Victor Tiribás é mestrando em Ciência Política pela UFF.
Foi-se o tempo em que a biblioteca da UFF, no Gragoatá, era mágica. Não estou falando, é claro, caro leitor, dos incidentes deploráveis de livros voadores que outrora assolaram nosso acervo. Para os que há pouco chegaram, explico melhor: diferentemente dos Flying Books de Mr. Morris Lessmore (personagem bibliófilo que teve sua casa devastada por um tornado e, a despeito da perda de seu mundo, transfigurado literalmente em cinza, encontra uma biblioteca encantada), tais livros não eram animados e o feito não era digno de ganhar um Oscar; muito pelo contrário, as reflexões minuciosamente pensadas frase a frase, grafadas nas tipografias em sutis páginas de papel com tênue tinta foram aviltadas ao serem arremessadas das janelas por autointitulados “alunos” de nossa Universidade.
Inúmeros vendidos a preço de café, alguns parcos recuperados. Eis nosso saldo: perda de livros, mas, sobretudo, retrocesso nos avanços feitos pela Comissão de Biblioteca. Criada em 1996 por iniciativa da Pós-Graduação de História – embora a política pró-ativa venha desde 1993 em cooperação com a pós-graduação de Antropologia e Ciência Política, à época juntas –, angariou fundos junto a CAPES e adquiriu entre 1993 e 2007 cerca de 10.000 títulos. Pode parecer pouco para uma biblioteca que têm de abrigar os cursos de Letras, História, Ciências Sociais, Psicologia, Filosofia, dentre outros. Contudo, vale a ressalva aos desavisados: a UFF não colocou um centavo sequer no empreendimento.
Comprar livros, roubar livros, comprá-los novamente. Teríamos diante de nós um mito de Sísifo (o mais astuto dos mortais que teve como fardo, por tentar enganar os deuses gregos, carregar montanha acima uma pedra colossal que ao atingir o cume tornava a descer impelida por uma força avassaladora, sendo necessário refazer todo o processo, dia após dia – caracterizando alegoricamente o absurdo da vida e o eterno retorno)? Ao que parece, não. Felizmente o problema foi sanado e os ímpios cidadãos – se é que o termo merece ter como fardo carregar esses inescrupulosos detratores –, expugnados da universidade. Entre 2006 e 2011 a Comissão de Biblioteca, frente a uma nova gestão, renovou fôlego. Liderada por Gizlene Neder, a comissão neste ínterim estreitou laços com as bibliotecárias, instalou câmeras de segurança, montou um laboratório de informática para os estudantes, adquiriu itens para higienização de livros e digitalização das teses, assinou as coleções de duas bibliotecas digitais (E-brary e Coleções Arts & Sciences II e IV-VIII JSTOR) além, é claro, de conquistar recursos para obtenção de material bibliográfico – algo em torno de um milhão de reais.
Outro problema de longa data gravíssimo solucionado pela gestão foi a manutenção do sistema de refrigeração da biblioteca. George Orwell certa vez disse que o primeiro efeito da fome – e do calor excessivo, acrescento – é que ele mata o pensamento. Ademais, o tempo, intrépido, que a tudo oxida, danificava com mais facilidade os livros expostos nas prateleiras, justamente pela falta de condições climáticas adequadas.
Aos estudantes sensatos, creio que reconhecerão o hercúleo esforço de alguns professores para melhorar nossa qualidade de estudo. Aos estudantes profissionais, integrantes de Partidos, seja lá qual for o sufixo de seu P, que enchem as Assembleias de demagogia, trato apenas de esclarecer que este texto não é uma apologia aos responsáveis pela biblioteca. Claro que há muito que melhorar. O sistema de busca – Argonauta – é problemático, fazendo com que tenhamos de recorrer constantemente a fichas manuais; há uma lentidão burocrática tanto para compra de livros quanto para incorporação de novas medidas; inúmeros professores insistem em adquirir material bibliográfico com dinheiro público e disponibilizá-lo apenas para os integrantes de seus Centros/Núcleos de estudo, pois guardados em salas de uso restrito; nossa biblioteca não está preparada para receber doações de tamanho significativo, provenientes de acervos particulares; livros essenciais, ou seja, a bibliografia básica de certos cursos, não constam no acervo.
Creio, porém, que não obstante o descaso de certos professores e funcionários da instituição com a própria Biblioteca Central do Gragoatá, o pior descaso possível é o nosso, dos alunos. Muitos pensam “esse livro da biblioteca não é meu”. Este equívoco dá ensejo para os mais sórdidos tratamentos com a res publica: livros rabiscados, páginas arrancadas, capas molhadas etc. Que o livro não é propriamente seu soa evidente; o que diversos alunos parecem ter esquecido – ou pior, quiçá terem aprendido – é o complemento da frase: “esse livro não é meu, é nosso” – cuidado redobrado. Outros tantos, para angústia de estudantes comprometidos, desrespeitam sem pudor ou culpa a cláusula pétrea de qualquer biblioteca: o silêncio.
Ali talvez seja um de nossos momentos mais intimistas: revisitar o passado, inventar o futuro, criar dúvidas mais do que solucioná-las, nos deleitarmos com a estética d’uma boa escrita... Façamos dos cafés, assembleias e salas nossa pólis, nosso ambiente de discussão, não a biblioteca. Para ter uma consciência do bem público, seus benefícios e deveres, é preciso frequentá-lo, habituar-se a habitá-lo. Essa mesma reflexão acerca do bem público certamente nos levará à ação em prol de suas melhorias.
Esse breve artigo têm como propósito apenas lançar luz sobre o problema. De pouco adianta um debate por uma Universidade mais inclusiva, sem que se trate da questão de biblioteca. O custo semestral de textos em xerox é exorbitante, sobretudo para alunos de baixa renda – o que muitas vezes dificulta seu acesso aos estudos. Portanto, além da preservação do acervo, devemos cobrar sua periódica modernização. Para além da questão financeira, a xerox detém outro agravante, desta vez intelectual: impossibilita muitas vezes que tenhamos acesso ao livro como um todo – índice remissivo para saber outros tópicos cuja obra contempla, a possibilidade de analisar a bibliografia utilizada pelo autor, o próprio contato físico com o livro e a experiência de procurá-lo, que muitas vezes nos propicia descobrir novos autores na mesma seção.
Em suma, é imprescindível a assídua frequentação da biblioteca a fim de criarmos uma identificação com a instituição. Aliar melhorias tecnológicas e um crescente respeito para com a coisa pública é essencial para o bom desenvolvimento intelectual e democratização de nossa Universidade. Do contrário, cairemos no eterno mito de Sísifo e a biblioteca do Gragoatá perderá novamente seus magos e alquimistas, inventores de mundos sociais possíveis.
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