Carta do editor

Há poucas questões capazes de colocar um freio na pluralidade que decidimos ter aqui na Folha. Não foi muito difícil mapeá-las: são as questões que envolvem a disseminação de sofrimento imerecido. Entre elas, está a do machismo e o preconceito de gênero, capaz de transformar metade da população em “minoria”.
Quando decidimos elaborar uma edição voltada para a discussão de questões de gênero, sabíamos que seria impossível adotar uma abordagem exaustiva da questão – o tamanho de nosso jornal é insuficiente e, mais significativamente, a quantidade de coisas que vem sendo produzida sobre o tema é infindável. Sendo assim, o critério que escolhemos na seleção dos que escreveriam foi bastante idiossincrático. Nossa equipe entrou em contato com pessoas que, sabíamos, se dedicam a estudar este assunto e pedimos para que escrevessem sobre o que quisessem dentro do grande conjunto dos “estudos de gênero”.
Os resultados foram surpreendentes. Na parte reservada aos professores, conseguimos contribuições de duas pesquisadoras com trajetórias e temas completamente diferentes, mesmo se unidas por curiosidades semelhantes. A primeira que convidamos foi a professora Rachel Soihet, do departamento de História da UFF. Seu artigo traça a trajetória da historiografia sobre as mulheres, mostrando sua evolução como objeto de estudo. Já Maria Díaz-Benítez, antropóloga do Museu Nacional/UFRJ, explora a liberdade que sua área lhe proporciona para falar sobre as mulheres em um ambiente pouco discutido: os filmes pornôs. Díaz-Benítez explora as semelhanças entre os perigos e prazeres do pornô e do sexo “normal”, lançando mão para isso de alguns conceitos que criou para se aproximar de algo que para muita gente é completamente estrangeiro.
Os artigos da seção reservada aos alunos discutem várias das questões relacionadas ao gênero. Sem que isso fosse pedido, todas eles se referem a aspectos da vida cotidiana em que o machismo se faz presente: Luciana Vasconcellos discute as cantadas de rua, ou street harassment, e seu efeito sobre a capacidade das mulheres terem uma boa experiência com o espaço público; Brena O’Dwyer fala sobre a representação de mulheres em filmes de sucesso, como 50 tons de cinza, Jogos Vorazes e Crepúsculo. O artigo de Juliana Streva funciona como uma apologia desta edição: se você tem alguma dúvida sobre a necessidade de se discutir sobre feminismo... o texto de Streva é um excelente começo para o leitor que vir a Folha e pensar “machismo? Isso não existe”. 

História das Mulheres e Relações de Gênero: debatendo algumas questões - Rachel Soihet

Rachel Soihet é professora do departamento de História da UFF. É uma das mais importantes historiadoras da cultura do Brasil. Entre os assuntos que já discutiu, destacam-se a história das mulheres e a história do samba. Publicou diversos livros, como Feminismos e antifenismos (2013), A subversão pelo riso (1998) e Condição Feminina e formas de violência (1989)

