domingo, 8 de junho de 2014

As Cantadas e o Espaço da Mulher na Rua - Luciana Vasconcellos

Luciana Vasconcellos é graduanda em direito pela PUC

Andar pelas ruas de uma cidade grande como o Rio de Janeiro é ter a certeza que seu caminho não será um de silêncio e contemplação. Inevitavelmente você irá encontrar pedintes, pessoas oferecendo panfletos e até turistas pedindo informação – situações cotidianas em que estranhos interferem na sua vida privada. Acontece que, se você é mulher, as interferências no seu espaço particular ultrapassam as experiências de civilidade e assumem um aspecto de assédio no espaço público – as cantadas vulgares que se mascaram de elogios, os gritos e buzinadas de homens que realmente acham que estão agradando, sem imaginar o quão desconfortável ou o quão ameaçador aquela situação se coloca nos nossos dias.
O assédio sexual no espaço público (street harassment) ocorre quando uma mulher em um espaço público é vítima de uma intromissão por um ou mais homens desconhecidos que fazem comentários, barulhos ou gestos, frequentemente com conotação sexual, assegurando seu alegado direito de obter a atenção desta mulher, definindo-a como um objeto sexual e forçando-a a interagir com eles. Esse tipo de assédio é vivenciado por mulheres de todas as idades em seu cotidiano e, muitas vezes, por esse motivo, é tido como um fato mundano na vida delas, uma realidade infortuna que se coloca como trivial e não parece ser digna de uma resposta por qualquer autoridade pública, pondo-se como impossível de se prevenir. Nesse sentido, o assédio sexual no espaço público funciona como um obstáculo ao acesso e à permanência da mulher a esse espaço, utilizando-se do gênero como ferramenta para definir, classificar e discriminar membros da sociedade, impactando o momento, a freqüência e a duração da convivência da mulher na sua vida cívica.
O street harassment, por seu caráter predominantemente sexual, transforma-se em uma lembrança permanente de como a mulher é vulnerável sexualmente. Enquanto um simples comentário não causa danos físicos, ele faz parte de um espectro contínuo de atenção sexual indesejada, o qual não pode ser ignorado e que pode significar o início de uma ameaça de violência sexual. Isso se torna uma verdade ainda maior quando consideramos que o assédio sexual público pode ir além do aspecto verbal e envolver contato físico forçado. Por meio de comentários sobre a aparência de uma mulher que está apenas seguindo seu caminho, o homem reforça o entendimento de que ela não pode existir em público como uma igual. Ele transforma seu gênero e seus atributos físicos no aspecto primário de sua existência no espaço público. O street harassment não permite que a mulher exerça sua subjetividade na escolha de como e quando seu gênero será um fator de definição de sua identidade e individualidade
O assédio sexual no espaço público muda o modo como a mulher experiencia a vida pública e sua consequente perspectiva sobre sua segurança na rua e seu sentimento de pertencimento àquele espaço. Nesse sentido, pode-se entender que o street harassment implica na ratificação dos papéis tradicionalmente exercidos por cada gênero, uma vez que, para evitá-lo completamente, a única opção que a mulher tem é permanecer em casa e não conviver nos espaços públicos. Por vezes, a responsabilidade pela ocorrência do assédio é atribuída à mulher, a qual estaria “querendo chamar atenção” ou “pedindo por aquilo”. A cultivação da cultura do estupro faz com que as mulheres criem estratégias para tentar amenizar as ocorrências do assédio, seja alterando o modo como se vestem, mudando o trajeto que percorrem ou usando homens como “guarda-costas”, reforçando a concepção tradicional do lugar de cada gênero – se a mulher decide entrar no espaço público, ela deve fazê-lo na companhia de um defensor masculino. Street harassment é uma forma de vitimização da mulher, tornando-a impotente para combater um sistema generalizado de desigualdade sexual pelo grande alcance e insídia do problema.
O assédio sexual no espaço público também tem um significante efeito no discurso sobre o espaço urbano. Quem pode acessar o espaço público? Por quê?, e o que isso significa?, são questões centrais no crescimento e desenvolvimento de cidades. A inexistência do street harassment no discurso público demonstra a falta de prioridade que a questão assume perante o poder público, o que corrobora como o espaço urbano é construído para ser mais receptivo e próspero para determinados cidadãos. Por exemplo, o fato de que urinar em público e jogar papel no chão são matérias tratadas por políticas públicas e dignas de atendimento legal e consequente punição, enquanto o assédio sexual no espaço público é uma questão completamente ignorada, mostra quais são as prioridades na formação do espaço urbano. Obviamente, a poluição das ruas deve ser combatida e merece a atenção do poder público, mas por que a dignidade sexual da mulher também não é alvo dessa preocupação?
Os quadros políticos são construídos para fazer parecer que o assédio sexual no espaço público é um infeliz, porém inevitável, fato da vida moderna, nomeá-lo e defini-lo representa um grande valor estratégico e político. Definir um fenômeno é o primeiro passo para a compreensão de seu escopo e de suas conseqüências. Porém, quando os próprios agentes do Estado não estão preparados para lidar com esse assunto, por vezes agindo como autores dessas ofensas, a mensagem passada para vítimas, agressores e espectadores é a de que o street harassment é, no mínimo um problema tão leve que deve ser tolerado. A pouca freqüência com que a expressão é utilizada para descrever a experiência feminina cria uma nebulosidade sobre os danos causados e corrobora a trivialização do street harassment. Em termos de reforma política, é difícil aprovar leis que possam impedir o assédio sexual no espaço público se há pouca consciência do próprio conceito. O assédio sexual no espaço público impõe-se como uma barreira física e metafórica ao acesso da mulher a uma sociedade mais igualitária, reforçando sua sensação de impotência e de vulnerabilidade sexual, fazendo com que a ameaça de violência sexual pareça constante. Por isso devemos nos esforçar para fazer com que o street harassment torne-se visível culturalmente, para que os danos por ele causado possam, um dia, ter tratamento legal.

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