Fernando Muniz é professor do departamento de
Filosofia da UFF, e um dos mais célebres platonistas brasileiros. Entre suas
obras mais importantes destacam-se A
Potência da Aparência: um estudo sobre prazer e sensação nos Diálogos de Platão
(2011) e O Filebo de Platão (2012),
em que traduziu pela primeira vez ao português este diálogo. O seguinte artigo
é uma versão, editada por Luiz Eduardo Freitas, de
conferência realizada originalmente em agosto de 2010 na XI Semana de
Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio.
Aqui tratarei da questão do
platonismo e do antiplatonismo. Sem dúvida, um tema filosófico intermitente e
amplo demais. Isso porque os diálogos platônicos formam um monumento que se
tornou uma espécie de esfinge pelo fato de a história da filosofia tê-lo tomado
como a referência fundamental para a própria constituição da filosofia.“Nós, os
platônicos...” – já dizia o primeiro filósofo antiplatônico de vulto,
Aristóteles, no seu extraordinário esforço de suplantar o mestre. De
Aristóteles aos filósofos contemporâneos, o reconhecimento da herança platônica
manteve sua pertinência e sua impertinência. É verdade que à medida que se
desenvolveu a partir da modernidade a consciência da sobredeterminação a que
foi submetido o pensamento Ocidental pelo pensamento platônico, essa
consciência gerou reações diversas e algumas delas radicais e exasperadas.
Mas antes de
tratar especificamente dos exasperados, vou exemplificar o papel histórico da
filosofia platônica com a celebérrima frase de Whitehead: a filosofia ocidental
não fez mais do que colocar notas de rodapé na obra de Platão.
A frase
reconhece uma função premonitória da filosofia platônica, fazendo dela uma
espécie de hipertexto em que os filósofos posteriores a Platão - Kant e Hegel,
por exemplo - teriam uma função apenas secundária de desenvolver e explicar
temas e problemas já contidos embrionariamente no texto dos Diálogos. Mas há outra dimensão
interessante na sentença de Whitehead. Se as notas explicativas ou críticas
possibilitam a reprodução inevitável do platonismo no futuro, o que dizer das
notas de referência do próprio Platão?
Ele cita no corpo dos Diálogos
filósofos anteriores a ele, como Heráclito e Parmênides. Em muitos casos, no
entanto, a referência é indireta, como no caso dos “Amigos das Formas” e, em
outros casos, a referência simplesmente não é feita, como em relação a
Demócrito. O trabalho crítico que estabelece a relação do texto platônico com
essas fontes externas permite que se produza - ainda que sob o efeito de um
fascínio - uma miragem platônica sobre os filósofos anteriores a ele. Portanto,
se há uma projeção da imagem do platonismo no futuro, através das notas
explicativas ou críticas, há, em contrapartida, uma projeção do platonismo no
passado, por meio das notas de referência explícitas ou elaboradas por
comentaristas e intérpretes. Projetada assim no passado e no futuro pelas notas
de pé-de-página, a filosofia platônica alcança uma atemporalidade que é
indiscernível da própria história da filosofia.
No entanto, paralela
à idéia de um Platão iluminado, uma sombra espessa também começou a se
desenvolver. Estou me referindo ao fato de que, desde a Antiguidade, ao mesmo
tempo em que Platão e os seus Diálogos
eram louvados como uma obra de originalidade radical, uma corrente
antiplatônica trabalhou arduamente para provar que o divino Platão era, na
verdade, uma fraude, ou seja, um plagiário. Uma leitura perversa de Aristóteles
permitiu que Pitágoras, Heráclito, Sócrates, vistos por Aristóteles como
influenciadores, fossem transformados em vítimas de apropriação intelectual
praticada por Platão.