As contribuições recíprocas decorrentes da explosão do feminismo e das transformações na historiografia, a partir da década de 1960, foram fundamentais na emergência da História das Mulheres. Nesse sentido, ressaltam-se as contribuições da História Social, da História das Mentalidades e, posteriormente, da História Cultural, articuladas ao crescimento da antropologia, que tiveram papel decisivo nesse processo, em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História. Fato relevante, se considerarmos a despreocupação da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a participação diferenciada dos dois sexos, já que polarizada para um sujeito humano universal.
A partir da década de 1970, “gênero” tem sido o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas, sendo inúmeras as suas contribuições. A ênfase no caráter fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a precisão emprestada à idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; o relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado, constituem - se em algumas dessas contribuições. Acresce-se a significação, emprestada por esses estudos, à articulação do gênero com a classe e a raça/etnia. Interesse indicativo não apenas do compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da convicção de que as desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme estes três eixos.
Todas essas reflexões das mais fecundas não excluíram, nos primeiros tempos, críticas à continuidade nos estudos de gênero dos dualismos, especialmente, da divisão binária da humanidade, a partir das construções baseadas no sexo. Reflexões e pesquisas  se desenvolveram com vista a ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização de uma categoria que tem como referência a diferença sexual quando as discussões ‘politicamente corretas’ passaram a exigir, cada vez mais privilegiar outras marcas na explicação das desigualdades. Uma proposta seria partir de uma perspectiva pluralista, considerando-se uma multiplicidade identitária. A difusão desses referenciais teóricos contribuiu para a abertura de linhas de pesquisa e reflexão sobre gênero não centradas nas mulheres. Ressalte-se a produção de estudos sobre masculinidade e, também, os estudos queer, para os quais a obra de Butler é altamente inspiradora[i]
A polêmica entre Joan Scott e as historiadoras Louise Tilly e Eleni Varikas oferece um panorama da pluralidade de concepções acerca da questão do gênero. Ao reforçar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de formulações teóricas, Scott afirma a impossibilidade de uma tal conceitualização efetuar-se no domínio da história social, segundo ela, marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade de utilizar-se uma “epistemologia mais radical”, encontrada, segundo ela, no âmbito do pós-estruturalismo, particularmente, em certas abordagens associadas a Michel Foucault e Jacques Derrida, capazes de fornecer ao feminismo uma perspectiva analítica poderosa. Nesse sentido, segundo Scott, os estudos sobre gênero devem apontar para a necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente da oposição binária "masculino versus feminino" e a importância de sua historicização e "desconstrução" nos termos de Jacques Derrida - revertendo-se e deslocando-se a construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza das coisas[ii].
Louise Tilly contrapõe-se a tal postura, com o que concorda Eleni Varikas, ao afirmar que a vontade política de conceder às mulheres o estatuto de sujeitos da história contribuiu para o encontro das historiadoras feministas com as experiências históricas das mulheres. E, para muitas, este encontro teve lugar no terreno da história social, do que resultaram análises notáveis de relações entre gênero e classes sociais. Desse modo, as críticas formuladas por Joan Scott contra a história social, quanto à marginalização das experiências femininas, a redução do gênero a um subproduto das forças econômicas, a indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na cultura e na ideologia política foi, segundo Varikas, precisamente o que desapareceu nas tentativas bem sucedidas de re-escrita feminista da história. Também, Tilly e Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao potencial de epistemologias situadas no âmbito do pós-estruturalismo para elaborar uma visão não determinista da história e uma visão das mulheres como sujeitos da história[iii].
Critica, porém, Varikas as restrições de Tilly ao que denomina “uso mais literário e filosófico do gênero”, atentando para a importância de se refletir com mais precisão, acerca da influência do paradigma lingüístico sobre a história das mulheres. Acentua Varikas a importância das abordagens no âmbito da história das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado para a análise das representações, dos discursos normativos, do imaginário coletivo; as quais chamaram a atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos do masculino e do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres puderam re-interpretar e re-elaborar suas significações. E os estudos feministas não esperaram o pós-estruturalismo para sublinhar a importância das representações e dos sistemas simbólicos na análise e na compreensão da construção do gênero e das relações sociais que os sustentam. 
Ainda, Scott propõe a política como domínio de utilização do gênero para análise histórica. Justifica a escolha da política e do poder no seu sentido mais tradicional, no que diz respeito ao governo e ao Estado Nação. Especialmente, porque a história política teria se constituído na trincheira de resistência à inclusão de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero, vistos como categoria de oposição aos negócios sérios da verdadeira política. Acredita que o aprofundamento da análise dos diversos usos do gênero para justificativa ou explicação de posições de poder fará emergir uma nova história que oferecerá novas perspectivas às velhas questões; redefinirá as antigas questões em termos novos - introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da guerra. Tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado e a nossa própria terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre as atuais estratégias feministas e o futuro utópico.
A análise de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições das mais inovadoras no terreno teórico, como no do próprio conhecimento histórico. Considero, porém, que, a partir do modelo de análise proposto, alguns elementos essenciais ao desvendamento da atuação concreta das mulheres tornam-se dificilmente perceptíveis. Importa, portanto, examinar contribuições de outras historiadoras, entre elas Michelle Perrot e Arlette Farge que, com esse objetivo, não se limitam a abordar o domínio público. Recorrem a outras esferas, como o cotidiano, no afã de trazer à tona as contribuições femininas.
Nessa perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar às mulheres nos domínios nos quais ocorria maior evidência de participação feminina. Os estudos sobre a sociabilidade feminina que deram lugar a importantes trabalhos sobre o lavadouro, o forno, o mercado, a casa, assim como os estudos sobre os tempos marcantes da vida, tomando como objetos o nascimento, o casamento e a morte são destacados. Daí não se aterem unicamente à esfera pública - objeto exclusivo, por largo tempo, do interesse dos historiadores impregnados do positivismo e de condicionamentos sexistas. Explica-se, assim, a emergência do privado e do cotidiano, nos quais emergem com toda força a presença dos segmentos subalternos e das mulheres.  Longe está o político, porém, de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem múltiplas relações de poder.
Tais historiadoras evitam o binômio dominação/subordinação como terreno único de confronto. Apesar da dominação masculina, a atuação feminina não deixa de se fazer sentir, através de complexos contra-poderes: poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e "compensações" no jogo da sedução e do reinado feminino. Sua proposta metodológica é estudar o privado e o público como uma unidade, assaz renovadora frente ao enfoque tradicional "privado versus público".
Advertem as pesquisadoras que tais conclusões, acerca dos poderes femininos, não devem, porém dar lugar a enganos, em termos de uma perspectiva conciliadora, de justaposição de culturas, ao mesmo tempo plurais e complementares, esquecendo-se da violência e da desigualdade que marcam a relação entre os sexos. Inúmeros exemplos são apresentados, assinalando-se a presença da complementaridade na divisão sexual das tarefas, o que não exclui uma hierarquização dos papéis exercidos por homens e mulheres. Assim, reiteram a existência da dominação masculina, instrumento indispensável para captar a lógica do conjunto de todas as relações sociais. Entretanto, na perspectiva que adotam, a “dominação masculina” não é mais uma constante sobre a qual toda reflexão tropeçaria, mas a expressão de uma relação social desigual que pode desvendar engrenagens e marcar especificidades de diferentes  sistemas históricos[iv].
Voltando à proposta de Scott, esta não abre espaço para que emerjam as diversas sutilezas presentes nas relações entre os sexos, das quais não estão ausentes as alianças e consentimentos por parte das mulheres. Nesse particular são muito adequadas as considerações de Roger Chartier, pautado em Pierre  Bourdieu, que destaca na dominação masculina o peso do aspecto simbólico, que supõe a adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação. Utiliza-se Chartier do conceito de violência simbólica que ajuda a compreender como a relação de dominação - que é uma relação historica, cultural e linguisticamente construída - é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutivel, universal. Outrossim, alerta Chartier, uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a aceitação pelas mulheres de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação. As fissuras à dominação masculina não assumem, via de regra, a forma de rupturas espetaculares, nem se expressam sempre num discurso de recusa ou rejeição. Definir os poderes femininos permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador.
A noção de resistência torna-se, dessa forma, fundamental nas abordagens sobre as mulheres, revelando sua presença e atuação no seio de uma história construída pelos homens, com vistas a reagir à opressão que sobre elas incide. Historiadoras, como aquelas mais uma vez citadas, M. Perrot, Natalie Davis, A Farge, Silva Dias, eu própria, têm se baseado nesse referencial na obtenção de pistas que possibilitem a reconstrução da experiência concreta das mulheres em sociedade, que no processo relacional complexo e contraditório com os homens têm desempenhado um papel ativo na criação de sua própria história.
Importa esclarecer que tais observações não visam excluir a abordagem das mulheres do terreno da política formal, sem dúvida da maior importância no estudo da movimentação feminina, na luta por direitos e de sua participação como sujeitos na sociedade. Afinal penetrar na esfera pública foi um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Passavam as mulheres, segundo Hannah Arendt, a garantir sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode ser construído  apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais. 

[i] NAVARRO-SWAIN, Tânia. “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitário?”  Textos de História. Brasília: UnB, vol.8, n.1/ 2 p. 47-84.
[ii] SCOTT, Joan W.”Prefácio a Gender and Politics of History” Cadernos Pagu (3)1994: pp.11-26.
[iii] TILLY, Louise A.”Gênero, História das Mulheres e História Social” e VARIKAS, Eleni. “Gênero, Experiência e Subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott” Op. Cit. pp.29-62 e 63-84.
[iv] FARGE, Arlette, PERROT, Michelle et allii. “A História das Mulheres. Cultura e Poder das Mulheres: Ensaio de Historiografia”  Gênero. Revista do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG. V2, n.1. Niterói: EdUFF, 2000, PP.7-30. 

O sexo sempre é culpável? Notas sobre prazeres, perigos e fissuras na sexualidade - Maria Elvira Díaz-Benítez

Maria Elvira Díaz-Benítez é professora de Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ. Dedica-se ao estudo de diversos temas ligados à sexualidade, pesquisando temas como “Corpo e sexo bizarros”, identidade sexual, além de articulações entre raça, classe, gênero, corpos e sexualidade. Entre os livros que publicou, destacam-se Nas redes do sexo: Os bastidores do pornô brasileiro (2010) e Prazeres dissidentes (2009), com C. Figari. As notas de rodapé deste texto estão disponíveis no blog da Folha.


