sua alma.●
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