O
antiplatonismo da Antiguidade chega parecer inocente perto do que nós
conhecemos hoje. Mas a ideia absurda de que Platão usurpou ou se apropriou de
textos de outros autores, pareceu convincente para muitos estudiosos durante
séculos. No séc. IV de nossa era, eruditos como Diógenes de Laércio, Ateneu de
Náucratis e Porfírio dedicaram-se a mostrar que Platão não tinha nenhuma
originalidade. As fontes de tais acusações remontam ao IV séc a.C. São, por
exemplo, Theopompo de Chios (IV ac), um historiador antiplatônico que
denunciava o plágio de Platão de Aristipo de Cirene e de Antístenes. Outra
fonte mais antiga é Aristóxenos de Tarento, (IV Séc. Ac.) acusava Platão de
plagiar Demócrito e Protágoras. Segundo Diógenes de Laércio (IX 40),
Aristóxenos afirmava que Platão teria plagiado Demócrito. Essa seria a razão
pela qual Demócrito, a despeito da evidente influência que exerceu sobre Platão,
não ter sido citado nem uma só vez nos Diálogos. Ainda segundo Aristóxenos, Platão
teria tentado obter todos os livros de Demócrito para queimá-los e esconder
assim seu plágio.
Ao lado desta
ridícula imagem do Platão plagiário mantinha-se a não menos plausível do Platão
divino e original. Outras tantas imagens antitéticas foram construídas ao longo
da história da interpretação de Platão. Temos um Platão dogmático ao lado do
cético, um questionador anti-sistemático ao lado de um hábil construtor de
sistema, um Platão fervoroso místico, outro, dialético frio e interessado
apenas em lógica. Um libertário ao lado de um totalitário fascista, um poeta
incomparável ao lado de um inimigo mortal da arte, um Platão gênio matemático
ao lado de um mero retórico etc. Isso nos leva a uma questão: qual a fonte
dessas imagens incompatíveis? Por que Platão, à diferença da maioria dos
filósofos, não permite uma imagem consensual? Essa pergunta incomoda tanto os
defensores do platonismo quanto os antiplatonistas militantes. A resposta deve ser
buscada no modo de exposição da filosofia platônica. Daí seguem alguns
elementos:
(1) Platão
não escreveu tratados como Kant, escreveu dramas filosóficos. Não aparece em
nenhum dos seus diálogos. Esse anonimato impede que se possa dizer de modo não
problemático: “Platão afirma” isso ou aquilo. Platão, como o leitor, está
sempre em silêncio. O silêncio grave ou silêncio irônico de quem observa a cena
filosófica.
(2) Nos
dramas não encontramos tratamentos sistemáticos de tópicos isolados. Os temas
éticos, políticos, cosmológicos, ontológicos, estéticos, epistemológicos estão
todos entrelaçados. Platão não pensa por disciplinas estanques, pensa a
pluralidade dos fenômenos filosóficos.
(3) Quem fala
por Platão nos Diálogos? Há que se
decidir sobre isso. Platão tem porta-voz ou porta-vozes? Seria Sócrates? Mas o
que dizer do Estrangeiro de Eléia no Sofista
e do Ateniense no Timeu? Por que
Platão tomou essa decisão de não falar em nome próprio? Há que se decidir sobre
isso também.
(4) Podemos
falar de teorias gerais em Platão? A história do platonismo nos diz que sim,
transformando a diversidade dos diálogos em um sistema integrado. Uma tarefa
muitas vezes tentada, mas fadada ao fracasso. Podemos, sim, forçar os
enunciados espalhados pelos Diálogos
a dizer a mesma coisa, preencher lacunas, eliminar contradições, ambiguidades
até formar um todo coerente e uniforme. Este é o sonho dos antiplatônicos e dos
adeptos do platonismo. Seria preciso fazê-los acordar desse sonho.
Como eles
fazem com que os Diálogos dialoguem
entre si de modo sistemático? Uma das táticas usadas para forçar essa
comunicação foi durante séculos a técnica da atetização, ou seja, cortar do texto aquilo que é considerado
espúrio. Essa técnica hermenêutica foi uma das armas para forçar o texto platônico
a se comportar como sistema. O pressuposto geral desse procedimento é o
seguinte: qualquer palavra, frase ou passagem do corpus platônico é
virtualmente suspeita. Para que sejam inocentadas elas precisam comprovar a
interpretação do investigador.
O
antiplatonismo moderno foi muito além do limite da atetização. Afinal, os
autodenominados “Mestres da Suspeita” precisavam fazer melhor do que meramente
amputar o texto platônico. Os Mestres da Suspeita trouxeram pequenas tesouras
afiadas, não para cortar, mas para recortar o texto platônico. Mas o que
queriam eles ressaltar com seus recortes?
