Luciana
Vasconcellos é graduanda em direito pela PUC
Andar
pelas ruas de uma cidade grande como o Rio de Janeiro é ter a certeza que seu
caminho não será um de silêncio e contemplação. Inevitavelmente você irá
encontrar pedintes, pessoas oferecendo panfletos e até turistas pedindo
informação – situações cotidianas em que estranhos interferem na sua vida
privada. Acontece que, se você é mulher, as interferências no seu espaço
particular ultrapassam as experiências de civilidade e assumem um aspecto de
assédio no espaço público – as cantadas vulgares que se mascaram de elogios, os
gritos e buzinadas de homens que realmente acham que estão agradando, sem
imaginar o quão desconfortável ou o quão ameaçador aquela situação se coloca
nos nossos dias.
O
assédio sexual no espaço público (street harassment) ocorre quando uma mulher
em um espaço público é vítima de uma intromissão por um ou mais homens
desconhecidos que fazem comentários, barulhos ou gestos, frequentemente com
conotação sexual, assegurando seu alegado direito de obter a atenção desta
mulher, definindo-a como um objeto sexual e forçando-a a interagir com eles.
Esse tipo de assédio é vivenciado por mulheres de todas as idades em seu
cotidiano e, muitas vezes, por esse motivo, é tido como um fato mundano na vida
delas, uma realidade infortuna que se coloca como trivial e não parece ser
digna de uma resposta por qualquer autoridade pública, pondo-se como impossível
de se prevenir. Nesse sentido, o assédio sexual no espaço público funciona como
um obstáculo ao acesso e à permanência da mulher a esse espaço, utilizando-se
do gênero como ferramenta para definir, classificar e discriminar membros da
sociedade, impactando o momento, a freqüência e a duração da convivência da
mulher na sua vida cívica.
O
street harassment, por seu caráter predominantemente sexual, transforma-se em
uma lembrança permanente de como a mulher é vulnerável sexualmente. Enquanto um
simples comentário não causa danos físicos, ele faz parte de um espectro
contínuo de atenção sexual indesejada, o qual não pode ser ignorado e que pode
significar o início de uma ameaça de violência sexual. Isso se torna uma
verdade ainda maior quando consideramos que o assédio sexual público pode ir
além do aspecto verbal e envolver contato físico forçado. Por meio de
comentários sobre a aparência de uma mulher que está apenas seguindo seu
caminho, o homem reforça o entendimento de que ela não pode existir em público
como uma igual. Ele transforma seu gênero e seus atributos físicos no aspecto primário
de sua existência no espaço público. O street harassment não permite que a
mulher exerça sua subjetividade na escolha de como e quando seu gênero será um
fator de definição de sua identidade e individualidade
O
assédio sexual no espaço público muda o modo como a mulher experiencia a vida
pública e sua consequente perspectiva sobre sua segurança na rua e seu
sentimento de pertencimento àquele espaço. Nesse sentido, pode-se entender que
o street harassment implica na ratificação dos papéis tradicionalmente
exercidos por cada gênero, uma vez que, para evitá-lo completamente, a única
opção que a mulher tem é permanecer em casa e não conviver nos espaços
públicos. Por vezes, a responsabilidade pela ocorrência do assédio é atribuída
à mulher, a qual estaria “querendo chamar atenção” ou “pedindo por aquilo”. A
cultivação da cultura do estupro faz com que as mulheres criem estratégias para
tentar amenizar as ocorrências do assédio, seja alterando o modo como se vestem,
mudando o trajeto que percorrem ou usando homens como “guarda-costas”,
reforçando a concepção tradicional do lugar de cada gênero – se a mulher decide
entrar no espaço público, ela deve fazê-lo na companhia de um defensor
masculino. Street harassment é uma forma de vitimização da mulher, tornando-a
impotente para combater um sistema generalizado de desigualdade sexual pelo
grande alcance e insídia do problema.
O
assédio sexual no espaço público também tem um significante efeito no discurso
sobre o espaço urbano. Quem pode acessar o espaço público? Por quê?, e o que
isso significa?, são questões centrais no crescimento e desenvolvimento de
cidades. A inexistência do street harassment no discurso público demonstra a
falta de prioridade que a questão assume perante o poder público, o que
corrobora como o espaço urbano é construído para ser mais receptivo e próspero
para determinados cidadãos. Por exemplo, o fato de que urinar em público e
jogar papel no chão são matérias tratadas por políticas públicas e dignas de
atendimento legal e consequente punição, enquanto o assédio sexual no espaço
público é uma questão completamente ignorada, mostra quais são as prioridades
na formação do espaço urbano. Obviamente, a poluição das ruas deve ser
combatida e merece a atenção do poder público, mas por que a dignidade sexual
da mulher também não é alvo dessa preocupação?
Os
quadros políticos são construídos para fazer parecer que o assédio sexual no
espaço público é um infeliz, porém inevitável, fato da vida moderna, nomeá-lo e
defini-lo representa um grande valor estratégico e político. Definir um
fenômeno é o primeiro passo para a compreensão de seu escopo e de suas
conseqüências. Porém, quando os próprios agentes do Estado não estão preparados
para lidar com esse assunto, por vezes agindo como autores dessas ofensas, a
mensagem passada para vítimas, agressores e espectadores é a de que o street
harassment é, no mínimo um problema tão leve que deve ser tolerado. A pouca
freqüência com que a expressão é utilizada para descrever a experiência
feminina cria uma nebulosidade sobre os danos causados e corrobora a trivialização
do street harassment. Em termos de reforma política, é difícil aprovar leis que
possam impedir o assédio sexual no espaço público se há pouca consciência do
próprio conceito. O assédio sexual no espaço público impõe-se como uma barreira
física e metafórica ao acesso da mulher a uma sociedade mais igualitária,
reforçando sua sensação de impotência e de vulnerabilidade sexual, fazendo com
que a ameaça de violência sexual pareça constante. Por isso devemos nos
esforçar para fazer com que o street harassment torne-se visível culturalmente,
para que os danos por ele causado possam, um dia, ter tratamento legal.
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