quarta-feira, 30 de abril de 2014

Big Brother carioca: centros de controle e monitoramento de geografia bruta - Rogério Haesbaert

Rogério Haesbaert é professor do departamento de Geografia da UFF. É um dos expoentes da geografia humana brasileira, com importantes contribuições no campo das “territorialidades”, tendo sido aluno de Milton Santos. Entre os livros que publicou, destacamos China: entre o Oriente e o Ocidente (1994) e A Nova Desordem Mundial (2006), com Carlos Porto-Gonçalves.



Visitar um hub de controle como o “Centro de Operações Rio” (COR), da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e deparar-se com a sofisticação tecnológica e a enorme quantidade de dados trabalhados através de informações georreferenciadas é como realizar uma viagem no futuro, num enorme contraste com a precarização do espaço (e dos serviços) que se estende por amplas áreas da cidade. Assim, a pergunta que se impõe é: em função de que presente é que esse “futuro” toma forma? Faremos aqui algumas reflexões gerais inspiradas pelo impacto de uma visita ao COR.

Logo no folder de apresentação que encontramos na entrada, o COR (novo core da cidade) é apresentado como uma “espécie de Quartel-General da Prefeitura”, “projeto pioneiro na América Latina” e “primeiro centro do mundo a integrar todas as etapas de gerenciamento de crise”. Construído com esse objetivo explícito de “gerenciar crises”, o COR também lembra, em escala menos dramática, o “capitalismo (produtor e gerenciador) de crises” – ou de desastres, como prefere Naomi Klein. Esta autora, pautada na crítica ao projeto neoliberal de Milton Friedman, utiliza o termo “capitalismo de desastre” para caracterizar um capitalismo marcado pelas “doutrinas de choque” que, a partir de eventos críticos ou catastróficos, trata os desastres como “estimulantes oportunidades de mercado”. 

Esse capitalismo de desastre ou da administração de tragédias vem acompanhado da implantação (e legitimação, especialmente pelo discurso do medo) de regimes de emergência ou de exceção, tanto em nome do combate a crises mais explicitamente biopolíticas (como aquelas ligadas a catástrofes ambientais, como a das inundações que afetaram o Rio de Janeiro em janeiro de 2011, logo após a inauguração do COR) quanto no combate a crises econômicas (que, afirma-se, ocorrerão a partir de agora em intervalos menores e com maior frequência).

Pedro Almeida, diretor de Smarter Cities (Cidades Inteligentes) da empresa IBM, parceira no projeto do COR, quando de uma entrevista à emissora Globo News, afirmou que se trata do centro de controle (ou “de operações” – como numa estratégia de guerra) mais avançado do mundo. Segundo o jornal New York Times, em reportagem de março de 2012, “o que está acontecendo aqui reflete experimento ousado e potencialmente lucrativo que pode moldar o futuro de cidades em todo lugar do mundo”. É o Rio de Janeiro de Eduardo Paes no mapa “lucrativo” da globalização, com sua imagem muito mais vendável e, assim, inserida no circuito (para o município, provavelmente não exatamente lucrativo, mas dispendioso) dos megaeventos.

No folder aparecem em destaque duas salas, a “de controle” e a “de crise”. Percebemos logo como a palavra “crise” virou lugar comum, companhia cotidiana, nem estranhamos mais viver em crise – como diria Milton Santos, a crise agora identifica o próprio período, não a transição de um para outro. Nem mesmo os governantes precisam mais escondê-la, pois grande parte de seu discurso é por ela construído e legitimado.

Uma das principais funções do Centro é a prevenção de tragédias como as que frequentemente afetam o Rio de Janeiro através das inundações. Mas o grande desastre de janeiro de 2011, obviamente, não estava previsto quando da construção do centro. O que estava amplamente previsto, isto sim, era a situação “crítica” ou “excepcional” da cidade a partir da sua transformação em cidade de megaeventos – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – num espaço reconhecidamente marcado por criminalidade e violência.

