A personagem que narra
este romance é uma historiadora. Narradora de um livro, cuja primeira frase é
um conselho: “não façam história”. E assim, pela via da negação, o enredo segue
como uma declaração de amor à história do Brasil.
Aqueles que fizeram
faculdade de história provavelmente sentiram a mesma angústia que eu e alguns
colegas sentimos, ao vermos o final da graduação se aproximar. Não só porque
gostávamos do curso, mas também porque se aproximava o desemprego: o que fazer?
Prosseguir nos estudos com mestrados e doutorados? Com quais garantias de
futuro? Dar aulas em escolas? Fazer pesquisa? Onde? Por qual salário?
Essa não é angústia
que recai só sobre os graduandos de história, recai sobre inúmeras carreiras,
mas entre os alunos das ciências humanas costuma ser mais cruel. Entretanto,
mesmo diante de algumas desistências (como colegas que fazem outra graduação,
que partem para os concursos públicos de tribunais e bancos, que seguem para
outros trabalhos), alguns persistem. Por quê?
Porque gostam.
Sim, nós amamos
história. Como disse Marc Bloch ao seu neto, a história nos diverte. E para
alguns: isso basta.
Para mim, que sou
graduada e mestre em história pela UFF, essa diversão quase sempre me bastou. Via-me
por vezes imersa e encantada com os textos das disciplinas (ou ao encontrar as
fontes do meu mestrado no Arquivo Nacional), por outras preocupada com as
poucas oportunidades da carreira. E, assim, entre amar a história e me
repreender pela escolha da carreira, não me via recomeçando do zero em outra
graduação.
Passei no concurso para
historiadora do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), uma autarquia do
Ministério da Cultura. Esse foi um concurso com vagas para museólogos,
sociólogos, arqueólogos, historiadores, antropólogos: nós de humanas. Tive
contato com inúmeros museus que não conhecia, seus acervos e histórias fantásticas.
Um deles me chamou mais atenção: o Museu Casa da Hera, em Vassouras, onde viveu
a financista Eufrásia Teixeira Leite. E eu, que sempre amei a história assim
como amo a ficção, acreditei que poderia narrar a história desse museu (e de
seus personagens) por intermédio de uma historiadora tão apaixonada, e ainda
assim tão dividida, quanto eu e outros tantos que conheço: Desirée.
Desirée é uma mistura
de inúmeros colegas da graduação e do mestrado. Para aqueles que tentam me
encontrar nela, eu digo: não sou eu, somos nós. Assim, frustrada com os baixos
salários e as poucas oportunidades da carreira, Desirée tenta alertar os
leitores sobre os perigos dessa opção de vida. Mas ela própria não consegue se
desvencilhar da carreira que tanto ama.
Apaixonada por
história do Brasil, a personagem descobre no novo trabalho a história de
Eufrásia Teixeira Leite e o abolicionista Joaquim Nabuco. Ao começar a
trabalhar na antiga residência de Eufrásia, a protagonista é surpreendida por
esse romance e faz uma viagem sem volta ao século XIX, por meio das cartas
trocadas entre os dois.
Eufrásia Teixeira
Leite foi uma mulher do século XIX que decuplicou a herança do pai no mercado
financeiro, doou-a para instituições de caridade religiosas de Vassouras, não
se casou nem teve filhos, um fenômeno raro para a época. No entanto, corre a
lenda de que ela teria pedido para ser enterrada com as cartas do noivo.
Percebi, de imediato, que havia uma complexidade naquela mulher que precisava
ser explorada.
O noivo era o famoso
Joaquim Nabuco. Como se não bastasse a luta pela abolição da escravatura na
qual se engajou (que foi uma das maiores batalhas políticas desse país), Nabuco
foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, amigo de Machado de
Assis, amigo de Eça de Queirós, deputado, diplomata, e historiador.
Rica e inteligente,
esta senhora de escravos desperta uma paixão inconciliável no abolicionista. O
famoso casal vive uma história de amor entre o Brasil e a Europa, com muitas
correspondências, viagens e encontros. Amor que só se concretiza, quando os
dois equalizam as divergências ideológicas e tornam-se um só sentimento, ainda
que por pouco tempo.
A ideia do romance era fazer Desirée e os leitores terem contato com as
cartas escritas por Eufrásia, transcrições das originais guardadas pela
Fundação Joaquim Nabuco, e encontrar as desaparecidas cartas escritas por
Nabuco. E, assim, costurá-las com os eventos históricos que o país vivia. Fiz
questão de casar as cartas com os diários de Nabuco, e toda vez que Eufrásia
era mencionada, eu transcrevia o que ele dissera e recriava a cena: como o
primeiro Natal em Paris, o reencontro com ela em Roma alguns meses após o
término do noivado, o reencontro na casa da Princesa Isabel. Isso tudo
aconteceu, ele próprio documentou. Também recriei algumas cenas de infância que
Nabuco narrou no livro Minha formação.
Entre os gaps das fontes, a ficção do romance saltava mais alto, mas sempre
tentando amparar-se na verossimilhança.
Desirée submergiu nas águas escuras da história e eu ainda não consegui
reencontrá-la.
Se você, assim como ela, também se perde em seus textos e suas fontes
com tanta facilidade, e quiser ler o livro, ele pode ser encontrado em seu
formato digital no site da Livraria Saraiva. O livro físico pode ser encontrado
no site da Editora Baraúna ou no site da Livraria da Travessa. ●
Eneida Queiroz é graduada e mestre em História pela UFF
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