No dia que Antonio Kerstenetzky me convidou para escrever uma reflexão para a Folha do Gragoatá eu acabava de receber uma mensagem de minha amiga Berenice Bento pelo Facebook. Ela me dizia: você viu isso? E adicionava o link que levava a um depoimento da ex-atriz pornô norte-americana Shelley Lubben “Roxy”:  http://bit.ly/1blAckX.
Ao longo desse dia a mesma notícia passou a ser compartilhada por diversas pessoas na rede e um grande número de comentários veio à tona. A maioria deles condenava a indústria pornográfica por ser um mercado que permite (e até promove) o estupro das mulheres. Nisso havia um consenso: o pornô é ruim.  Houve, contudo, um comentário dissidente: uma atriz brasileira que se desempenhou ao redor de cinco anos na indústria e afirmou nunca ter sido objeto de abusos. Seu depoimento virou alvo de respostas do tipo “me engana que eu gosto” ou “acorda, menina, você foi abusada todo esse tempo e não quer aceitar”.  A julgar pelas reações, não havia dúvida de que ninguém ali acreditava na possibilidade de que uma mulher pudesse ter algum tipo de prazer ou de agência dentro desses mundos, pois a ideia da opressão feminina intrínseca nesse trabalho ocupava toda primazia no discurso do coletivo. 
Isso me fez lembrar as vezes que tenho sido interpelada em seminários e congressos quando tenho apresentado minha etnografia sobre o universo de produção de pornografia, acerca da “realidade” das mulheres. Elas gostam? O que elas acham sobre essa carreira? Como é que elas se relacionam moralmente com essa ocupação? Por que é que, realmente, elas ingressam? Grande parte de minha pesquisa foi dirigida a responder alguns desses interrogantes. Eu apresentei trajetórias onde a escolha das mulheres era evidente e onde a pornografia se apresentava como um meio para a realização de alguns projetos pessoais, ou, simplesmente, um meio de adquirir certos status sociais e estilos de vida associados à juventude, a boemia, o hedonismo numa dinâmica que denominei Ética do Instante. Nesses mundos, pude observar que as gramáticas do poder se apresentavam de maneiras flexíveis e o suficientemente complexas como para desafiar as noções básicas e estereotipadas de “mundos onde homens oprimem mulheres”.
Contudo, há um incómodo que me persegue e há um incómodo em algumas pessoas em relação a meus argumentos. Estaria eu colocando tanta ênfase no prazer e a escolha ao ponto de obliterar a possibilidade de, efetivamente, enxergar a violência que pode estar acompanhando certas práticas e representações? Como entender a denúncia da Roxy sem satanizar a indústria pornográfica e, ao mesmo tempo, sem acreditar que queixas como aquelas são falsas ou produto de mulheres arrependidas que encontraram os caminhos da “boa” moral e por isso empreendem cruzadas contra seu passado, como forma de redenção?
Esta é uma discussão de velha data que já protagonizou aquilo que ficou conhecido como sex wars. O sexo foi o culpável para o movimento feminista anti-pornográfico dos anos 70. Naquele momento, organizações como Women Against Pornography (WAP), Feminist Fighting Pornography, a Nacional Coalition Against Pornography, e a Women against violence in Pornography and Media atribuíram à pornografia as causas da violência contra as mulheres, os crimes de misoginia, a discriminação sexual e a propagação das desigualdades hierárquicas de gênero. Para eles, a submissão das mulheres se evidenciaria ao serem representadas em atos de humilhação, espancamentos, suplícios ou mostrando-as ajoelhadas fazendo sexo oral, sexo com animais ou em todo tipo de cenas onde cabia ao corpo feminino (ou efeminado, deve-se acrescentar) o lugar do violentado.
A década dos oitenta, por sua vez, trouxe novas reflexões teóricas surgidas de outros olhares feministas que criticaram a interpretação das anteriores. Antropólogas como Carol Vance, Gayle Rubin e Pat Califia estariam na cabeceira deste pensamento.  Para elas, as anti-pornografia ofereciam uma imagem simplificada do poder e uma visão rígida dos gêneros gerada no determinismo da relação dominador-dominado. A nova perspectiva desassocia a ideia da dominação e coerção como modelo único relativo à sexualidade, e criticaria as restrições ao comportamento sexual das mulheres que se colocaram nos posicionamentos das feministas radicais. Nesse feminismo pró-sex (onde o sexo não era culpável de antemão) corpo, pornografia e sexo poderiam ser lugares de resignificação política para mulheres e outras minorias sexuais, e o prazer virou objeto de reflexão, assim como as maneiras alternativas e as escolhas sexuais que levam a consegui-lo.  Em poucas palavras, esta postura abriu janelas preciosas para outras formas de interpretação do prazer, erotismo e escolha.
Contudo, um problema persistiria. Adiro-me à crítica feita pela antropóloga brasileira, Maria Filomena Gregori, de que há de fato na bibliografia do “contra-ataque” um não tratamento do problema da violência. Isto se deve, explica a autora, ao fato de que grande parte da literatura relativa a estas vertentes do feminismo se concentrou em enfatizar as práticas sexuais dentro do terreno do lesbianismo. Tomando como ponto de partida o prazer feminino nas relações de mulher a mulher, estes estudos dão por certo que o consentimento é garantido de antemão e a violência e o perigo são transpostos para a arena dos prazeres.
Quer dizer, o perigo não é (nem pode ser) tudo o que explique a sexualidade feminina, mas o prazer, por si só, tampouco dá conta. Embora Carol Vance argumentasse que o que caracteriza a vida sexual das mulheres é uma tensão – citando “na vida sexual das mulheres a tensão entre o perigo sexual e o prazer sexual é muito poderosa. A sexualidade é, por sua vez, um terreno de constrangimento, de repressão e perigo, e um terreno de exploração, prazer e atuação” – a ideia de tensão, nas análises, parecesse ter se convertido em uma fronteira divisória mais do que em uma linha que une, de modo intricado, duas pontas de um mesmo contínuo.
As imagens do vídeo apresentado por Roxy são francamente chocantes. E se me perguntassem se eu acredito que sejam reais, eu diria: sim.  Mas não quero com isto dizer que o que se esconde por trás da indústria pornográfica é o abuso e a violência como a ex-atriz argumenta e como foi intitulada a matéria. Pornografia não é sinônimo de maltrato e opressão contra a mulher. Contudo, a violência e o abuso podem vir a acontecer.  Como? Em meio daquilo que eu venho denominando de fissura. Fissuras seriam aqueles instantes de fronteira em que as emoções extrapolam o sentido dado de antemão às práticas, são momentos em que, em meio a um ato sexual, transpassa-se do consentimento ao abuso.  As fissuras acontecem durante as filmagens mesmas, naqueles instantes em que a pessoa (porque as fissuras não são exclusivas das mulheres) sente em sua própria pele um certo medo, angústia ou dor que não logrou prever no momento da negociação.  Ou seja, houve consentimento, mas a prática trouxe uma intensidade que não é possível de prever ou de antecipar e que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer.  A fissura é a evidencia de que a prática extrapolou a expectativa da dor, é uma fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna violência, embora logo a fissura possa se refazer por meio da sociabilidade ou a amizade que envolve a dinâmica de grupo nos sets de filmagem.
As fissuras no pornô acontecem dentro de um ambiente controlado: certos excessos nas práticas sexuais nessa indústria, especialmente aquelas que evocam fetiches de dor e humilhação, fazem alusão a descontrole controlado, para usar os termos de Featherstone. Trata-se de violências regradas onde são utilizadas técnicas corporais para suportar a dor física, mas não por isso é menos violento. A pornografia se baseia no exagero, e nesse tipo especifico de sexo duro se testam os limites e nesse testar se produzem fissuras.
Assim, fazer pornografia poderia ser entendido como um prazer perigoso tal como o entende Gregori.  Há práticas ali que podem ser interpretadas como empreendimentos de risco, nos termos da mesma autora.  São situações e negociações delicadas onde nada está resolvido nem garantido de antemão. Experiências que se bem implicam prazer, operam simultaneamente com tensores que podem ser transgressores dependendo da negociação, que por momentos podem ser paródicos e que potencialmente podem se aproximar do abuso.
Agora, no pornô nem sempre acontecem fissuras, e as fissuras não são exclusivas do pornô. Elas também podem vir a acontecer em nosso leito, nos encontros sexuais dos mais corriqueiros e longe do mercado. O mercado do sexo tampouco é culpável ou perigoso de antemão assim como as sexualidades que evocam afetos e amor romântico nem sempre são exclusivamente prazerosas.

Um breve suspiro sobre estereótipos de gênero e a contracultura queer - Juliana Streva

Juliana Streva é mestranda em Direito pela PUC. 