Para
responder a essa pergunta precisamos reconhecer que o antiplatonismo moderno,
diferente do antigo, surgiu da consciência de que lutar contra Platão é uma luta
vã. Kant já tinha observado isso. Para Kant, ser antiplatônico é ter em comum
com o platonismo os mesmo problemas, postulados e pressupostos. É produzir
apenas uma resposta diferente para a mesma questão. Por causa de Kant, a
palavra de ordem contra Platão passou a ser: não lutar contra ele, não se opor
a ele, mas revertê-lo, revirá-lo. Por que revertê-lo? Na trilha de Kant:
Nietzsche anuncia que a filosofia dele pretende ser um “platonismo revertido”.
Mas de que
eles estão falando? De qual Platonismo? Querem atacar a doutrina das Formas,
querem atacar a separação entre inteligível e sensível, entre corpo e alma? A
resposta não parece ser tão simples. Eles têm uma ambição mais vasta e
profunda; querem destruir a Metafísica. Mas como a Metafísica é identificada
por eles ao platonismo e o platonismo, por sua vez, à filosofia, a tarefa do
pensamento, portanto, não pode ser outra senão a destruição da filosofia.
Nietzsche e
Heidegger teriam analisado os sintomas, dado o diagnóstico e receitado a
terapêutica, e seus fiéis discípulos franceses se incumbiram de realizar a
tarefa.
Deleuze,
Derrida, Foucault e Lyotard, apesar das distâncias teóricas e políticas que
eventualmente os podem separar, parecem estar unidos quanto aos inimigos comuns:
Platão e o platonismo.
O que eles
entendem por platonismo não é tão fácil de compreender, principalmente para
quem está um pouco familiarizado com a filosofia dos Diálogos. De um modo geral, essa compreensão pode ser resumida
assim: a motivação verdadeira do platonismo é caçar fantasmas e simulacros e
declarar a diferença impensável e enviar a diferença e o simulacro para o fundo
dos oceanos. É o que diz Foucault no seu Teatrum
Philosoficum. Derrida, por sua vez, afirma que se esforça na crítica contra
a reapropriação incessante desse trabalho do simulacro em uma dialética de tipo
hegeliana. Por isso, propõe a reversão, para salvação dos simulacros.
Para efetuar
a reversão, os pós-estruturalistas franceses empregam uma estranha
hermenêutica. Preferem não ler os Diálogos.
Ignoram na obra a sua diversidade, tomam o sentido como dado. Estranha
estratégia em nome da diferença. Tudo se passa como se Platão já tivesse cometido
o crime da instauração da Metafísica; agora, a tarefa seria apenas fazer com
que seu texto confessasse. Em suma, como no caso do Big Bang, busca-se
indícios, marcas, resíduos, reverberações do Acontecimento fundamental da
história do Ocidente.
Heidegger,
por exemplo, no seu único texto dedicado a Platão, a doutrina de Platão sobre a
verdade concentra-se apenas numa pequena frasezinha em 517c4, ante kuria aletheia. Ali, nessas três
palavrinhas, ele escuta o eco da verdade como desvelamento sendo subjugada pela
Forma. Derrida segue o mesmo
procedimento: afirma que no Fedro 275a5
a história é cortada em duas. Foucault, no Uso
dos Prazeres não faz outra coisa: concentra-se apenas no Banquete 201d e no Fedro 256a.
Curiosamente,
a leitura de reversão de Platão preocupada em recortar pequenos fragmentos que
comprovem a criação do Acontecimento-Big-Bang da Metafísica não resiste ao
teste de fidelidade de um pedacinho sequer do texto de Platão. Vou exemplificar
essa fragilidade interpretativa com a história de uma conversão.
Durante a
conversa travada nos momentos que antecedem a sua morte no Fédon, Sócrates faz uma afirmação intrigante: a filosofia é um
exercício de morte. Em 80e, ele desenvolve a sentença: “Aquele que mantém a
alma concentrada em si mesma e afastada de qualquer relação voluntária com o
corpo, exercita-se em morrer”. Essa é a verdadeira filosofia, um exercício de
morte (meléte thanátou). A imagem de
Sócrates que dominou o século passado foi gerada, em parte, pela interpretação
nietzschiana dessa passagem. O exercício de morte socrático para Nietzsche é a
prática de um decadente, de alguém que experimenta a vida como uma doença. É
dessa maneira que, em O Crepúsculo dos
Ídolos, Nietzsche se refere a Sócrates ou ao problema que ele propõe.
