Juliana Streva é
mestranda em Direito pela PUC.
Os estereótipos de gênero podem ser compreendidos
como a construção social que atribui comportamentos e características ao sexo
feminino e masculino, em uma oposição binária entre homem e mulher,
generalização ainda muito presente nos dias de hoje. Neste sentido, a mulher
ainda é vista como uma pessoa sensível, frágil, cuidadosa, vaidosa, que dirige
mal, que gosta de falar ao telefone e fofocar, sonha em se casar e ser mãe e
que não deve ter uma liberdade sexual (vide xingamentos sexistas que visam reprimir
tal tipo de comportamento - puta, vadia, etc). Já o homem, como um ser viril,
forte, carismático, que joga futebol com os amigos, gosta de carro, cerveja e
que sua liberdade sexual é tida como “mais do que natural” (é, não há
xingamento algum referente a isto, pois não há repressão).
Esta fôrma comportamental gera e enraíza uma
profunda intolerância e violência contra as pessoas que rompem com tais padrões
segregadores e limitantes, sobretudo em relação às mulheres, que sofrem
historicamente a opressão patriarcal - responsável por colocar o homem em uma
condição privilegiada no seio social.
Mas, como muitos falam por aí, as mulheres já
conquistaram espaço na sociedade, podem trabalhar fora de casa (receber menos
que os homens), e até mesmo ser presidente (ainda se recusam o “presidenta”,
mas a questão da linguagem é também para um outro momento). Afinal, qual seria
então o sentido do movimento feminista: fazer com que as mulheres tenham acesso
às estruturas inalteradas deste sistema patriarcal ou reformular essas
estruturas de opressão?
Muito além de fazer parte deste sistema opressor,
há o intuito de revolucionar a construção social de gênero (uma estrutura
opressora), transgredindo suas categorias através da ressignificação do termo
“feminino”, assim como do “masculino”, ou até mesmo a sua radical extinção.
Estes termos passariam a ser entendidos como adjetivos e não mais categorias
dos sexos, rompendo, portanto, com a lógica dual das oposições, recusando-se a
alternativa da exclusão (ou, ou) em favor da inclusão (e, e).
Desta forma, o feminino transcende a alternativa
dual do sexo e do gênero e pode ser assumido por homens e por mulheres, assim
como o masculino. Como já firmado por Judith Butler, filósofa teórica de gênero
e feminismo dos Estados Unidos, o sexo identificado social ou morfologicamente
não é determinante (!).
Os pensamentos feministas foram responsáveis pelo
desenvolvimento do movimento queer
vinculado à revolução das identidades sexuais. O termo queer, antes tido como pejorativo e ofensivo, transforma-se em
uma afirmação orgulhosa da multiplicidade. Este movimento permitiu o surgimento
do camp, um fênomeno popular de
contracultura produtor de estranhamento relativo às categorias como a
feminilidade e a masculinidade, buscando a sua completa desnormatização.
No meio cinematográfico, esta contracultura se
desvincula do cinema hegemônico - produtor e difusor de normatividade (cis e
heteronormativa, ou seja, que promulga a visão padronizada de que as pessoas
agem conforme o estereótipo de gênero relacionado ao seu sexo biológico, e se
interessam sexualmente, em regra, por pessoas do gênero oposto) – e vai muito
além do Bechdel Test, por exemplo.
Para quem não conhece, explico: é um teste no
qual se apresenta três perguntas básicas, com o intuito de analisar a
participação (mínima) de mulheres em filmes. As perguntas são: i) há mais de
duas mulheres no filme, com nomes? ii) elas falam uma com a outra? iii) sobre
algo que não seja um homem? Essas perguntas que beiram a máxima simplicidade e
que se pensada para homens o “sim” para todas as perguntas seria mais do que
evidente, acaba não sendo tão simples assim tendo em perspectiva as mulheres.
Anita Sarkeesian, responsável pelo site Feminist
Frequency, expõe que muitos dos filmes de grande bilheteria dos Estados
Unidos não conseguem responder “sim” a estas três perguntas, como por exemplo,
X Men, Pulp Fiction, grande parte do James Bond, todos da trilogia d'O senhor
dos anéis, Shrek, Up, Clerks, Piratas do Caribe, M.I.B, Clube da Luta, etc etc
etc.
Muito além disso, o cinema de
contracultura é responsável por subverter a ordem hegemônica sexista. John
Waters trouxe ao mundo, em 1972, uma ilustração icônica do camp com
seu filme Pink Flamingos protagonizado pela drag queen Divine. Este filme,
reconhecido até hoje como um dos mais trash, quiçá controversos, já
produzidos, apresenta uma forma transgressora, irônica e cômica da sociedade.
Juntamente com seu ulterior Female
Trouble, produzido em 1974, Waters afronta a
decência e toda a noção de bons costumes. Cabe destacar que, Judith Butler se
baseou no título deste filme (Female
Trouble), para intitular sua obra Gender Trouble: Feminism and the
Subversion of Identity, mostrando
o caminho de mão dupla entre a arte e a teoria de gênero.
Outra ilustração cinematográfica deste rompimento
do cinema cis e heteronormativo é trazido com o clássico de 1975 Dog Day Afternoon, dirigido por Sidney Lumet.
Este filme conta a história de um assalto a banco realizado pelo personagem
homossexual, representado por Al Pacino. Ele, desempregado, (atenção: spoiler necessário) recorre ao crime para
pagar operação de mudança de sexo de seu namorado. Este anti-herói consegue
cativar a simpatia do público que torce por ele no desenrolar da trama e, ao
mesmo tempo, torna visível uma questão pouquíssimo explorada e debatida pelo
cinema e pela sociedade, até então.
Em 1980, influenciado pelos filmes de John
Waters, o diretor Pedro Almodóvar apresenta o seu primeiro longa, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón. O
filme apresenta personagens, com forte predominância de mulheres, que, em
diversas situações, se rebelam contra a normatividade comportamental,
demonstrando que toda performatividade social é passível de ridicularização.
Almodóvar participa, desta forma, também do cenário subversido do camp através do absurdo, do grotesco, do
descanso com a moral, em uma postura desafiadora e questionadora.
O movimento feminista queer extendeu o seu questionamento e o seu rompimento do
sistema de repressão através do devir-minoritário por meios artísticos (como o
cinematográfico mencionado, como também em outros campos artísticos, como o
musical, com o glam rock de Bowie na
fase andrógina e New York Dolls, com a pintura de Frida Kahlo e com os
quadrinhos de Laerte, por exemplo), assim como também pelos meios acadêmico
(com a já mencionada Butler, dentre outros e outras) e social (por exemplo, a
marcha das vadias).
Afinal de contas, este movimento questionador que
subverte o mecanismo de opressão, transforma a vida de qualquer pessoa em
minoritária no sentido de permitir ao indivíduo ser múltiplo, amplo e o mais
livre possível em sua performance, autodeterminação e identidade
pessoal-social. Buscamos, assim, não mais repetir este modelo opressor,
ignorante e intolerante de “estereótipos limitantes” ou se inserir nele, mas
repensá-lo, questioná-lo e abrir espaço para a manifestação de toda a multidão
que nos habita. E lá se foi o breve suspiro.
Butler, Judith. Gender Trouble:
Feminism and the Subversion of Identity, 1990.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003.