Os estereótipos de gênero podem ser compreendidos como a construção social que atribui comportamentos e características ao sexo feminino e masculino, em uma oposição binária entre homem e mulher, generalização ainda muito presente nos dias de hoje. Neste sentido, a mulher ainda é vista como uma pessoa sensível, frágil, cuidadosa, vaidosa, que dirige mal, que gosta de falar ao telefone e fofocar, sonha em se casar e ser mãe e que não deve ter uma liberdade sexual (vide xingamentos sexistas que visam reprimir tal tipo de comportamento - puta, vadia, etc). Já o homem, como um ser viril, forte, carismático, que joga futebol com os amigos, gosta de carro, cerveja e que sua liberdade sexual é tida como “mais do que natural” (é, não há xingamento algum referente a isto, pois não há repressão).
Esta fôrma comportamental gera e enraíza uma profunda intolerância e violência contra as pessoas que rompem com tais padrões segregadores e limitantes, sobretudo em relação às mulheres, que sofrem historicamente a opressão patriarcal - responsável por colocar o homem em uma condição privilegiada no seio social.
Mas, como muitos falam por aí, as mulheres já conquistaram espaço na sociedade, podem trabalhar fora de casa (receber menos que os homens), e até mesmo ser presidente (ainda se recusam o “presidenta”, mas a questão da linguagem é também para um outro momento). Afinal, qual seria então o sentido do movimento feminista: fazer com que as mulheres tenham acesso às estruturas inalteradas deste sistema patriarcal ou reformular essas estruturas de opressão?
Muito além de fazer parte deste sistema opressor, há o intuito de revolucionar a construção social de gênero (uma estrutura opressora), transgredindo suas categorias através da ressignificação do termo “feminino”, assim como do “masculino”, ou até mesmo a sua radical extinção. Estes termos passariam a ser entendidos como adjetivos e não mais categorias dos sexos, rompendo, portanto, com a lógica dual das oposições, recusando-se a alternativa da exclusão (ou, ou) em favor da inclusão (e, e).
Desta forma, o feminino transcende a alternativa dual do sexo e do gênero e pode ser assumido por homens e por mulheres, assim como o masculino. Como já firmado por Judith Butler, filósofa teórica de gênero e feminismo dos Estados Unidos, o sexo identificado social ou morfologicamente não é determinante (!).
Os pensamentos feministas foram responsáveis pelo desenvolvimento do movimento queer vinculado à revolução das identidades sexuais. O termo queer, antes tido como pejorativo e ofensivo, transforma-se em uma afirmação orgulhosa da multiplicidade. Este movimento permitiu o surgimento do camp, um fênomeno popular de contracultura produtor de estranhamento relativo às categorias como a feminilidade e a masculinidade, buscando a sua completa desnormatização.
No meio cinematográfico, esta contracultura se desvincula do cinema hegemônico - produtor e difusor de normatividade (cis e heteronormativa, ou seja, que promulga a visão padronizada de que as pessoas agem conforme o estereótipo de gênero relacionado ao seu sexo biológico, e se interessam sexualmente, em regra, por pessoas do gênero oposto) – e vai muito além do Bechdel Test, por exemplo.
Para quem não conhece, explico: é um teste no qual se apresenta três perguntas básicas, com o intuito de analisar a participação (mínima) de mulheres em filmes. As perguntas são: i) há mais de duas mulheres no filme, com nomes? ii) elas falam uma com a outra? iii) sobre algo que não seja um homem? Essas perguntas que beiram a máxima simplicidade e que se pensada para homens o “sim” para todas as perguntas seria mais do que evidente, acaba não sendo tão simples assim tendo em perspectiva as mulheres. Anita Sarkeesian, responsável pelo site Feminist Frequency, expõe que muitos dos filmes de grande bilheteria dos Estados Unidos não conseguem responder “sim” a estas três perguntas, como por exemplo, X Men, Pulp Fiction, grande parte do James Bond, todos da trilogia d'O senhor dos anéis, Shrek, Up, Clerks, Piratas do Caribe, M.I.B, Clube da Luta, etc etc etc.
Muito além disso, o cinema de contracultura é responsável por subverter a ordem hegemônica sexista. John Waters trouxe ao mundo, em 1972, uma ilustração icônica do camp com seu filme Pink Flamingos protagonizado pela drag queen Divine. Este filme, reconhecido até hoje como um dos mais trash, quiçá controversos, já produzidos, apresenta uma forma transgressora, irônica e cômica da sociedade. Juntamente com seu ulterior Female Trouble, produzido em 1974, Waters afronta a decência e toda a noção de bons costumes. Cabe destacar que, Judith Butler se baseou no título deste filme (Female Trouble), para intitular sua obra Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, mostrando o caminho de mão dupla entre a arte e a teoria de gênero.
Outra ilustração cinematográfica deste rompimento do cinema cis e heteronormativo é trazido com o clássico de 1975 Dog Day Afternoon, dirigido por Sidney Lumet. Este filme conta a história de um assalto a banco realizado pelo personagem homossexual, representado por Al Pacino. Ele, desempregado, (atenção: spoiler necessário) recorre ao crime para pagar operação de mudança de sexo de seu namorado. Este anti-herói consegue cativar a simpatia do público que torce por ele no desenrolar da trama e, ao mesmo tempo, torna visível uma questão pouquíssimo explorada e debatida pelo cinema e pela sociedade, até então.
Em 1980, influenciado pelos filmes de John Waters, o diretor Pedro Almodóvar apresenta o seu primeiro longa, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón. O filme apresenta personagens, com forte predominância de mulheres, que, em diversas situações, se rebelam contra a normatividade comportamental, demonstrando que toda performatividade social é passível de ridicularização. Almodóvar participa, desta forma, também do cenário subversido do camp através do absurdo, do grotesco, do descanso com a moral, em uma postura desafiadora e questionadora.
O movimento feminista queer extendeu o seu questionamento e o seu rompimento do sistema de repressão através do devir-minoritário por meios artísticos (como o cinematográfico mencionado, como também em outros campos artísticos, como o musical, com o glam rock de Bowie na fase andrógina e New York Dolls, com a pintura de Frida Kahlo e com os quadrinhos de Laerte, por exemplo), assim como também pelos meios acadêmico (com a já mencionada Butler, dentre outros e outras) e social (por exemplo, a marcha das vadias).
Afinal de contas, este movimento questionador que subverte o mecanismo de opressão, transforma a vida de qualquer pessoa em minoritária no sentido de permitir ao indivíduo ser múltiplo, amplo e o mais livre possível em sua performance, autodeterminação e identidade pessoal-social. Buscamos, assim, não mais repetir este modelo opressor, ignorante e intolerante de “estereótipos limitantes” ou se inserir nele, mas repensá-lo, questioná-lo e abrir espaço para a manifestação de toda a multidão que nos habita. E lá se foi o breve suspiro.


