Não deixe de nos seguir no facebook! www.facebook/afolhadogragoata

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Não aconteceu nada em Junho de 2013 - Marcos Nobre

Marcos Nobre é professor do departamento de Filosofia da UNICAMP, e um eminente filósofo brasileiro. É também membro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Publicou diversos livros – entre eles são dignos de nota Habermas e a Reconstrução (2012) e Curso Livre de Teoria Crítica (2008). Seus trabalhos mais recentes tentam entender as consequências políticas das manifestações do ano passado.  


É cada vez mais comum ouvir a afirmação do título acima. Às vezes, em versões mais suaves, o que se diz é que houve uma espécie de “deu!” geral, uma espécie de irrupção vulcânica social. Mas que agora tudo teria voltado ao “normal” da política depois dessa espécie de catarse coletiva.

O pressuposto da afirmação é que só “acontece” de fato alguma coisa quando há alguma mudança institucional radical: um golpe, uma nova forma de Estado, uma nova Constituição, uma revolução, uma derrubada das instituições existentes. Mais que isso, esse “acontecimento” tem de ser rápido, imediato. Algo como a revogação do aumento das tarifas de transporte, ainda em Junho de 2013, só que em versão ampliada.

E, no entanto, grande parte das transformações profundas das sociedades não “acontece” assim. “Acontece” ao longo de décadas. Assim foi, por exemplo, a redemocratização, a partir da década de 1980. E assim será – é a tendência para a qual apontam as análises que proponho, pelo menos – com Junho de 2013.

Dizer isso não é exercício de futurologia ou adivinhação. Segundo a tradição intelectual a que me filio, iniciada por Marx e conhecida pelo nome de Teoria Crítica, o sentido profundo de conhecer é o de transformar a sociedade no sentido de liberta-la da dominação. Isso exige fazer diagnósticos o mais precisos possíveis do momento presente, identificando no momento que vivemos quais são as tendências de desenvolvimento, as potencialidades para a transformação e quais os elementos que se põem como obstáculos a essa emancipação.

É assim que a orientação para a emancipação ilumina os potenciais e os bloqueios à ação transformadora, é assim que a teoria identifica possíveis pontos de apoio para a prática emancipatória. Dizer que as Revoltas de Junho representam uma ruptura, que representam o fim da (longuíssima) redemocratização e o início da democratização, o início de um ciclo de aprofundamento da democracia – e é isso o que digo –, significa identificar esse momento como chave para marcar uma tendência.

Pretendo enfrentar o desafio posto pelo título deste texto em duas etapas. Primeiro, comparando as Revoltas de Junho com outra “irrupção” social marcante do século XX, o maio de 1968. Espero com isso mostrar que grandes mudanças não começam somente com eventos que têm consequências radicais imediatas. E espero até indicar que esse é um modelo que veio para ficar nas sociedades contemporâneas.

Segundo, enfrento o diagnóstico colocado pelo título apresentando uma interpretação da redemocratização em que as Revoltas de Junho representam uma cesura, um fim e um novo começo. Espero com isso mostrar o lugar especial de Junho de 2013 na história recente do país, indicando seu caráter inédito.

Ao final, procuro pensar esses diferentes elementos de análise em termos das perspectivas abertas para a ação e a reflexão nos próximos anos.
  
De maio de 1968 a Junho de 2013

O maio de 1968 alterou profundamente o modelo de transformação social radical que se tinha até então. Deixou de ser dominante o modelo revolucionário, herdeiro da Revolução Francesa, das revoluções do século XIX e da Revolução Russa, que fez na Guerra do Vietnã sua derradeira aparição. O maio de 1968 não preconiza mais a construção de “um novo homem”, de uma nova sociedade, a partir de cima, a partir da conquista do poder de Estado. A construção da nova sociedade deve se dar desde baixo – o modelo revolucionário de transformação vigente até então também tinha essa pretensão, mas a prioridade da conquista do poder de Estado impedia, na prática sua realização. Esse foi um dos resultados de movimentos de âmbito planetário, bastante diversificados entre si, que não aceitavam ficar espremidos no exíguo espaço que se abria entre a repressão policial e os sindicatos e partidos existentes.

Na conjuntura mundial, o maio de 1968 francês, a versão mais influente do imaginário posterior, foi um movimento de massa relativamente tardio. Mas, talvez por isso mesmo, conseguiu elaborar os impulsos de protesto e de transformação de uma maneira nova, dando nova direção e alento para os movimentos a partir dali. Na fórmula conhecida do líder estudantil alemão Rudi Dutschke, tratava-se então de “revolucionar os revolucionários”. Só a transformação viva de uma base social significativa podia ser o ponto de partida para lutas políticas democráticas abertas que têm por objetivo estender essa transformação mais restrita para o conjunto da sociedade.

