domingo, 23 de março de 2014

Da nobreza colonial: séculos XVII e XVIII - Ronald Raminelli

Ronald Raminelli é professor do departamento de História da UFF. É um dos mais importantes pesquisadores em História Moderna no Brasil, tendo recentemente se dedicado ao tema da nobilitação no Antigo Regime, foco deste artigo. Publicou, entre outros livros, A Era das Conquistas (2013) e Viagens ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância (2008), além de ter organizado diversos volumes sobre história colonial e história da América.






Tema sensível e sujeito a controversas, honras e privilégios eram suplicados, disputados, exibidos e até mesmo falsificados pelos súditos do rei no Antigo Regime. A distribuição de mercês era tanto um potente mecanismo que estruturava a sociedade como condição para ampliar as alianças capazes de sustentar o poder régio. Marcadores da nobreza, os hábitos de Ordens Militares, os foros de graduação da Casa de Sua Majestade e os brasões de armas promoviam a honra dos súditos e seu afastamento do vulgo. Mesmo incapazes de viabilizar as mesmas benesses vinculadas aos títulos de nobreza, tais distinções eram almejadas por boa parte dos moradores do ultramar português, sobretudo quando se sabe que aí não se residia a alta nobreza. Como ver-se-á, ser nobre era sinônimo de privilégios, honras, isenções e liberdades. Não raro as insígnias nobiliárquicas eram exibidas em roupas e casas, ou seja, estavam bem visíveis no cotidiano das vilas e cidades coloniais. Aliás, os protocolos e as precedências exerciam também importante papel simbólico nas festas e cerimônias, pois determinavam a posição social superior dos moradores agraciados com as mercês régias. À época, ser ou não ser nobre era crucial para se desfrutar de algumas benesses. 
Em janeiro de 1726, os oficiais da câmara do Rio de Janeiro escreveram ao soberano para denunciar a presença de falsos nobres na urbe: “Costumam vir a esta cidade muitos vadios e homens sem pouca consideração”, que para obter vantagens recorriam aos símbolos da nobreza. Contra os serviços de Deus, do rei e do bem comum, eles simulavam a honra e assim enganavam os moradores que os concebiam como homens de bem, pessoas de bom procedimento. Eram de fato as aparências, talvez as insígnias, que incentivam a boa recepção dos falsários, facilitavam o fechamento de negócios e promoviam a injúria dos locais, “os quais ficam enganados, prejudicados, além deste dano, é coisa injuriosa, que estes vadios queiram violar a gravidade das coisas de que são indignos”. Para evitar golpes, os homens da câmara suplicavam ao soberano que todas as pessoas que passassem pela capitania do Rio de Janeiro fossem obrigadas a registrar no senado da câmara as mercês concedidas pela monarquia. Para além de assegurar a veracidade dos hábitos, foros e brasões, os oficiais pediam para aqueles que se faziam de nobres fossem multados em duzentos mil réis, soma entregue em parte ao senado da câmara. Sem tais documentos, “sendo compreendidos em falsidades”, os forasteiros eram entregues a justiça para proceder contra a violação. Direcionada a D. João V, a carta não teve desdobramentos, ao menos nada restou para além do despacho ininteligível do secretário do Conselho Ultramarino, André Lopes de Lavre.       
Em princípio, a carta dos oficiais da câmara nos remete aos vínculos entre lealdade e nobreza, entre honra e bons negócios. Estribados nas insígnias nobres, os moradores da cidade confiavam nos forasteiros e “contraíam com eles negócios”, mas eram ludibriados pela falsa identidade. Do ponto vista desta carta, o comércio era o alvo visado pelos falsos nobres, razão para proteger os mercadores da localidade. Ao evitar enganos, a câmara do Rio de Janeiro almejava ter ciência e registro das mercês, prova cabal dos provimentos de ofícios e dos privilégios recebidos. Na monarquia portuguesa, cabia às câmaras reinóis e ultramarinas preservar a memória administrativa das localidades; em exercício, os edis atuavam fosse como polícia e justiça em primeira instância, fosse no controle do comércio e do aparelho urbano. Justificava-se então a vigilância sobre os alvarás, foros e brasões, pois as mercês por vezes se vinculavam a isenções e liberdades no âmbito econômico. A súplica ao monarca indica, porém, que a prática de registrar as mercês não se verificava no Rio de Janeiro. Como a carta dos oficiais não teve desdobramentos, acredito que o Conselho Ultramarino[1] não via como necessário o controle camarário sobre a nobreza radicada na capitania.