Butler, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, 1990.
Cultura Visual Queer, UnB. Link in: http://culturavisualqueer.wordpress.com/
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003.
Anita Sarkeesian, Feminist Frequency, Link in: http://www.feministfrequency.com/

50 tons de feminismo: um olhar sobre a cultura pop - Brena O'Dwyer

Brena O’Dwyer é mestranda pelo Instituto de Medicina Social (UERJ)
Olhar para os papéis de gênero na cultura pop a partir de um ponto de vista feminista é, no geral, deprimente. Metade dos ingressos de cinema vendidos nos EUA são comprados por mulheres, mesmo que elas estejam subrepresentadas nas telas: entre 2007 e 2012, elas foram apenas 30% dos personagens com falas nos filmes de Hollywood. Mas não só – são representadas ainda de forma estereotipada por personagens hiperssexualizadas e hiper-romantizadas, se nos ativermos a uma descrição mínima dos clichês a que são submetidas. Essa contradição é só uma das muitas que aparecem quando se olha mais de perto a relação entre os personagens femininos e a realidade.
O filme mais visto nos EUA no ano passado foi “Jogos Vorazes: Em chamas”, filme cuja protagonista é uma mulher. Poderia ser um fato banal, mas não é, porque a última vez que tal façanha aconteceu foi em 1973, 40 anos atrás, com o filme “O Exorcista”. “Jogos Vorazes: Em chamas” é a adaptação de um livro. Vale notar que apesar de o livro e o filme terem sido escritos por uma mulher, o filme foi dirigido por um homem. Outras sagas literárias com protagonistas mulheres, que após terem vendido milhares de livros foram adaptadas ao cinema são “Crepúsculo” e “50 tons de cinza” (o filme está em produção e será lançado no começo de 2015).
São três bestsellers, escritos por mulheres, com protagonistas mulheres e adaptados ao cinema. Pensando superficialmente parece louvável o simples fato de serem escritos e protagonizados por mulheres, mas é preciso problematizar essa questão. Dizer que um livro é feminista ou que quebra com ideias tradicionais de gênero só porque a personagem principal é uma mulher é um tanto ingênuo.
Bella Swan, protagonista da saga “Crepúsculo”, é uma menina que muda de cidade para morar com seu pai e acaba se apaixonando pelo menino mais desejado da escola, Edward Cullen, para depois descobrir que ele é um vampiro. Edward também se apaixona por ela, mas ao longo dos livros percebe que ser o namorado de Bella a põe em perigo e acaba deixando-a para protegê-la. Logo em seguida, a moça conhece Jacob, um lobisomem. Assim se forma o triângulo amoroso. Poderíamos pensar que é um livro feminista por tratar de forma natural a relação de uma mulher com dois homens, sem taxá-la de vadia. Apesar de essa abordagem ser de fato uma espécie de avanço, a personagem é o perfeito exemplo de donzela em perigo, à procura de um homem que a proteja, uma personagem vulnerável, de baixíssima autoestima e num relacionamento abusivo com Edward.  O garoto chega a dizer que ela é como sua própria marca de heroína, numa prova de sua obsessão e não de seu amor. Outro indício desse caráter abusivo é a noite de sexo que a faz acordar machucada, no dia seguinte, devido à superforça do personagem vampiro; não obstante, a moça não vê nenhum problema nisso. É por isso que “Crepúsculo” pode ser considerado como um atraso para a obra feminista, já que, apesar de a protagonista ser feminina ela vive uma relação que não é igualitária em termos de poder, sofre abusos e tudo isso é romantizado como se isso fosse o epítome do amor verdadeiro.
“50 tom de Cinza” começou como uma fanfic baseada em Crepúsculo e depois do sucesso na internet acabou virando livro. A personagem principal, Anastasia Steele, é uma estudante que se apaixona pelo jovem megaempresário e milionário Christian Grey. Grey quer transformá-la em sua escrava sexual por meio de um contrato em que ela permite que ele controle toda a sua vida. Por fim, ele obviamente se apaixona por ela. Assim como em Crepúsculo, o relacionamento dos dois é abusivo: Grey quer controlar toda a vida de Anastasia: o que ela come, se ela se exercita, onde ela trabalha, etc. A justificativa para o comportamento dele é seu passado cheio de abusos, Ou seja: a partir do momento que existe uma “justificativa” para seu comportamento, tudo está resolvido. O amor que ela sente por ele vai salvá-lo da situação.
Não é preciso dizer que isso é um péssimo exemplo de relacionamento, porém o interessante sobre os livros da trilogia é que eles mostram muitas, muitas, muitas cenas de sexo. Ao mesmo tempo que o livro gira em torno de um relacionamento machista ele revela uma demanda: pornografia feita por mulheres e para mulheres. Uma demanda, diga-se de passagem, muito importante na quebra de papéis tradicionais de gênero, afinal, espera-se que mulheres sejam somente objeto de desejo e nunca sujeitos desejantes. É impressionante que um bestseller mundial gire em torno de sexo e que esse sexo seja escrito de forma erótica para mulheres. É um contrassenso, já que, apesar do sexo, o livro também é um atraso para a obra feminista. Mas pelo menos abre espaço para que outros livros eróticos para mulheres – de preferência mais feministas- entrem na lista dos mais vendidos.
“Jogos Vorazes” pode ser considerado o livro mais feminista entre os três. Katniss Everdeen, a protagonista, vive em um mundo com 12 distritos e uma capital. A cada ano, um menino e uma menina são selecionados para participar de um reality show em que os jovens devem se matar até restar somente um vencedor. É interessante notar que meninos e meninas competem de igual para igual na arena. O clichê do triângulo amoroso está presente, mas a trama não gira em torno das relações amorosas da personagem, e sim da revolução social que se desenrola depois que Katniss vence os jogos. Katniss, ao contrário de Bella e Anastasia, não precisa ser protegida. É esperta, sabe caçar e não se submete à vontade dos homens, ao mesmo tempo é extremamente emocional e faz de tudo para cuidar de sua irmã mais nova. Katniss é uma personagem contraditória que ajuda a entender que gênero não é algo tão essencializado e binário, passível de ser pensado mais como uma gradação e menos como dois opostos.
Claro que ainda há muito esforço a ser feito. Não quero nem falar da sub-representação de personagens negras e negros, gays (mesmo com o sucesso de “Azul a cor mais quente”) e transexuais. Mesmo assim, é importante entender as contradições na indústria pop porque ela representa e simultaneamente constrói o mundo em que vivemos. Isto é, ao mesmo tempo em que esses livros e filmes representam algumas características da nossa realidade e da forma como vivemos, eles também ajudam a construir essa realidade por meio do exemplo, tomando-o como um meio de legitimar essas características. Assim, um livro ou filme pode ajudar a legitimar os papéis tradicionais de gênero, mas também pode desconstruí-los. Entendendo as tensões entre os papéis de gênero na cultura pop podemos entender um pouco melhor que esses papéis não são tão opostos e essenciais nas nossas próprias vidas e podemos tentar transitar mais entre eles. E que nunca podemos deixar de criticá-los.

