Marcos Nobre é professor do departamento de Filosofia da UNICAMP, e um eminente filósofo brasileiro. É também membro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Publicou diversos livros – entre eles são dignos de nota Habermas e a Reconstrução (2012) e Curso Livre de Teoria Crítica (2008). Seus trabalhos mais recentes tentam entender as consequências políticas das manifestações do ano passado.
É cada vez mais comum ouvir a afirmação do título acima. Às
vezes, em versões mais suaves, o que se diz é que houve uma espécie de “deu!”
geral, uma espécie de irrupção vulcânica social. Mas que agora tudo teria
voltado ao “normal” da política depois dessa espécie de catarse coletiva.
O pressuposto da afirmação é que só “acontece” de fato
alguma coisa quando há alguma mudança institucional radical: um golpe, uma nova
forma de Estado, uma nova Constituição, uma revolução, uma derrubada das
instituições existentes. Mais que isso, esse “acontecimento” tem de ser rápido,
imediato. Algo como a revogação do aumento das tarifas de transporte, ainda em
Junho de 2013, só que em versão ampliada.
E, no entanto, grande parte das transformações profundas das
sociedades não “acontece” assim. “Acontece” ao longo de décadas. Assim foi, por
exemplo, a redemocratização, a partir da década de 1980. E assim será – é a
tendência para a qual apontam as análises que proponho, pelo menos – com Junho
de 2013.
Dizer isso não é exercício de futurologia ou adivinhação. Segundo
a tradição intelectual a que me filio, iniciada por Marx e conhecida pelo nome
de Teoria Crítica, o sentido profundo de conhecer é o de transformar a
sociedade no sentido de liberta-la da dominação. Isso exige fazer diagnósticos
o mais precisos possíveis do momento presente, identificando no momento que
vivemos quais são as tendências de desenvolvimento, as potencialidades para a
transformação e quais os elementos que se põem como obstáculos a essa
emancipação.
É assim que a orientação para a emancipação ilumina os
potenciais e os bloqueios à ação transformadora, é assim que a teoria
identifica possíveis pontos de apoio para a prática emancipatória. Dizer que as
Revoltas de Junho representam uma ruptura, que representam o fim da
(longuíssima) redemocratização e o início da democratização, o início de um
ciclo de aprofundamento da democracia – e é isso o que digo –, significa
identificar esse momento como chave para marcar uma tendência.
Pretendo enfrentar o desafio posto pelo título deste texto
em duas etapas. Primeiro, comparando as Revoltas de Junho com outra “irrupção”
social marcante do século XX, o maio de 1968. Espero com isso mostrar que
grandes mudanças não começam somente com eventos que têm consequências radicais
imediatas. E espero até indicar que esse é um modelo que veio para ficar nas
sociedades contemporâneas.
Segundo, enfrento o diagnóstico colocado pelo título apresentando
uma interpretação da redemocratização em que as Revoltas de Junho representam
uma cesura, um fim e um novo começo. Espero com isso mostrar o lugar especial
de Junho de 2013 na história recente do país, indicando seu caráter inédito.
Ao final, procuro pensar esses diferentes elementos de
análise em termos das perspectivas abertas para a ação e a reflexão nos
próximos anos.
De maio de 1968 a
Junho de 2013
O maio de 1968 alterou profundamente o modelo de
transformação social radical que se tinha até então. Deixou de ser dominante o
modelo revolucionário, herdeiro da Revolução Francesa, das revoluções do século
XIX e da Revolução Russa, que fez na Guerra do Vietnã sua derradeira aparição.
O maio de 1968 não preconiza mais a construção de “um novo homem”, de uma nova
sociedade, a partir de cima, a partir da conquista do poder de Estado. A
construção da nova sociedade deve se dar desde baixo – o modelo revolucionário
de transformação vigente até então também tinha essa pretensão, mas a
prioridade da conquista do poder de Estado impedia, na prática sua realização.
Esse foi um dos resultados de movimentos de âmbito planetário, bastante
diversificados entre si, que não aceitavam ficar espremidos no exíguo espaço
que se abria entre a repressão policial e os sindicatos e partidos existentes.
Na conjuntura mundial, o maio de 1968 francês, a versão mais
influente do imaginário posterior, foi um movimento de massa relativamente
tardio. Mas, talvez por isso mesmo, conseguiu elaborar os impulsos de protesto
e de transformação de uma maneira nova, dando nova direção e alento para os
movimentos a partir dali. Na fórmula conhecida do líder estudantil alemão Rudi
Dutschke, tratava-se então de “revolucionar os revolucionários”. Só a
transformação viva de uma base social significativa podia ser o ponto de
partida para lutas políticas democráticas abertas que têm por objetivo estender
essa transformação mais restrita para o conjunto da sociedade.