O maio de 1968 expandiu os horizontes da política para todas as dimensões da vida cotidiana de uma maneira que não exigia sua subordinação a um “sentido maior” de política, normalmente entendido no sentido restrito de “realpolitik”, de “pragmatismo”, como se diz atualmente. Ao contrário, considerou todas as diferentes dimensões da política como valiosas em si mesmas e por si mesmas, como campos de batalha política tão importantes quanto quaisquer outros. Criou mecanismos de enfrentamento de um poder que não era mais apenas estatal, mas que se infiltrava em todas as brechas da vida social.
Não se trata aqui de edulcorar o que aconteceu factualmente em maio de 1968. Houve muita intolerância no interior dos movimentos, versões autoritárias de transformação social estavam ali presentes também. Como típico momento de transição de um paradigma de transformação para outro, o maio de 1968 foi muito mais um amálgama do velho e do novo. Só com o tempo o novo decantou e se separou definitivamente do velho modelo de transformação, ainda calcado na Revolução Francesa. Só com a sedimentação histórica, com os rumos que tomaram os movimentos de protesto e contestação a partir dos anos 1970 é que se chegou ao imaginário de 1968 que se tem hoje. Em outras coisas, o maio de 1968 também abraçou movimentos e imaginários próximos, como foi o caso do movimento hippie, por exemplo.

Como em todo episódio que se torna referência para a posteridade, também o decisivo aqui passou a ser o imaginário do maio de 1968, muito mais do que a sequência factual dos eventos. Tornou-se uma referência de transformação libertária que é hoje ponto de partida para qualquer grupo organizado que pretenda uma transformação radical da sociedade. E esse imaginário tem como ponto forte a ideia de que uma real transformação não pode acontecer mediante o sacrifício da individualidade, que a organização não pode exigir sacrifícios em nome de um futuro abstrato e longínquo, que o movimento não pode significar submissão do indivíduo a um partido ou grupo de sábios iluminados. Auto-organização não combina com estruturas verticalizadas e hierárquicas.

Na minha maneira de ver, foi esse tipo de modelo de transformação que esteve presente nos grupos mais avançados das Revoltas de Junho.
  
Da abertura democrática às Revoltas de Junho de 2013

Levar seriamente em conta o corte que representaram as duas últimas décadas do século XX no país, levar seriamente em conta a redemocratização, exige pensar o conservadorismo histórico do Brasil em nova chave. Em livros recentes[1], defendo a tese de que um dos mecanismos fundamentais desse novo conservadorismo está em uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo modificando-se ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação, em favor de um ritmo extremamente lento de democratização.

A essa cultura política dou o nome de pemedebismo, em lembrança do partido, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que capitaneou a transição para a democracia, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Mas o nome não quer dizer que essa cultura política se restrinja a esse partido, pelo contrário. Quer dizer que quase todos os partidos brasileiros pretendem, no fundo, ser – grande ou pequeno – um PMDB, ou seja, um amálgama de interesses que sempre está no governo, qualquer que seja o governo.

Coloco como marco inicial da redemocratização a aprovação da lei que reintroduziu o multipartidarismo no país, no final de 1979. E estabeleço como marco final da redemocratização as Revoltas de Junho de 2013, que, na interpretação que proponho, iniciam um novo ciclo, não mais de redemocratização, mas de democratização, de aprofundamento da democracia no país[2].

O período da redemocratização assim estabelecido, de 1979 a 2013, pode ser dividido, por sua vez, em dois grandes blocos. O primeiro, de 1979 até 1994, foi marcado pela coincidência entre o declínio da ditadura militar, a redemocratização e a crise estrutural do modelo de sociedade vigente no país por cinco décadas e que se costuma denominar “nacional-desenvolvimentismo”.

Hegemônica nesse período é a cultura política do “progressismo”, caracterizada pela diretriz de que era necessário unir todas as forças de oposição à ditadura – aquelas que abandonaram o barco em naufrágio no último momento, inclusive. A cultura política do progressismo é a primeira figura do conservadorismo típico da redemocratização, a que dou o nome mais amplo de pemedebismo.

O segundo grande bloco da redemocratização, de 1994 às Revoltas de Junho de 2013, foi marcado pela transição do nacional-desenvolvimentismo a um novo modelo de sociedade, que chamo de “social-desenvolvimentista”. Hegemônica nesse período é a cultura política da “governabilidade”, caracterizada pela ideia de que o impeachment de Collor teria demonstrado a necessidade de governos se apoiarem não apenas em maiorias parlamentares, mas em supermaiorias parlamentares, em esmagadoras maiorias congressuais. A cultura política da governabilidade é segunda figura do pemedebismo e só foi de fato abalada com as Revoltas de Junho.