As Cantadas e o Espaço da Mulher na Rua - Luciana Vasconcellos

Luciana Vasconcellos é graduanda em direito pela PUC

Andar pelas ruas de uma cidade grande como o Rio de Janeiro é ter a certeza que seu caminho não será um de silêncio e contemplação. Inevitavelmente você irá encontrar pedintes, pessoas oferecendo panfletos e até turistas pedindo informação – situações cotidianas em que estranhos interferem na sua vida privada. Acontece que, se você é mulher, as interferências no seu espaço particular ultrapassam as experiências de civilidade e assumem um aspecto de assédio no espaço público – as cantadas vulgares que se mascaram de elogios, os gritos e buzinadas de homens que realmente acham que estão agradando, sem imaginar o quão desconfortável ou o quão ameaçador aquela situação se coloca nos nossos dias.
O assédio sexual no espaço público (street harassment) ocorre quando uma mulher em um espaço público é vítima de uma intromissão por um ou mais homens desconhecidos que fazem comentários, barulhos ou gestos, frequentemente com conotação sexual, assegurando seu alegado direito de obter a atenção desta mulher, definindo-a como um objeto sexual e forçando-a a interagir com eles. Esse tipo de assédio é vivenciado por mulheres de todas as idades em seu cotidiano e, muitas vezes, por esse motivo, é tido como um fato mundano na vida delas, uma realidade infortuna que se coloca como trivial e não parece ser digna de uma resposta por qualquer autoridade pública, pondo-se como impossível de se prevenir. Nesse sentido, o assédio sexual no espaço público funciona como um obstáculo ao acesso e à permanência da mulher a esse espaço, utilizando-se do gênero como ferramenta para definir, classificar e discriminar membros da sociedade, impactando o momento, a freqüência e a duração da convivência da mulher na sua vida cívica.
O street harassment, por seu caráter predominantemente sexual, transforma-se em uma lembrança permanente de como a mulher é vulnerável sexualmente. Enquanto um simples comentário não causa danos físicos, ele faz parte de um espectro contínuo de atenção sexual indesejada, o qual não pode ser ignorado e que pode significar o início de uma ameaça de violência sexual. Isso se torna uma verdade ainda maior quando consideramos que o assédio sexual público pode ir além do aspecto verbal e envolver contato físico forçado. Por meio de comentários sobre a aparência de uma mulher que está apenas seguindo seu caminho, o homem reforça o entendimento de que ela não pode existir em público como uma igual. Ele transforma seu gênero e seus atributos físicos no aspecto primário de sua existência no espaço público. O street harassment não permite que a mulher exerça sua subjetividade na escolha de como e quando seu gênero será um fator de definição de sua identidade e individualidade
O assédio sexual no espaço público muda o modo como a mulher experiencia a vida pública e sua consequente perspectiva sobre sua segurança na rua e seu sentimento de pertencimento àquele espaço. Nesse sentido, pode-se entender que o street harassment implica na ratificação dos papéis tradicionalmente exercidos por cada gênero, uma vez que, para evitá-lo completamente, a única opção que a mulher tem é permanecer em casa e não conviver nos espaços públicos. Por vezes, a responsabilidade pela ocorrência do assédio é atribuída à mulher, a qual estaria “querendo chamar atenção” ou “pedindo por aquilo”. A cultivação da cultura do estupro faz com que as mulheres criem estratégias para tentar amenizar as ocorrências do assédio, seja alterando o modo como se vestem, mudando o trajeto que percorrem ou usando homens como “guarda-costas”, reforçando a concepção tradicional do lugar de cada gênero – se a mulher decide entrar no espaço público, ela deve fazê-lo na companhia de um defensor masculino. Street harassment é uma forma de vitimização da mulher, tornando-a impotente para combater um sistema generalizado de desigualdade sexual pelo grande alcance e insídia do problema.
O assédio sexual no espaço público também tem um significante efeito no discurso sobre o espaço urbano. Quem pode acessar o espaço público? Por quê?, e o que isso significa?, são questões centrais no crescimento e desenvolvimento de cidades. A inexistência do street harassment no discurso público demonstra a falta de prioridade que a questão assume perante o poder público, o que corrobora como o espaço urbano é construído para ser mais receptivo e próspero para determinados cidadãos. Por exemplo, o fato de que urinar em público e jogar papel no chão são matérias tratadas por políticas públicas e dignas de atendimento legal e consequente punição, enquanto o assédio sexual no espaço público é uma questão completamente ignorada, mostra quais são as prioridades na formação do espaço urbano. Obviamente, a poluição das ruas deve ser combatida e merece a atenção do poder público, mas por que a dignidade sexual da mulher também não é alvo dessa preocupação?
Os quadros políticos são construídos para fazer parecer que o assédio sexual no espaço público é um infeliz, porém inevitável, fato da vida moderna, nomeá-lo e defini-lo representa um grande valor estratégico e político. Definir um fenômeno é o primeiro passo para a compreensão de seu escopo e de suas conseqüências. Porém, quando os próprios agentes do Estado não estão preparados para lidar com esse assunto, por vezes agindo como autores dessas ofensas, a mensagem passada para vítimas, agressores e espectadores é a de que o street harassment é, no mínimo um problema tão leve que deve ser tolerado. A pouca freqüência com que a expressão é utilizada para descrever a experiência feminina cria uma nebulosidade sobre os danos causados e corrobora a trivialização do street harassment. Em termos de reforma política, é difícil aprovar leis que possam impedir o assédio sexual no espaço público se há pouca consciência do próprio conceito. O assédio sexual no espaço público impõe-se como uma barreira física e metafórica ao acesso da mulher a uma sociedade mais igualitária, reforçando sua sensação de impotência e de vulnerabilidade sexual, fazendo com que a ameaça de violência sexual pareça constante. Por isso devemos nos esforçar para fazer com que o street harassment torne-se visível culturalmente, para que os danos por ele causado possam, um dia, ter tratamento legal.

Carta do Editor

Sem que esta fosse nossa intenção, a edição deste mês tem um tema que a perpassa. Rogério Haesbaert e Marcos Nobre escreveram sobre o que talvez seja, desde as manifestações de junho do ano passado, o tema mais importante para as Ciências Humanas no Brasil. Vivemos um dos poucos momentos na História do Brasil em que parece que temos o poder de moldar a sociedade em que vivemos.

Haesbaert, professor da Geografia da UFF, escreve sobre um dos instrumentos de “organização científica” da sociedade, o Centro de Controle de Operações da prefeitura do Rio. O Centro, defende, é evidência de um projeto de cidade que vê como mais importantes as situações excepcionais pelas quais o Rio passará ,em  especial os grandes eventos; e que coloca mais ênfase nas situações de exceção, ou “crises” e sua pronta resolução. Seu artigo, portanto, discute um dos projetos de moldar a sociedade, que (infelizmente) tem grande poder e influência no caso do munícipio do Rio.

Este projeto parece ter sido criado, em parte, para conter as formas de política que pedem por outros projetos: encara eventos como as grandes manifestações do ano passado como as “crises” que deve solucionar (seja lá o que isso queira dizer).

Já Marcos Nobre, professor de Filosofia da UNICAMP, escreveu motivado por uma frase que se tornou comum: “Não aconteceu nada em junho”. As manifestações, tendo sido esvaziadas por diversos motivos (entre os mais discutidos, a violência da polícia e de manifestantes mais radicais, a grande divergência das reivindicações, a inexistência de uma liderança... ), não teriam nenhuma consequência concreta, dizem seus críticos de hoje. Muitos dos que dizem isso estiveram na Rio Branco, na Presidente Vargas, e no Palácio Guanabara, e o fato de não mais se identificarem com seu próprio entusiasmo da época os faz ainda mais pessimistas.

Nobre tenta algo corajoso: para ele não só de fato “aconteceu” algo como o que aconteceu foi uma mudança radical na democracia brasileira. Tratou-se de uma rejeição sistemática do que chama de “pemedebismo”, ou a criação de unidades políticas forçadas em nome de uma governabilidade. O Junho de 2013, para Nobre, representou o povo brasileiro exigindo a volta da polarização política verdadeira, e quem sabe o novo jogo de alianças que aos poucos se delineia para as próximas eleições seja exatamente reflexo disso.


