Pérola Lannes é graduanda em História pela UFF.
O mais importante legado intelectual de Marshall Berman é o de sua maior obra, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, isso não se discute muito. Best seller originalmente publicado em 1982 e muito influente desde então, este ensaio é referência nos estudos da contemporaneidade ao redor do mundo.
Escrito por um urbanista e filósofo o livro perpassa várias referências e contextos históricos, sempre recorrendo à literatura como recurso para entender as sociedades produtora dos textos.
Sua perspectiva é nada, ou muito pouco, historiográfica. O autor não busca a São Petersburgo imperial ou a Nova York da segunda metade do século XX para falar delas em si. Nem tampouco quer fazer uma crítica ao intento socialista ao falar de Marx. O livro não é sobre várias coisas que o autor pesquisou superficialmente.
Tudo que é sólido é uma pequena coleção de ensaios que buscam vários exemplos e problematizações de um só tema: a modernidade. Não a modernidade como estilo artístico, nem como evolução técnica ou de sistema econômico. Mas a modernidade como sentimento. Como sensação.
Não se trata, portanto, de uma tentativa de simples explanação de um contexto histórico específico, de uma modernidade estritamente datada. Trata-se da impressão (e da efetividade) de que o mundo é líquido (sim, muito como Bauman), de que todos os aspectos do construto humano são fluidos e efêmeros, desde as relações interpessoais às cidades e suas arquiteturas. De que a mudança – e a destruição que a mudança demanda – chegam de forma cada vez mais rápida e inaudita a todos os aspectos da vida de gente de todas as nações, inclusive as “subdesenvolvidas”. Enfim, o sentimento de que “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
Trata-se ao mesmo tempo de uma insegurança e um embevecimento, uma euforia; o que é curioso, mas justificado pela argumentação do autor. Sentimentos estes que parecem estar sempre se tornando mais e mais corriqueiros, porque a tendência desse conceito de modernidade é tomar conta de tudo e todos. É algo análogo ao que Weber chamou de “dessacralização do mundo”, Richard Sennett de “corrosão do caráter” e Zygmunt Bauman de “vida líquida”. Só que, argumentam os admiradores mais fervorosos da obra de Berman, com referências empíricas mais abundantes.
O caráter dessas referências foi não raro um ponto problemático quando da difusão de Tudo que é sólido. Uma das críticas que foram feitas a Berman seria a centralidade que seu discurso dá ao Ocidente. O que só pode ser pertinente, para início de conversa, se considerarmos a Rússia (ambientação de boa parte das reflexões do autor) como ocidental, o que não é de modo algum consensual. Mesmo assim a predileção pelo Ocidente pode ser justificada por conta do sentimento de modernidade ter sido tão mais intenso quanto mais industrializada a civilização a que se faz referência – o que na vasta maioria dos séculos XIX e XX foi uma prerrogativa ocidental.
Outro ponto polêmico de Tudo que é sólido foram as reflexões de Berman a respeito do Manifesto Comunista, que para ele seria uma obra literária moderna por excelência. Este capítulo é fundamental para o entendimento da proposta do autor como um todo, já que contém a diferenciação básica estabelecida entre modernidade (no sentido a que estamos nos referindo, também presente na obra de Marx) e modernização (mais tangível, processo concreto de evolução de técnicas produtivas, sistemas econômicos e tecnologia em geral).
Toda essa crítica, porém, foi vista por alguns como desconstrução da proposta socialista. De fato soa assim (embora o autor tenha refutado esta interpretação), já que o principal questionamento de Berman é difícil de ser respondido até pelos militantes mais calorosos e letrados em teoria socialista: se tudo no mundo moderno muda sem parar e num devir histórico impossível de ser detido (o que é reconhecido e apologizado pelo próprio Manifesto), que elemento extraordinário trará o socialismo e o comunismo que organizará o caos, garantirá harmonia e ausência de conflito e eventualmente manterá a humanidade para sempre no comunismo, na inércia até agora impossível na modernidade? Aconselho que os interessados leiam esse capítulo, ele explica isso muito melhor por si mesmo.
Aliás, ler o livro todo é sempre um ótimo conselho. Além de ser incontornável para os estudiosos de história contemporânea e ciências sociais em geral, a leitura é saborosa e intensa. Berman nos ofereceu uma chave de leitura do mundo em que viveram nossos antepassados mais próximos e que permanece mais atual que nunca, mesmo para a experiência da nossa geração de universitários, nascidos dez anos depois de Tudo que é sólido desmancha no ar.●
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