O maio de 1968 expandiu os horizontes da política para todas
as dimensões da vida cotidiana de uma maneira que não exigia sua subordinação a
um “sentido maior” de política, normalmente entendido no sentido restrito de
“realpolitik”, de “pragmatismo”, como se diz atualmente. Ao contrário,
considerou todas as diferentes dimensões da política como valiosas em si mesmas
e por si mesmas, como campos de batalha política tão importantes quanto
quaisquer outros. Criou mecanismos de enfrentamento de um poder que não era
mais apenas estatal, mas que se infiltrava em todas as brechas da vida social.
Não se trata aqui de edulcorar o que aconteceu factualmente
em maio de 1968. Houve muita intolerância no interior dos movimentos, versões
autoritárias de transformação social estavam ali presentes também. Como típico
momento de transição de um paradigma de transformação para outro, o maio de
1968 foi muito mais um amálgama do velho e do novo. Só com o tempo o novo
decantou e se separou definitivamente do velho modelo de transformação, ainda
calcado na Revolução Francesa. Só com a sedimentação histórica, com os rumos
que tomaram os movimentos de protesto e contestação a partir dos anos 1970 é
que se chegou ao imaginário de 1968 que se tem hoje. Em outras coisas, o maio
de 1968 também abraçou movimentos e imaginários próximos, como foi o caso do
movimento hippie, por exemplo.
Como em todo episódio que se torna referência para a posteridade,
também o decisivo aqui passou a ser o imaginário do maio de 1968, muito mais do
que a sequência factual dos eventos. Tornou-se uma referência de transformação
libertária que é hoje ponto de partida para qualquer grupo organizado que
pretenda uma transformação radical da sociedade. E esse imaginário tem como
ponto forte a ideia de que uma real transformação não pode acontecer mediante o
sacrifício da individualidade, que a organização não pode exigir sacrifícios em
nome de um futuro abstrato e longínquo, que o movimento não pode significar
submissão do indivíduo a um partido ou grupo de sábios iluminados.
Auto-organização não combina com estruturas verticalizadas e hierárquicas.
Na minha maneira de ver, foi esse tipo de modelo de
transformação que esteve presente nos grupos mais avançados das Revoltas de
Junho.
Da abertura
democrática às Revoltas de Junho de 2013
Levar seriamente em
conta o corte que representaram as duas últimas décadas do século XX no país,
levar seriamente em conta a redemocratização, exige pensar o conservadorismo
histórico do Brasil em nova chave. Em livros recentes[1],
defendo a tese de que um dos mecanismos fundamentais desse novo conservadorismo
está em uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo
modificando-se ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político
contra as forças sociais de transformação, em favor de um ritmo extremamente
lento de democratização.
A essa cultura
política dou o nome de pemedebismo, em lembrança do partido, o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que capitaneou a transição para a
democracia, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Mas o nome não
quer dizer que essa cultura política se restrinja a esse partido, pelo
contrário. Quer dizer que quase todos os partidos brasileiros pretendem, no
fundo, ser – grande ou pequeno – um PMDB, ou seja, um amálgama de interesses
que sempre está no governo, qualquer que seja o governo.
Coloco como marco inicial da redemocratização a aprovação da
lei que reintroduziu o multipartidarismo no país, no final de 1979. E
estabeleço como marco final da redemocratização as Revoltas de Junho de 2013,
que, na interpretação que proponho, iniciam um novo ciclo, não mais de
redemocratização, mas de democratização, de aprofundamento da democracia no
país[2].
O período da redemocratização assim estabelecido, de 1979 a
2013, pode ser dividido, por sua vez, em dois grandes blocos. O primeiro, de
1979 até 1994, foi marcado pela coincidência entre o declínio da ditadura militar,
a redemocratização e a crise estrutural do
modelo de sociedade vigente no país por cinco décadas e que se costuma
denominar “nacional-desenvolvimentismo”.
Hegemônica nesse
período é a cultura política do “progressismo”, caracterizada pela diretriz de
que era necessário unir todas as forças de oposição à ditadura – aquelas que
abandonaram o barco em naufrágio no último momento, inclusive. A cultura
política do progressismo é a primeira figura do conservadorismo típico da
redemocratização, a que dou o nome mais amplo de pemedebismo.
O segundo grande bloco da redemocratização, de 1994 às
Revoltas de Junho de 2013, foi marcado pela transição do
nacional-desenvolvimentismo a um novo modelo de sociedade, que chamo de
“social-desenvolvimentista”. Hegemônica
nesse período é a cultura política da “governabilidade”, caracterizada pela
ideia de que o impeachment de Collor teria demonstrado a necessidade de
governos se apoiarem não apenas em maiorias parlamentares, mas em supermaiorias
parlamentares, em esmagadoras maiorias congressuais. A cultura política da
governabilidade é segunda figura do pemedebismo e só foi de fato abalada com as
Revoltas de Junho.
Porque o traço de
união das Revoltas de Junho, a meu ver, foi a rejeição à blindagem pemedebista.
Mas não se trata mais de uma unidade forçada como a do progressismo, que
dominou as grandes manifestações de massa no país até o impeachment de Collor,
em 1992. Menos ainda pode se tratar da unidade forçada da “governabilidade”, em
que não há real polarização de posições políticas, mas acomodação amorfa. Junho
de 2013 representa a recusa dessa nova unidade, ainda que não necessariamente o
seu final.