Na nossa seção dedicada aos alunos, o tema reaparece. A fantástica crônica de Breno Góes trata das manifestações, pela primeira vez entre todos os textos que li que as tem como objeto, com humor. Não anteciparei nada para não roubar do texto sua engenhosidade. E, para fugir um pouco de junho, incluímos também os desenhos mais introspectivos de Camila Pizzolotto, cujo traço é formidável. Aqui, na edição online da Folha, os temos em maior quantidade, vale a pena clicar

Não aconteceu nada em Junho de 2013 - Marcos Nobre

Marcos Nobre é professor do departamento de Filosofia da UNICAMP, e um eminente filósofo brasileiro. É também membro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Publicou diversos livros – entre eles são dignos de nota Habermas e a Reconstrução (2012) e Curso Livre de Teoria Crítica (2008). Seus trabalhos mais recentes tentam entender as consequências políticas das manifestações do ano passado.  


É cada vez mais comum ouvir a afirmação do título acima. Às vezes, em versões mais suaves, o que se diz é que houve uma espécie de “deu!” geral, uma espécie de irrupção vulcânica social. Mas que agora tudo teria voltado ao “normal” da política depois dessa espécie de catarse coletiva.

O pressuposto da afirmação é que só “acontece” de fato alguma coisa quando há alguma mudança institucional radical: um golpe, uma nova forma de Estado, uma nova Constituição, uma revolução, uma derrubada das instituições existentes. Mais que isso, esse “acontecimento” tem de ser rápido, imediato. Algo como a revogação do aumento das tarifas de transporte, ainda em Junho de 2013, só que em versão ampliada.

E, no entanto, grande parte das transformações profundas das sociedades não “acontece” assim. “Acontece” ao longo de décadas. Assim foi, por exemplo, a redemocratização, a partir da década de 1980. E assim será – é a tendência para a qual apontam as análises que proponho, pelo menos – com Junho de 2013.

Dizer isso não é exercício de futurologia ou adivinhação. Segundo a tradição intelectual a que me filio, iniciada por Marx e conhecida pelo nome de Teoria Crítica, o sentido profundo de conhecer é o de transformar a sociedade no sentido de liberta-la da dominação. Isso exige fazer diagnósticos o mais precisos possíveis do momento presente, identificando no momento que vivemos quais são as tendências de desenvolvimento, as potencialidades para a transformação e quais os elementos que se põem como obstáculos a essa emancipação.

É assim que a orientação para a emancipação ilumina os potenciais e os bloqueios à ação transformadora, é assim que a teoria identifica possíveis pontos de apoio para a prática emancipatória. Dizer que as Revoltas de Junho representam uma ruptura, que representam o fim da (longuíssima) redemocratização e o início da democratização, o início de um ciclo de aprofundamento da democracia – e é isso o que digo –, significa identificar esse momento como chave para marcar uma tendência.

Pretendo enfrentar o desafio posto pelo título deste texto em duas etapas. Primeiro, comparando as Revoltas de Junho com outra “irrupção” social marcante do século XX, o maio de 1968. Espero com isso mostrar que grandes mudanças não começam somente com eventos que têm consequências radicais imediatas. E espero até indicar que esse é um modelo que veio para ficar nas sociedades contemporâneas.

Segundo, enfrento o diagnóstico colocado pelo título apresentando uma interpretação da redemocratização em que as Revoltas de Junho representam uma cesura, um fim e um novo começo. Espero com isso mostrar o lugar especial de Junho de 2013 na história recente do país, indicando seu caráter inédito.

Ao final, procuro pensar esses diferentes elementos de análise em termos das perspectivas abertas para a ação e a reflexão nos próximos anos.
  
De maio de 1968 a Junho de 2013

O maio de 1968 alterou profundamente o modelo de transformação social radical que se tinha até então. Deixou de ser dominante o modelo revolucionário, herdeiro da Revolução Francesa, das revoluções do século XIX e da Revolução Russa, que fez na Guerra do Vietnã sua derradeira aparição. O maio de 1968 não preconiza mais a construção de “um novo homem”, de uma nova sociedade, a partir de cima, a partir da conquista do poder de Estado. A construção da nova sociedade deve se dar desde baixo – o modelo revolucionário de transformação vigente até então também tinha essa pretensão, mas a prioridade da conquista do poder de Estado impedia, na prática sua realização. Esse foi um dos resultados de movimentos de âmbito planetário, bastante diversificados entre si, que não aceitavam ficar espremidos no exíguo espaço que se abria entre a repressão policial e os sindicatos e partidos existentes.

Na conjuntura mundial, o maio de 1968 francês, a versão mais influente do imaginário posterior, foi um movimento de massa relativamente tardio. Mas, talvez por isso mesmo, conseguiu elaborar os impulsos de protesto e de transformação de uma maneira nova, dando nova direção e alento para os movimentos a partir dali. Na fórmula conhecida do líder estudantil alemão Rudi Dutschke, tratava-se então de “revolucionar os revolucionários”. Só a transformação viva de uma base social significativa podia ser o ponto de partida para lutas políticas democráticas abertas que têm por objetivo estender essa transformação mais restrita para o conjunto da sociedade.

O maio de 1968 expandiu os horizontes da política para todas as dimensões da vida cotidiana de uma maneira que não exigia sua subordinação a um “sentido maior” de política, normalmente entendido no sentido restrito de “realpolitik”, de “pragmatismo”, como se diz atualmente. Ao contrário, considerou todas as diferentes dimensões da política como valiosas em si mesmas e por si mesmas, como campos de batalha política tão importantes quanto quaisquer outros. Criou mecanismos de enfrentamento de um poder que não era mais apenas estatal, mas que se infiltrava em todas as brechas da vida social.
Não se trata aqui de edulcorar o que aconteceu factualmente em maio de 1968. Houve muita intolerância no interior dos movimentos, versões autoritárias de transformação social estavam ali presentes também. Como típico momento de transição de um paradigma de transformação para outro, o maio de 1968 foi muito mais um amálgama do velho e do novo. Só com o tempo o novo decantou e se separou definitivamente do velho modelo de transformação, ainda calcado na Revolução Francesa. Só com a sedimentação histórica, com os rumos que tomaram os movimentos de protesto e contestação a partir dos anos 1970 é que se chegou ao imaginário de 1968 que se tem hoje. Em outras coisas, o maio de 1968 também abraçou movimentos e imaginários próximos, como foi o caso do movimento hippie, por exemplo.

Como em todo episódio que se torna referência para a posteridade, também o decisivo aqui passou a ser o imaginário do maio de 1968, muito mais do que a sequência factual dos eventos. Tornou-se uma referência de transformação libertária que é hoje ponto de partida para qualquer grupo organizado que pretenda uma transformação radical da sociedade. E esse imaginário tem como ponto forte a ideia de que uma real transformação não pode acontecer mediante o sacrifício da individualidade, que a organização não pode exigir sacrifícios em nome de um futuro abstrato e longínquo, que o movimento não pode significar submissão do indivíduo a um partido ou grupo de sábios iluminados. Auto-organização não combina com estruturas verticalizadas e hierárquicas.

Na minha maneira de ver, foi esse tipo de modelo de transformação que esteve presente nos grupos mais avançados das Revoltas de Junho.
  
Da abertura democrática às Revoltas de Junho de 2013

Levar seriamente em conta o corte que representaram as duas últimas décadas do século XX no país, levar seriamente em conta a redemocratização, exige pensar o conservadorismo histórico do Brasil em nova chave. Em livros recentes[1], defendo a tese de que um dos mecanismos fundamentais desse novo conservadorismo está em uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo modificando-se ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação, em favor de um ritmo extremamente lento de democratização.

