Ronald Raminelli é professor do departamento de História da
UFF. É um dos mais importantes pesquisadores em História Moderna no Brasil,
tendo recentemente se dedicado ao tema da nobilitação no Antigo Regime, foco deste
artigo. Publicou, entre outros livros, A
Era das Conquistas (2013) e Viagens
ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância (2008), além de ter
organizado diversos volumes sobre história colonial e história da América.
Tema sensível e sujeito a controversas, honras e privilégios
eram suplicados, disputados, exibidos e até mesmo falsificados pelos súditos do
rei no Antigo Regime. A distribuição de mercês era tanto um potente mecanismo
que estruturava a sociedade como condição para ampliar as alianças capazes de
sustentar o poder régio. Marcadores da nobreza, os hábitos de Ordens Militares,
os foros de graduação da Casa de Sua Majestade e os brasões de armas promoviam
a honra dos súditos e seu afastamento do vulgo. Mesmo incapazes de viabilizar as
mesmas benesses vinculadas aos títulos de nobreza, tais distinções eram
almejadas por boa parte dos moradores do ultramar português, sobretudo quando
se sabe que aí não se residia a alta nobreza. Como ver-se-á, ser nobre era
sinônimo de privilégios, honras, isenções e liberdades. Não raro as insígnias
nobiliárquicas eram exibidas em roupas e casas, ou seja, estavam bem visíveis
no cotidiano das vilas e cidades coloniais. Aliás, os protocolos e as
precedências exerciam também importante papel simbólico nas festas e
cerimônias, pois determinavam a posição social superior dos moradores
agraciados com as mercês régias. À época, ser ou não ser nobre era crucial para
se desfrutar de algumas benesses.
Em janeiro de 1726, os oficiais da câmara do Rio de Janeiro
escreveram ao soberano para denunciar a presença de falsos nobres na urbe:
“Costumam vir a esta cidade muitos vadios e homens sem pouca consideração”, que
para obter vantagens recorriam aos símbolos da nobreza. Contra os serviços de
Deus, do rei e do bem comum, eles simulavam a honra e assim enganavam os
moradores que os concebiam como homens de bem, pessoas de bom procedimento.
Eram de fato as aparências, talvez as insígnias, que incentivam a boa recepção
dos falsários, facilitavam o fechamento de negócios e promoviam a injúria dos
locais, “os quais ficam enganados, prejudicados, além deste dano, é coisa
injuriosa, que estes vadios queiram violar a gravidade das coisas de que são
indignos”. Para evitar golpes, os homens da câmara suplicavam ao soberano que todas
as pessoas que passassem pela capitania do Rio de Janeiro fossem obrigadas a
registrar no senado da câmara as mercês concedidas pela monarquia. Para além de
assegurar a veracidade dos hábitos, foros e brasões, os oficiais pediam para
aqueles que se faziam de nobres fossem multados em duzentos mil réis, soma
entregue em parte ao senado da câmara. Sem tais documentos, “sendo
compreendidos em falsidades”, os forasteiros eram entregues a justiça para
proceder contra a violação. Direcionada a D. João V, a carta não teve
desdobramentos, ao menos nada restou para além do despacho ininteligível do
secretário do Conselho Ultramarino, André Lopes de Lavre.
Em princípio, a carta dos oficiais da câmara nos remete aos
vínculos entre lealdade e nobreza, entre honra e bons negócios. Estribados nas
insígnias nobres, os moradores da cidade confiavam nos forasteiros e “contraíam
com eles negócios”, mas eram ludibriados pela falsa identidade. Do ponto vista
desta carta, o comércio era o alvo visado pelos falsos nobres, razão para
proteger os mercadores da localidade. Ao evitar enganos, a câmara do Rio de
Janeiro almejava ter ciência e registro das mercês, prova cabal dos provimentos
de ofícios e dos privilégios recebidos. Na monarquia portuguesa, cabia às
câmaras reinóis e ultramarinas preservar a memória administrativa das
localidades; em exercício, os edis atuavam fosse como polícia e justiça em
primeira instância, fosse no controle do comércio e do aparelho urbano.