A rejeição ao
pemedebismo veio de todos os lados e se dirigiu contra inúmeros aspectos do
sistema político simultaneamente. Também por isso as Revoltas de Junho
representam um grande avanço: mostram que a pauta não é mais a da transição
para a democracia, em que estava em jogo a estabilização econômica e política,
mas já a do aprofundamento da democracia.
As Revoltas mostram que
o funcionamento do sistema está em descompasso com as ruas. A sociedade
alcançou um grau de pluralismo de posições e tendências políticas que não se
reflete na multidão informe de partidos políticos reunidos na coalizão
governamental.
Mas um país não sai
incólume de vinte anos quase ininterruptos de pemedebismo. Uma juventude que
cresceu vendo uma política de acordos de bastidores, em que figuras políticas
adversárias se acertam sempre em um grande e único condomínio de poder, não tem
modelos em que basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da
política. Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a
qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de
objetivos estritamente eleitorais. O pemedebismo minou a formação política de
toda uma geração. Para não falar nos efeitos deletérios que teve sobre o
conjunto da sociedade.
Do lado das ruas,
não é de espantar que haja uma recusa abstrata de partidos e de organizações
políticas em geral. Não é de espantar que divisões políticas como aquela entre
direita e esquerda apareçam como irreais ou sem sentido. Não foi justamente o
apagamento de divisões como essas o que se viu no governo do país desde que o
governo Lula resolveu fazer um pacto com o pemedebismo? O que se vê nas ruas
vem exigir novas polarizações. Um efetivo aprofundamento da democracia poderia vir
de uma organização polarizada dessas vozes.
Perspectivas
Quando se pensa
democracia em sentido largo, como forma de vida, avanços sociais, especialmente
contra as desigualdades, são também avanços democráticos. Mas isso não torna
aceitável barganhar menos desigualdade pela aceitação de uma cultura política
de baixo teor democrático. As duas coisas têm de vir juntas. Se se abstrai de
um desses aspectos, o que se perde é a própria possibilidade de crítica e transformação, de diagnóstico
e ação.
Do enfrentamento
aberto do pemedebismo depende a construção de uma nova cultura política
democrática, de instituições autenticamente social-desenvolvimentistas, de um
país menos indecente em um passo mais rápido do que permite esse pemedebismo de
fundo. As Revoltas de Junho colocaram a nu o esgotamento do modelo
político-econômico que corresponde à fase “lulista” do projeto
social-desenvolvimentista. Mesmo se os seus efeitos concretos, institucionais,
ainda possam demorar a surgir claramente.
Ao mesmo tempo,
colocam o desafio de alcançar a próxima figura do modelo, pensando em metas tão
essenciais como ir à raiz da radical injustiça tributária, a necessária universalização
com qualidade da saúde e da educação públicas, ou mesmo eliminar com relativa
rapidez o setor informal da economia, em que emprego não significa trabalho,
nem, portanto, direitos sociais correspondentes. Para não falar na consolidação
em termos constitucionais de programas de transferência de renda como o Programa
Bolsa Família. Ou de um desafio ainda mais complexo como o de criar as
condições para a transição ambiental rumo a uma economia de baixo carbono.
Apenas para ficar em alguns exemplos.
Do ponto de vista do
debate público, fomentar a produção de alternativas reais de ação e discuti-las
politicamente é uma das frentes de combate ao pemedebismo. O passo seguinte de
aprofundamento da democracia, o da exigência de extinção do pemedebismo e de um
sistema político radicalmente reformado, requer formação e aprendizado
políticos que dependem de como os polos organizados da sociedade vão (ou não)
se reestruturar para receber as novas energias.
É certo que a
canalização da insatisfação pode se dar em um sentido progressista ou em um
sentido regressivo. Esse é o risco inerente a qualquer aposta no aprofundamento
da democracia. Mas uma coisa é certa: recusar o risco é jogar fora a
oportunidade de transformação. Já não se trata mais da redemocratização, da transição
para a democracia. As Revoltas de Junho encerraram esse ciclo definitivamente.
Ao mesmo tempo em que abriram um novo, ainda mais desafiador: o da efetiva
democratização da sociedade e da política no Brasil. Como e quando essas novas
energias democráticas vão efetivamente plasmar novas instituições e uma nova
cultura política é o desafio prático e teórico das próximas décadas.
[1] Choque de democracia. Razões da revolta,
livro eletrônico, São Paulo: Companhia das Letras, junho de 2013; e Imobilismo em movimento. Da redemocratização
ao governo Dilma, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] A opção pelo termo “revoltas” remete à
tradição política brasileira de chamar assim movimentos como o que se viu em
junho de 2013. A opção pelo plural (“revoltas”) pretende indicar não apenas o
caráter diverso e diversificado das manifestações, mas igualmente que se trata de
uma revolta realizada sob um regime democrático.
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