quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Obituário – Marshall Berman, ícone do crimepensar*, aos 72 anos -- Antonio Kerstenetzky


Antonio Kerstenetzky é graduando em História pela UFF

Marshall Berman começou seu curso sobre marxismo dizendo “Marx foi, ao lado de Emily Dickinson, o maior poeta do século XIX”. “Vejam esta frase”, disse. “’Tudo que é sólido desmancha no ar’. Ela captura o espírito do homem moderno, dividido entre a tristeza com a perda iminente das coisas que ama com a curiosidade com o que ainda está por ser realizado”.

A grande sacada de Berman foi perceber o poder filosófico da poesia. Ao chamar Marx de ‘poeta’, colocou seu heroi no panteão daqueles capazes não só de falar sobre a ‘realidade concreta’, mas especialmente sobre o espírito que recheia tantas de nossas decepções e aspirações. Quer imagem melhor para descrever o que sentiam os manifestantes que assistiram pela TV a vitória do Brasil na Copa das Confederações e depois foram protestar contra a demolição do Maracanã e a privatização da ‘arena’ erguida em seu lugar?

O sonho faustiano do “Rio, cidade Olímpica” é, aliás, impressionantemente parecido com a Nova York da mobilidade total que Robert Moses sonhou e construiu, a custo – como mostra Berman em sua Magnum opus, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – da aniquilação de todo um bairro e de sua forma de vida. A modernidade que ele descreveu ainda é a nossa. 

Em vida, Berman tentou ser o melhor homem moderno possível. O não preocupar-se com a aparência – sua única preocupação estética era a de usar roupas coloridas – acabou fazendo com que se parecesse com Marx. Mas sem seu olhar duro: os olhos de Berman revelavam o espírito de alguém que acha que uma das maravilhas da cidade moderna é a possibilidade de estranhos se apaixonarem na rua (vide a conferência que publicamos a seguir, aqui na Folha).

O Marx de que mais gostava era o dos “Primeiros escritos”, que Berman chamava de honeymoon papers – para ele, o otimismo ali presente era atribuível ao fato de Marx, recém-casado com Jenny, estar apaixonado. Naqueles escritos estava o conceito que tomou para dar norte a sua própria vida, o de Rich Human Being. (Nas palavras do jovem Marx, O “’Rich Human Being’ é simultaneamente o ser humano que tem a necessidade de uma totalidade de vida humana e atividades humanas e o homem para quem suas próprias realizações existem como uma necessidade interna”). Para Berman, é a pessoa que entende as limitações que a vida moderna impõe e as possibilidades infinitas que oferece, especialmente a de entrar em contato com e entender como vivem seus companheiros de modernidade.

Quando Berman explicava o conceito, colocava grande ênfase no que Marx disse que o indivíduo deveria ser na interação com outras pessoas. Lia em voz alta: “seeing, hearing, smelling, tasting, feeling, thinking, observing, experiencing, wanting, acting, loving” (aqui dizia, “Marx quis dizer, fucking”). O único jeito de entender o que de fato isto significa é encontrar um Mensch goethiano; com a morte de Berman, isso se tornou muito mais difícil.

Marshall Berman nasceu no South Bronx, bairro pobre de judeus Ashkenazi no norte de Nova York. Sua carreira acadêmica foi, no início, a de um self-made man – conseguiu bolsas para estudar em uma prestigiosa high school; depois em Columbia, Oxford, onde foi orientando de Isaiah Berlin, e, finalmente, Harvard. Depois de doutorado, recebeu diversos convites para ser professor nas mais prestigiosas universidades americanas, mas preferiu o City College of New York, uma universidade pública. Lá, teria liberdade para escrever sobre marxismo, mal visto nos EUA, e dar aula para um dos corpos de alunos mais diversos e plurais do mundo.

O CCNY é como a ONU. A esmagadora maioria dos estudantes vem das várias colônias de imigrantes nova-iorquinas; andando pelos corredores, é tão comum encontrar um rapaz punk quanto é encontrar uma menina de burqa; tão fácil cruzar com um americano branco do mid-west quanto com um imigrante tailandês. 

Enquanto não dava aulas, Berman aproveitava os espaços públicos que acreditava serem a melhor parte das cidades modernas (a falta deles em Brasília fez com que odiasse o Plano Piloto). Não era raro encontrá-lo lendo em bancos de madeira instalados nos canteiros centrais da Broadway (lendo no meio do caos dos carros!) ou no Central Park. Apesar dos joelhos operados, só andava a pé ou de transporte público; topava tomar um café com qualquer conhecido que encontrasse. Para minha felicidade, isso incluía alunos que, como eu, não estavam matriculados na sua aula mas que ele permitia que assistissem seus cursos. Era só dizer “Berman” para que o segurança do CCNY abrisse um sorriso e me deixasse entrar sem carteirinha (os campi nos EUA são consideravelmente menos abertos para o público que os brasileiros...).

Sua casa era como que feita de livros. Havia armários em que até as portas eram estantes, e havia cômodos em que os livros empilhados não permitiam ver a cor da parede. O banheiro os continha aos montes.

O texto que publicamos a seguir é uma conferência inédita que Berman proferiu no ano passado, em uma homenagem que recebeu na Universidade Autónoma do México. Fazia tempo que não publicávamos a Folha, mas Berman era, para nós, como um pai espiritual. Seu interesse por todas as ciências sociais, e sua preocupação de incluí-las em suas reflexões, na tentativa de fazer mais do que descrever o objeto de que tratava, é uma inspiração intelectual e algo que tentamos refletir com os textos que escolhemos para publicar. Celebrar sua memória publicando de novo este jornal é uma forma de agradecer pelo fato de ter vivido e nos influenciado.

O que torna a conferência ainda mais significativa para o público brasileiro e, em especial, para os alunos da UFF, é que ela nasceu como uma reação a um comentário que Berman ouviu quando visitou nossa universidade em 2010. Um professor, cujo nome ele não conseguia se lembrar, o acusou de afastar seus leitores dos ideais da esquerda, em especial da Revolução. Para Berman, as críticas mais dolorosas eram aquelas da esquerda – sentia que receber este tipo de reação justamente das pessoas que dizem querer mudar a sociedade queria dizer que sua mensagem não tinha sido compreendida.

Sua resposta na conferência é bastante emotiva. Não esconde a incredulidade que sente com o poder e horror de Moloch ginsberguiano que lhe são atribuídos por pessoas que deveria contar como aliadas. Seu refúgio é na reação que tantas outras tiveram, especialmente no Brasil. Digo sem receios que Tudo que é Sólido abriu meus olhos para as possibilidades criativas da vida acadêmica. Em especial, me convenceu do poder do ensaio como instrumento de iluminação... Mas, principalmente, me deixou feliz saber que haviano mundo alguém tão livre para escolher sobre o que escrever e estudar.

Marshall Berman morreu no dia 11 de setembro de 2013, no Upper West Side, a poucos metros de casa, em Nova York, aos 72 anos. Deixou a mulher, Shellie, e dois filhos, Danny e Eli.●

* Crimepensar é o ato criminoso de manter crenças tácitas ou dúvidas que se opõem ou questionam o partido no poder. Termo em Novilínguia, idioma inventado por George Orwell em 1984.


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