domingo, 23 de março de 2014

Por uma vida um pouquinho mais inútil - Beatriz Reis

Beatriz Reis é graduanda em Comunicação Visual pela UFRJ.

No último período decidi me inscrever em algumas matérias do curso de filosofia, pois estava considerando a possibilidade de pedir transferência e queria conhecer as disciplinas. Na primeira aula, tive uma breve conversa com um professor. Eu só queria lhe dizer que eu não fazia graduação em filosofia e lhe pedir alguma bibliografia complementar. O diálogo foi mais ou menos este aqui:
Eu: Será que você poderia me indicar alguns livros sobre o assunto que discutiremos na aula? Eu estudo comunicação visual e (...).
Professor: Que ótimo! É claro que posso, anota aí (...) mas me diz uma coisa... Por que você está aqui? Como é que essa aula será útil para você?
Não à toa, essa pergunta me deixou sem palavras. A questão era bastante absurda, pois a utilidade daquela aula me parecia ao mesmo tempo tão óbvia e tão absolutamente desnecessária de ser questionada que não soube o que responder.
Pensando bem, eu não estava esperando nenhuma serventia daquela aula. Eu não estava pensando se ela me seria útil ou não. Eu estava, simplesmente, com vontade de aprender mais sobre aquele assunto, mesmo achando que ele não me traria qualquer vantagem aparente (ao menos no que diz respeito ao exercício da minha profissão, que era o que estava em jogo no diálogo empreendido). No fim das contas, parei de ir às aulas, que eram bem chatas, mas essa questão não saiu da minha cabeça.
O dicionário define “útil” da seguinte forma: adj m+f (lat utile) 1 Que tem ou pode ter algum uso, ou que serve para alguma coisa. 2 Vantajoso, proveitoso.
É claro que a tal disciplina serve para alguma coisa e é proveitosa, de alguma forma. Isso é realmente óbvio. Mas eu percebia que a questão não era bem essa, ele não estava questionando sua utilidade enquanto professor, nem mesmo a utilidade de sua disciplina dentro do fluxograma da graduação em filosofia. A coisa era pessoal: “como é que essa aula será útil para você?”...
Eu poderia ter respondido essa questão com um bocado de frases feitas: “só levamos da vida o que aprendemos” ou “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Mas essas respostas também não pareciam suficientes, pois eu sentia que o “útil” aqui, não era o que seria útil apenas para mim, mas o que faria com que eu me tornasse mais útil para o mundo. Ou seja, como é que aquela disciplina me tornaria uma artista visual mais utilizável?
Sinceramente, ainda não sei responder a esta pergunta. A verdade é que estudar filosofia estava, de certa forma, me inutilizando enquanto designer: eu estava pensando mais, lendo mais e, a cada dia, me interessando menos pela prática do design. Eu estava cada vez mais lenta, mas cada vez mais culta. Se me dessem um tempo, eu (acho que) criaria bons projetos. Mas não, não me deram, pois o “é pra ontem!” impera nos escritórios. Platão não tem nada a ver com um projeto de embalagem para uma marca de biscoitos. Eu me sentia, então, em um limbo: nem designer, nem “filósofa”. E a ideia de que eu deveria ser, de alguma forma, útil/utilizável me fazia tremer de medo.
Comecei a perceber a enorme quantidade de coisas “inúteis” que eu fazia durante a semana. Coisas que não estavam me ajudando a ser alguém mais utilizável, mas me ajudando a viver e a me sentir confortável com a (única) vida que tenho. Devo incluir nessa categoria todos os livros que li no mês passado, as horas que perdi assistindo aos filmes da Sessão da Tarde e o tempo que gastei olhando para o céu, sem fazer absolutamente nada.
Há quem vá justificar tudo isso através de uma lógica pró-utilidade, dizendo que é necessário que eu descanse ou que ler livros me torna mais inteligente e que ver filmes me deixa menos estressada e, por isso, todas essas coisas aparentemente inúteis, são, afinal, muito úteis. Mas é justamente esse o ponto que tanto me incomoda. Podemos sempre pensar do modo mais corriqueiro: tudo o que você faz, todas as coisas novas que você aprende, serão boas para você, logo, acabarão sendo úteis. Atrelamos, portanto, a utilidade de uma coisa aos benefícios que dela tiramos. Até aí tudo bem, mas será que precisamos mesmo justificar todos os nossos atos, todas as nossas vontades, interesses, hobbies, através dessa lógica?
Por que será que é tão desconfortável sentir-se inútil? Por que é tão difícil parar um pouco? Se nos damos conta de que a vida é uma enorme ausência de sentido, toda a utilidade aparente vai para o lixo. Nesse caso, dizer que algo é útil porque te trará um conforto qualquer ou te permitirá alguma coisa no futuro, só esconde o medo que sentimos de que tudo o que fazemos não é útil para nada, de que todas as nossas ações são fundadas nesse mesmo medo e que só nos movemos porque ficar parado é assustador.
Este, porém, não é um ensaio anti-utilidade. Contudo, acho que deveríamos fazer uma força para enxergar que a linha que divide o útil do inútil é uma invenção nossa. No fim das contas, ambos são exatamente a mesma coisa. Precisamos aprender que “tudo bem” se nada do que fizermos der em lugar nenhum; ou “tudo bem” se nada faz mesmo muito sentido.
A verdade é que nos sentiríamos bem mais livres se tentássemos parar de dividir todas as nossas ações e interesses entre úteis e inúteis. Na impossibilidade de agir dessa forma, o inútil se apresenta como saída possível, como fim-de-linha para a absurda lógica do movimento constante da utilidade. Parar, nesse caso, não significa deixar de pensar, estudar, trabalhar, mas adotar outra perspectiva, onde não precisamos nos justificar o tempo todo; onde nossa vida é um pouquinho mais inútil, mas muito mais vida.

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