Igor Dias é doutorando em Engenharia de Produção pela UFF
Renata Januária era frágil, quase quebradiça. Veio embalada em uma grossa camada de jornal que deixava à mostra uma coluna da Miriam Leitão. Esta embalagem, cuidadosa, feita pelas mãos finas e delicadas do vendedor da lojinha do Museu, deveria garantir a integridade de Renata Januária em qualquer viagem.
Ao sair da lojinha do Museu, já com Renata Januária chacoalhando dentro da mochila, tive muitas dúvidas em relação a qual caminho tomar. Eu poderia tanto descer em direção à Praia de Icaraí ou em direção ao Ingá. De um lado, a beleza da praia, o vôlei descompromissado, a vista insuperável do Rio de Janeiro enquanto a velha baía nossa de cada dia continuava cheia de esgoto. Do outro, estudantes da UFF aturdidos com suas questões existenciais e suas provas de quinto período, e também a pequena burguesia da terra de Arariboia que faz compras no Extra do Ingá – Sendas forever!
Escolhi o lado do Ingá, por puro diletantismo, e enquanto descia a ladeira da Praia das Flechas, pensei mais uma vez em Renata Januária.
Longe de mim ter ímpetos desmedidos de posse: acho que a gente cria os filhos para o mundo. Decidi dar a ela a oportunidade de experimentar a atmosfera de Niterói. Parei no meio da descida, passei a mochila com destreza por baixo do braço esquerdo e, tendo-a de frente para mim, abri o fecho-eclair. Deparei-me com a embalagem de jornal um tanto quanto disforme, em cima de um caderno velho e de dois livros de literatura barata: era Renata Januária.
Quando comecei a abrir a embalagem, veio se descortinando pouco a pouco a imagem dela: o corpo todo vermelho, as pernas finíssimas, as patas pintadas de preto; dois chifres pequenos pintados de amarelo, uma boca que esboçava um sorriso. Duas manchas na região da alcatra e da chã davam um charme especial à Renata Januária, que tinha as tetas rosadas e gordas, viçosas, férteis. Um pequeno sino dourado atado ao pescoço, adorno de muito bom gosto, coroava os atributos do pequeno presente que eu tinha nas mãos.
Descíamos a Praia das Flechas, eu e Renata Januária, até que começou a chover. Até então, estávamos felizes em nossas realidades paralelas. Eu, humano, de carne e osso. Ela, bovina, de cerâmica e tinta.
À medida que a chuva aumentava, comecei a ficar preocupado com a integridade física de Renata Januária. Sua pele de cerâmica era tão fina que não precisava cair no chão para que se quebrasse: uma chuva um pouco mais forte já seria capaz de destruí-la. Tive então a ideia de guardá-la novamente dentro da mochila. Torná-la-ia por alguns instantes cega, enclausurada, exatos 25 minutos até que eu chegasse em casa para tirá-la da mochila fechada.
Destro, abri a mochila para resgatar a embalagem de jornal. Reembalá-la-ia ligeiro, guardaria Renata Januária para que ela ornasse a prateleira mais alta do meu quarto e velasse, mimosa, o meu sono enquanto eu dormia.
Mal eu acabara de refazer a embalagem, o jornal já densamente molhado pela chuva que não parava de apertar, fui surpreendido por uma forte rajada de vento vinda da baía.
A morte precoce de Renata Januária me deu um aperto esquisito no peito, uma angústia, uma dor de aborto. De uma hora para outra, meu bibelô bovino era um amontoado de cacos vermelhos que se espalhava pela calçada larga da Avenida Benjamim Sodré. Procurei, em vão, pela cabeça com seus chifres amarelos, mas não a encontrei: deve ter caído na baía ou ter sido empurrada para lá pelo vento.
Quando eu vi aquele amontoado de cacos, tive uma vontade enorme de chorar. Mas segurei o choro. Muito molhado, hesitante entre continuar a descida até o Extra ou voltar para o Museu de Arte Contemporânea para me proteger da chuva, olhei para o chão mais uma vez em busca da cabeça de Renata Januária.
Como é de se supor, jamais a encontrei. Mas, se alguém tivesse me visto naquele momento, teria estranhado a minha súbita mudança de humor. Recobrei o ânimo, respirei fundo e segui aliviado e resoluto em direção às pequenas ruas do Ingá. A chuva que havia levado Renata Januária era a mesma que esfacelava e desmanchava a cabeça da Miriam Leitão, que jazia no asfalto da Benjamim Sodré em meio aos cacos.
Apesar de não ter olhado para trás, sei que a cabeça que eu havia encontrado ia se desintegrando e se encaminhando para o esgoto, num pequeno córrego caudaloso que se formava rente ao meio-fio, a chuva cada vez mais grossa.
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