Justificava-se então a vigilância sobre os alvarás, foros e brasões, pois as
mercês por vezes se vinculavam a isenções e liberdades no âmbito econômico. A
súplica ao monarca indica, porém, que a prática de registrar as mercês não se
verificava no Rio de Janeiro. Como a carta dos oficiais não teve desdobramentos,
acredito que o Conselho Ultramarino[1]
não via como necessário o controle camarário sobre a nobreza radicada na
capitania.
Embora não se tenha outra notícia do interesse camarário
para registar as mercês, coibir, multar e prender os “falsos nobres e trapaceiros”,
o episódio nos remete a temas da maior importância para o ultramar
luso-brasileiro. Vale então enumerá-los, pois os documentos nos demonstram não
somente os complexos limites entre nobres e mecânicos no ultramar, mas
sobretudo a diferença entre a “nobreza da terra” e a nobreza respaldada pela
monarquia, ou seja, portadora de papéis semelhantes aos solicitados pelos
ofícios da câmara do Rio de Janeiro, como indicado acima. Aliás, aí os homens
bons da câmara eram parte da nobreza, alçados a esta condição quando receberam
os mesmos privilégios da câmara do Porto, mercê concedida pela monarquia aos
cidadãos de vários municípios luso-brasileiros.
Vale ainda aqui mencionar o intenso e desordenado
crescimento da cidade em meio às descobertas de ouro nas Minas Gerais e aumento
do comércio. Como porto de chegada de gentes provenientes do reino e do próprio
ultramar, a cidade tornou-se espaço de grande movimentação de pessoas e de
mobilidade social. Tal conjuntura promoveu, por certo, ambiente apropriado para
o aparecimento dos nobres sem papéis. Aliás, nas sociedades do Antigo Regime, o
ethos nobiliárquico era difuso, capaz
de mover homens localizados nos mais diferentes patamares da hierarquia social.
De fato, a incipiência e a instabilidade das sociedades americanas permitem
entender que os significados da nobreza nos trópicos se multiplicaram.
Como salientou Stuart B. Schwartz, no ultramar, as
diferenças entre fidalgos e plebeus “tenderam a nivelar-se, pois o mar de
indígenas que cercava os colonizadores portugueses tornava todo o europeu, de
fato, um gentil-homem em potencial”. A escravidão de índios, negros e a
crescente população mestiça potencializaram o ideal ibérico que concebia o não
trabalho como primeira condição para identificar os nobres. Para além da origem
judia e moura, a cor da pele era determinante para distinguir os nobres dos
mecânicos na colônia, embora este impedimento pudesse, por vezes, ser
relativizado. De todo modo, fossem portugueses, brasílicos, chefes indígenas,
pretos ou mulatos, as estratégias de enobrecimento pouco diferiam, quando
apresentavam-se como leais vassalos, serviam ao soberano e suplicavam por
mercês. Como parte da estratégia de nobilitação, no Setecentos, militares,
mineiros e comerciantes foram incitados a comprar tanto o perdão régio pelos
defeitos mecânicos[2] e
os papéis que comprovavam serviços militares, quanto os próprios títulos de
cavaleiros das Ordens Militares. A avidez pela ascensão social não era tão
evidente no reino, onde mercadores pobres, negros e mulatos tinham mais
dificuldades tanto de enriquecer ou de servir como soldados quanto de esperar
pelas graças do monarca.
A grande mobilidade social e o rápido crescimento da cidade
por certo explicam o cuidado dos oficiais da câmara na preservação dos privilégios
da nobreza. Além de manter a ordem, os homens bons da câmara procuravam impedir
que mercadores endinheirados se infiltrassem no comando do município e
quebrassem o monopólio da “nobreza da terra”.
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