sábado, 16 de novembro de 2013

Luiz Eduardo Soares: É o fim

Luiz Eduardo Soares é professor de antropologia e ciência política na UERJ. Foi Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (1999-2000) e Secretário Nacional de Segurança Pública (2003). É co-autor de Elite da Tropa (2006) e Cabeça de Porco (2005) e autor de Meu Casaco de General(2000), e Legalidade Libertária (2006), entre outros títulos. 






a Vicente Guindani

O novo presidente do Senado chama-se Renan Calheiros. Se você, calouro, jovem estudante da UFF, não se lembra desse nome, um gole no Google refrescará sua memória. Mas não é disso que pretendo tratar. Quero refletir sobre o que ele disse, em seu pronunciamento histórico: “A ética não é fim, é meio.”

Pois eu digo: é o fim.

Segundo Renan, o fim é o desenvolvimento do país. Em outras palavras: pode-se alcançar a finalidade desejada (aqui, para efeito do argumento, não importa qual ela deveria ser; posso deixar ao senador a escolha) por meio ético ou anti-ético (como observou Vicente Guindani, em sua página no Facebook). Portanto, o fim visado independe do meio empregado para atingi-lo. Seu valor independe do meio adotado. Seu conteúdo é autônomo, relativamente ao juízo ético. Ou talvez o senador preferisse afirmar que o fim contém, sim, valor e mereceria avaliação sobre sua qualidade ética, mas tal qualidade não guardaria relação com o meio mobilizado para construi-lo. Ou seja: a melhor sociedade possível, segundo qualquer critério, poderia perfeitamente ser fruto de uma carnificina. O genocídio não macularia a pureza de sua arquitetura sublime.

Já se viu aonde nos leva a teoria Calheiros sobre a dissociação entre meios e fins: não haveria nenhum problema com a corrupção, desde que os fins fossem elevados. Tampouco seriam questionáveis práticas ostensivamente anti-éticas, mesmo as truculentas, desde que se pusessem a serviço de finalidades nobres. Foi essa a tese postulada pelo General Ernesto Geisel, penúltimo ditador do regime militar inaugurado com o golpe de 1964, em seu depoimento ao CPDOC, da FGV, quando lhe perguntaram sobre a tortura: em certas situações, é necessária, é defensável, admitiu o déspota ancião. Pelo menos ele teve a hombridade de confessar o que pensava e o que fez, ou mandou fazer, aos presos políticos. Outros líderes da ditadura foram pusilânimes e hipócritas. Essa virtude, entretanto, não torna seus crimes menos graves.

E o que dizem aqueles policiais que continuam torturando, depois do fim da ditadura? Afirmam o mesmo: se o fim é nobre, o mais torpe dos meios justifica-se. É a teoria Bush, aplicada em Guantânamo e nas masmorras que a CIA mantém mundo afora. O discurso não muda: para salvar a vida de uma criança sequestrada no Rio de Janeiro; para livrar o Brasil dos riscos de ver-se tragado pelo abismo comunista; para salvar a civilização ocidental ameaçada por atos de terror nuclear: tortura-se o suspeito. Foi também o que fizeram –e com a mesma racionalização-- os soldados de De Gaulle na Argélia, os operadores de Fidel em Cuba, os fascínoras de Pinochet no Chile e os açougueiros do partido comunista na Coréia do Norte. Como foi a praxe entre nazistas, stalinistas e os tiranos de todos os tempos.

A teoria Calheiros não é apenas inconsistente, filosoficamente. Ela é parte de uma linhagem histórica cujo rastro de sangue mal se oculta sob a retórica ornamental. Nesse campo, caminham de mãos dadas a corrupção patrocinada pelas melhores intenções socialistas; os golpes de mesa no movimento estudantil, tramados pela sagacidade dos militantes sectários; os dossiês forjados pela esperteza dos políticos progressistas; e o pau de arara dos verdugos da direita mais selvagem.


Nos livros sagrados da esquerda dogmática, direitos humanos e ética humanista não passam de categorias decadentes do vocabulário pequeno-burguês. Nas Bíblias da direita, essas categorias são meros artifícios românticos e idealistas para defender bandidos ou para enfraquecer a defesa da lei e da ordem. Rejeito ambas as visões, e as considero cínicas e manipuladoras. De meu ponto de vista, o postulado kantiano permanece insuperável: a dignidade do ser humano constitui um fim em si mesmo e não pode ser reduzida a instrumento ou meio para quaisquer fins, mesmo que sejam os mais elevados. Quando aceitamos a menor concessão nessa matéria, sacrificamos, irremediavelmente, as ideologias mais generosas, as mais belas utopias e a própria razão da esperança na política. Torturas e violações dos direitos humanos são intoleráveis, estejam a serviço de poderes à direita ou à esquerda. Até porque poderes que torturam merecem uma única qualificação: impostura. Por outro lado, os fins carregam consigo as virtudes ou os horrores dos meios empregados para alcançá-los. São os meios que sopram no oco do fim edificado sua alma.

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