A “sala de crise”, a primeira que visitamos, está conectada diretamente, através de um “sistema de telepresença de última geração” com a residência do prefeito (ou onde ele estiver pelo mundo), com a sede da Defesa Civil do município e mesmo com o palácio de governo estadual (“com respostas imediatas em situações de emergência”, segundo o folder). A sofisticação tecnológica envolve o monitoramento da cidade através de mais de 600 câmeras (eram 150 no início de 2011 e, com instalação já iniciada, haverá uma em frente a cada um dos 10 mil coletivos urbanos) posicionadas estrategicamente junto às principais vias de circulação, nas mais diferentes áreas do município. No total são mais de 70 camadas de informação georreferenciada acessíveis numa sala de controle com “o maior telão da América Latina” (doado pela Samsung), composto por 80 monitores, e onde se revezam diariamente cerca de 400 profissionais de mais de 30 diferentes órgãos e concessionárias que servem ao município. 

O COR é, assim, um enorme condensador de “geografia bruta” – sem mapa, sem georreferenciamento, o sistema de “cuidado” (leia-se, sobretudo: monitoramento, vigilância, controle) alegado numa declaração do prefeito, não existe. Trata-se do espaço em seu sentido absoluto, referencial universal abstrato, da geografia em seu sentido mais elementar: a geografia do mapa clássico, porém tecnologicamente sofisticado, que se mostra aqui em toda a sua magnitude cartográfico-quantitativa.

Reúne-se num único núcleo dezenas de informações diferentes e recombináveis que vão desde a localização em tempo real de cada caminhão de coleta de lixo até a situação da distribuição de gás e de eletricidade, a todo momento, em qualquer ponto da cidade. A relevância dessa visão social integrada sobre múltiplas dimensões do espaço, envolvendo os mais diversos órgãos, secretarias e concessionárias que servem ao município é indiscutível, pois lembra um papel elementar (e fundamental), mas tantas vezes menosprezado pelo Estado: o planejamento integrado de seu território. Na verdade, se o acionamento desse aparato integrado não fosse feito basicamente em função da vigilância ou do “gerenciamento de crises” mas, antes, em prol de ações também integradas de transformação efetiva dos espaços sociais mais precarizados, aí sim ele teria um grande papel.

Sabemos, porém, que além dessas situações emergenciais identificadas pelo próprio Centro, ele é estratégico e se tornou praticamente uma exigência internacional para o monitoramento e a vigilância capazes de prevenir problemas durante os momentos também “excepcionais” da realização dos megaeventos. Vincula-se, portanto, também, à política “excepcional” (de exceção) dos grandes eventos e adquire o caráter de modelo (e publicidade) dessa nova logística de segurança. 

Além de compor o marketing da “nova cidade olímpica” e associar-se de forma lapidar às exigências de segurança global impostas para sua realização (não é à toa que a grande corporação IBM é sua principal mentora), o papel publicitário e/ou imagético (em todos os sentidos) do Centro é primordial. É assim que uma sala privilegiada é reservada à imprensa, com vista para a sala de controle e seu imenso telão, e que uma das fontes alimentadoras de imagens do COR são os próprios sobrevoos da cidade realizados pelas redes de televisão (basicamente Globo e Record) – que, por sua vez, fazem do COR um núcleo-base para suas informações e até como locação e cenário para emissão de seus noticiários. 

A cidade informatizada e supermonitorada do futuro se delineia hoje no COR do Rio de Janeiro. Uma repórter do New York Times chegou a comparar a sala de controle com uma sala de monitoramento espacial, a da NASA (e foi realmente a sensação que tive – porém comparada com o centro de controle de missões espaciais da Rússia, em Moscou, que visitei durante um congresso de Geografia nos anos 1990). Fala-se que até o uniformes dos funcionários teriam sido inspirados nos do organismo norte-americano. 

Do macro ao microespaço, o máximo de controle geográfico possível – no caso do município do Rio de Janeiro, o ambiente do COR surge como uma espécie de espaço esquizofrênico diante não só de periferias que estão entre as mais precarizadas e negligenciadas do planeta, mas também pelo despreparo físico e humano nos procedimentos “in loco” que materializam essas ações de “cuidado da população” (numa expressão que alia termos utilizados pelo prefeito à biopolítica foucaultiana). Nesse sentido, talvez o termo “quartel-general” utilizado no folder de apresentação seja realmente apropriado. Os interesses em jogo, para quem ele se torna relevante e para o que prioritariamente serve, eis a questão a ser constantemente recolocada sobre esses centros de controle, protótipos de nossas altamente vigiadas megalópoles do futuro.

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