Embora não se tenha outra notícia do interesse camarário para registar as mercês, coibir, multar e prender os “falsos nobres e trapaceiros”, o episódio nos remete a temas da maior importância para o ultramar luso-brasileiro. Vale então enumerá-los, pois os documentos nos demonstram não somente os complexos limites entre nobres e mecânicos no ultramar, mas sobretudo a diferença entre a “nobreza da terra” e a nobreza respaldada pela monarquia, ou seja, portadora de papéis semelhantes aos solicitados pelos ofícios da câmara do Rio de Janeiro, como indicado acima. Aliás, aí os homens bons da câmara eram parte da nobreza, alçados a esta condição quando receberam os mesmos privilégios da câmara do Porto, mercê concedida pela monarquia aos cidadãos de vários municípios luso-brasileiros.
Vale ainda aqui mencionar o intenso e desordenado crescimento da cidade em meio às descobertas de ouro nas Minas Gerais e aumento do comércio. Como porto de chegada de gentes provenientes do reino e do próprio ultramar, a cidade tornou-se espaço de grande movimentação de pessoas e de mobilidade social. Tal conjuntura promoveu, por certo, ambiente apropriado para o aparecimento dos nobres sem papéis. Aliás, nas sociedades do Antigo Regime, o ethos nobiliárquico era difuso, capaz de mover homens localizados nos mais diferentes patamares da hierarquia social. De fato, a incipiência e a instabilidade das sociedades americanas permitem entender que os significados da nobreza nos trópicos se multiplicaram.
Como salientou Stuart B. Schwartz, no ultramar, as diferenças entre fidalgos e plebeus “tenderam a nivelar-se, pois o mar de indígenas que cercava os colonizadores portugueses tornava todo o europeu, de fato, um gentil-homem em potencial”. A escravidão de índios, negros e a crescente população mestiça potencializaram o ideal ibérico que concebia o não trabalho como primeira condição para identificar os nobres. Para além da origem judia e moura, a cor da pele era determinante para distinguir os nobres dos mecânicos na colônia, embora este impedimento pudesse, por vezes, ser relativizado. De todo modo, fossem portugueses, brasílicos, chefes indígenas, pretos ou mulatos, as estratégias de enobrecimento pouco diferiam, quando apresentavam-se como leais vassalos, serviam ao soberano e suplicavam por mercês. Como parte da estratégia de nobilitação, no Setecentos, militares, mineiros e comerciantes foram incitados a comprar tanto o perdão régio pelos defeitos mecânicos[2] e os papéis que comprovavam serviços militares, quanto os próprios títulos de cavaleiros das Ordens Militares. A avidez pela ascensão social não era tão evidente no reino, onde mercadores pobres, negros e mulatos tinham mais dificuldades tanto de enriquecer ou de servir como soldados quanto de esperar pelas graças do monarca.
A grande mobilidade social e o rápido crescimento da cidade por certo explicam o cuidado dos oficiais da câmara na preservação dos privilégios da nobreza. Além de manter a ordem, os homens bons da câmara procuravam impedir que mercadores endinheirados se infiltrassem no comando do município e quebrassem o monopólio da “nobreza da terra”.







[1] Conselho baseado em Lisboa  encarregado de aconselhar o rei na política referente às possessões em ultramar (n. do E.)
[2] Ou seja, ter trabalhado em ofício manual anteriormente (n. do E.)

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