Sócrates teria estado doente durante muito tempo. Na verdade, afirma Nietzsche
foi ele quem forçou Atenas a executá-lo. Aquilo que parecia ter sido um
assassinato jurídico foi, na realidade, um suicídio.
Nietzsche dá
uma importância enorme às últimas palavras de Sócrates no leito de morte. Vê
ali a confirmação de uma suspeita. Diz
ele na Gaia Ciência, 340: “Terá sido
a morte ou o veneno ou a piedade ou a malícia – alguma coisa lhe desatou a
língua e ele falou: ‘Criton, eu devo um galo a Asclépio’. Essa ridícula e
terrível ‘última palavra’ quer dizer para todos os que têm ouvido: ‘Críton, a
vida é uma doença’”. Nietzsche acertadamente entende que a oferenda a Asclépio,
o deus da medicina, supõe uma cura realizada pelo deus, mas imediatamente
conclui que se trata da morte como cura da doença da vida.
Ironicamente,
a História quis que um antiplatônico contestasse de forma incisiva essa
interpretação. Foucault, em uma das suas últimas conferências, precisamente em
15 de fevereiro de 1984, poucos meses antes de sua morte, investe contra a
interpretação Nietzsche da passagem.
Nesta
conferência, Foucault ataca alguns pequenos pontos cruciais da interpretação de
Nietzsche. O principal é o seguinte: Sócrates não diz “eu devo”, mas nós “devemos um galo a Asclépio”. Não
há, portanto, como Nietzsche tenta nos fazer acreditar, uma dívida individual,
mas, sim, coletiva. O problema é, assim, deslocado, mas não eliminado. Resta
saber qual doença e por que a dívida é coletiva. Perguntado na época sobre a
posição de Nietzsche sobre Sócrates: Foucault respondeu: “Ele estava errado
como em tantas outras coisas.”
Para concluir
essas observações imprecisas, menciono as
palavras atribuídas ao próprio Platão na Carta 7 e que tem resistido
bravamente às tentativas de athetização.
Diz ele em 341 b-d:
“Existe pelo menos uma coisa que eu posso afirmar com veemência, sobre todas as pessoas que escrevem ou que escreverão e se declaram competentes sobre o objeto de minhas preocupações [...]: é impossível que tenham compreendido alguma coisa sobre o assunto. Não há nenhuma obra escrita sobre isso nem jamais haverá”.
Esse trecho da carta não nos coloca diante de uma possível interpretação mística de Platão? Algo como se esses textos que conhecemos (esotérios ou exotéricos) seriam incapazes de nos revelar esse objeto?
ResponderExcluirVocê está certo, Louco, em relação à interpretação esotérica de Platão. Essa passagem é crucial para a adoção da ideia de que o fundamental do pensamento platônico estaria restrito ao ensino oral. Aliando essa passagem àquela do Fedro sobre as limitações do texto escrito, os esotéricos julgam ter encontrado a chave hermenêutica dos Diálogos. Uma chave que acaba sendo mística, você tem razão também sobre esse ponto.
ResponderExcluirMas essa não é a única possibilidade de leitura do texto - pelo menos eu não o leio desse modo. Platão não é um personagem dos Diálogos, não apresenta doutrinas, conceitos e argumentos, mantém-se sempre à distância, como um dramaturgo da sua peça. Quem afirma “Platão afirma isso ou aquilo” não sabe o que fala. O que podemos dizer a esses especialistas nas intenções de Platão é que eles devem ler os Diálogo. Pois, o objeto das preocupações de Platão aparece sempre dramatizado. Foi assim que ele julgou ter encontrado a maneira de manter a filosofia sempre viva: o leitor não tem acesso direto ao pensamento de Platão, tem acesso a teia de questões, conceitos e argumentos que o desafiam a entrar no jogo dialético. Sem dúvida que assim é mais difícil; a filosofia platônica é a experiência do pensamento, arriscada, rigorosa, precária, livre e, por isso, indispensável para a vida.
F. Muniz