Porque o traço de união das Revoltas de Junho, a meu ver, foi a rejeição à blindagem pemedebista. Mas não se trata mais de uma unidade forçada como a do progressismo, que dominou as grandes manifestações de massa no país até o impeachment de Collor, em 1992. Menos ainda pode se tratar da unidade forçada da “governabilidade”, em que não há real polarização de posições políticas, mas acomodação amorfa. Junho de 2013 representa a recusa dessa nova unidade, ainda que não necessariamente o seu final.

A rejeição ao pemedebismo veio de todos os lados e se dirigiu contra inúmeros aspectos do sistema político simultaneamente. Também por isso as Revoltas de Junho representam um grande avanço: mostram que a pauta não é mais a da transição para a democracia, em que estava em jogo a estabilização econômica e política, mas já a do aprofundamento da democracia.

As Revoltas mostram que o funcionamento do sistema está em descompasso com as ruas. A sociedade alcançou um grau de pluralismo de posições e tendências políticas que não se reflete na multidão informe de partidos políticos reunidos na coalizão governamental.

Mas um país não sai incólume de vinte anos quase ininterruptos de pemedebismo. Uma juventude que cresceu vendo uma política de acordos de bastidores, em que figuras políticas adversárias se acertam sempre em um grande e único condomínio de poder, não tem modelos em que basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da política. Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de objetivos estritamente eleitorais. O pemedebismo minou a formação política de toda uma geração. Para não falar nos efeitos deletérios que teve sobre o conjunto da sociedade.

Do lado das ruas, não é de espantar que haja uma recusa abstrata de partidos e de organizações políticas em geral. Não é de espantar que divisões políticas como aquela entre direita e esquerda apareçam como irreais ou sem sentido. Não foi justamente o apagamento de divisões como essas o que se viu no governo do país desde que o governo Lula resolveu fazer um pacto com o pemedebismo? O que se vê nas ruas vem exigir novas polarizações. Um efetivo aprofundamento da democracia poderia vir de uma organização polarizada dessas vozes.

Perspectivas

Quando se pensa democracia em sentido largo, como forma de vida, avanços sociais, especialmente contra as desigualdades, são também avanços democráticos. Mas isso não torna aceitável barganhar menos desigualdade pela aceitação de uma cultura política de baixo teor democrático. As duas coisas têm de vir juntas. Se se abstrai de um desses aspectos, o que se perde é a própria possibilidade de crítica e transformação, de diagnóstico e ação.

Do enfrentamento aberto do pemedebismo depende a construção de uma nova cultura política democrática, de instituições autenticamente social-desenvolvimentistas, de um país menos indecente em um passo mais rápido do que permite esse pemedebismo de fundo. As Revoltas de Junho colocaram a nu o esgotamento do modelo político-econômico que corresponde à fase “lulista” do projeto social-desenvolvimentista. Mesmo se os seus efeitos concretos, institucionais, ainda possam demorar a surgir claramente.

Ao mesmo tempo, colocam o desafio de alcançar a próxima figura do modelo, pensando em metas tão essenciais como ir à raiz da radical injustiça tributária, a necessária universalização com qualidade da saúde e da educação públicas, ou mesmo eliminar com relativa rapidez o setor informal da economia, em que emprego não significa trabalho, nem, portanto, direitos sociais correspondentes. Para não falar na consolidação em termos constitucionais de programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família. Ou de um desafio ainda mais complexo como o de criar as condições para a transição ambiental rumo a uma economia de baixo carbono. Apenas para ficar em alguns exemplos.

Do ponto de vista do debate público, fomentar a produção de alternativas reais de ação e discuti-las politicamente é uma das frentes de combate ao pemedebismo. O passo seguinte de aprofundamento da democracia, o da exigência de extinção do pemedebismo e de um sistema político radicalmente reformado, requer formação e aprendizado políticos que dependem de como os polos organizados da sociedade vão (ou não) se reestruturar para receber as novas energias.

É certo que a canalização da insatisfação pode se dar em um sentido progressista ou em um sentido regressivo. Esse é o risco inerente a qualquer aposta no aprofundamento da democracia. Mas uma coisa é certa: recusar o risco é jogar fora a oportunidade de transformação. Já não se trata mais da redemocratização, da transição para a democracia. As Revoltas de Junho encerraram esse ciclo definitivamente. Ao mesmo tempo em que abriram um novo, ainda mais desafiador: o da efetiva democratização da sociedade e da política no Brasil. Como e quando essas novas energias democráticas vão efetivamente plasmar novas instituições e uma nova cultura política é o desafio prático e teórico das próximas décadas.



[1] Choque de democracia. Razões da revolta, livro eletrônico, São Paulo: Companhia das Letras, junho de 2013; e Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] A opção pelo termo “revoltas” remete à tradição política brasileira de chamar assim movimentos como o que se viu em junho de 2013. A opção pelo plural (“revoltas”) pretende indicar não apenas o caráter diverso e diversificado das manifestações, mas igualmente que se trata de uma revolta realizada sob um regime democrático.

Nenhum comentário:

Postar um comentário