A essa cultura política dou o nome de pemedebismo, em lembrança do partido, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que capitaneou a transição para a democracia, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Mas o nome não quer dizer que essa cultura política se restrinja a esse partido, pelo contrário. Quer dizer que quase todos os partidos brasileiros pretendem, no fundo, ser – grande ou pequeno – um PMDB, ou seja, um amálgama de interesses que sempre está no governo, qualquer que seja o governo.

Coloco como marco inicial da redemocratização a aprovação da lei que reintroduziu o multipartidarismo no país, no final de 1979. E estabeleço como marco final da redemocratização as Revoltas de Junho de 2013, que, na interpretação que proponho, iniciam um novo ciclo, não mais de redemocratização, mas de democratização, de aprofundamento da democracia no país[2].

O período da redemocratização assim estabelecido, de 1979 a 2013, pode ser dividido, por sua vez, em dois grandes blocos. O primeiro, de 1979 até 1994, foi marcado pela coincidência entre o declínio da ditadura militar, a redemocratização e a crise estrutural do modelo de sociedade vigente no país por cinco décadas e que se costuma denominar “nacional-desenvolvimentismo”.

Hegemônica nesse período é a cultura política do “progressismo”, caracterizada pela diretriz de que era necessário unir todas as forças de oposição à ditadura – aquelas que abandonaram o barco em naufrágio no último momento, inclusive. A cultura política do progressismo é a primeira figura do conservadorismo típico da redemocratização, a que dou o nome mais amplo de pemedebismo.

O segundo grande bloco da redemocratização, de 1994 às Revoltas de Junho de 2013, foi marcado pela transição do nacional-desenvolvimentismo a um novo modelo de sociedade, que chamo de “social-desenvolvimentista”. Hegemônica nesse período é a cultura política da “governabilidade”, caracterizada pela ideia de que o impeachment de Collor teria demonstrado a necessidade de governos se apoiarem não apenas em maiorias parlamentares, mas em supermaiorias parlamentares, em esmagadoras maiorias congressuais. A cultura política da governabilidade é segunda figura do pemedebismo e só foi de fato abalada com as Revoltas de Junho.

Porque o traço de união das Revoltas de Junho, a meu ver, foi a rejeição à blindagem pemedebista. Mas não se trata mais de uma unidade forçada como a do progressismo, que dominou as grandes manifestações de massa no país até o impeachment de Collor, em 1992. Menos ainda pode se tratar da unidade forçada da “governabilidade”, em que não há real polarização de posições políticas, mas acomodação amorfa. Junho de 2013 representa a recusa dessa nova unidade, ainda que não necessariamente o seu final.

A rejeição ao pemedebismo veio de todos os lados e se dirigiu contra inúmeros aspectos do sistema político simultaneamente. Também por isso as Revoltas de Junho representam um grande avanço: mostram que a pauta não é mais a da transição para a democracia, em que estava em jogo a estabilização econômica e política, mas já a do aprofundamento da democracia.

As Revoltas mostram que o funcionamento do sistema está em descompasso com as ruas. A sociedade alcançou um grau de pluralismo de posições e tendências políticas que não se reflete na multidão informe de partidos políticos reunidos na coalizão governamental.

Mas um país não sai incólume de vinte anos quase ininterruptos de pemedebismo. Uma juventude que cresceu vendo uma política de acordos de bastidores, em que figuras políticas adversárias se acertam sempre em um grande e único condomínio de poder, não tem modelos em que basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da política. Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de objetivos estritamente eleitorais. O pemedebismo minou a formação política de toda uma geração. Para não falar nos efeitos deletérios que teve sobre o conjunto da sociedade.

Do lado das ruas, não é de espantar que haja uma recusa abstrata de partidos e de organizações políticas em geral. Não é de espantar que divisões políticas como aquela entre direita e esquerda apareçam como irreais ou sem sentido. Não foi justamente o apagamento de divisões como essas o que se viu no governo do país desde que o governo Lula resolveu fazer um pacto com o pemedebismo? O que se vê nas ruas vem exigir novas polarizações. Um efetivo aprofundamento da democracia poderia vir de uma organização polarizada dessas vozes.

Perspectivas

Quando se pensa democracia em sentido largo, como forma de vida, avanços sociais, especialmente contra as desigualdades, são também avanços democráticos. Mas isso não torna aceitável barganhar menos desigualdade pela aceitação de uma cultura política de baixo teor democrático. As duas coisas têm de vir juntas. Se se abstrai de um desses aspectos, o que se perde é a própria possibilidade de crítica e transformação, de diagnóstico e ação.

Do enfrentamento aberto do pemedebismo depende a construção de uma nova cultura política democrática, de instituições autenticamente social-desenvolvimentistas, de um país menos indecente em um passo mais rápido do que permite esse pemedebismo de fundo. As Revoltas de Junho colocaram a nu o esgotamento do modelo político-econômico que corresponde à fase “lulista” do projeto social-desenvolvimentista. Mesmo se os seus efeitos concretos, institucionais, ainda possam demorar a surgir claramente.

Ao mesmo tempo, colocam o desafio de alcançar a próxima figura do modelo, pensando em metas tão essenciais como ir à raiz da radical injustiça tributária, a necessária universalização com qualidade da saúde e da educação públicas, ou mesmo eliminar com relativa rapidez o setor informal da economia, em que emprego não significa trabalho, nem, portanto, direitos sociais correspondentes. Para não falar na consolidação em termos constitucionais de programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família. Ou de um desafio ainda mais complexo como o de criar as condições para a transição ambiental rumo a uma economia de baixo carbono. Apenas para ficar em alguns exemplos.

Do ponto de vista do debate público, fomentar a produção de alternativas reais de ação e discuti-las politicamente é uma das frentes de combate ao pemedebismo. O passo seguinte de aprofundamento da democracia, o da exigência de extinção do pemedebismo e de um sistema político radicalmente reformado, requer formação e aprendizado políticos que dependem de como os polos organizados da sociedade vão (ou não) se reestruturar para receber as novas energias.

É certo que a canalização da insatisfação pode se dar em um sentido progressista ou em um sentido regressivo. Esse é o risco inerente a qualquer aposta no aprofundamento da democracia. Mas uma coisa é certa: recusar o risco é jogar fora a oportunidade de transformação. Já não se trata mais da redemocratização, da transição para a democracia. As Revoltas de Junho encerraram esse ciclo definitivamente. Ao mesmo tempo em que abriram um novo, ainda mais desafiador: o da efetiva democratização da sociedade e da política no Brasil. Como e quando essas novas energias democráticas vão efetivamente plasmar novas instituições e uma nova cultura política é o desafio prático e teórico das próximas décadas.



[1] Choque de democracia. Razões da revolta, livro eletrônico, São Paulo: Companhia das Letras, junho de 2013; e Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] A opção pelo termo “revoltas” remete à tradição política brasileira de chamar assim movimentos como o que se viu em junho de 2013. A opção pelo plural (“revoltas”) pretende indicar não apenas o caráter diverso e diversificado das manifestações, mas igualmente que se trata de uma revolta realizada sob um regime democrático.

Big Brother carioca: centros de controle e monitoramento de geografia bruta - Rogério Haesbaert

Rogério Haesbaert é professor do departamento de Geografia da UFF. É um dos expoentes da geografia humana brasileira, com importantes contribuições no campo das “territorialidades”, tendo sido aluno de Milton Santos. Entre os livros que publicou, destacamos China: entre o Oriente e o Ocidente (1994) e A Nova Desordem Mundial (2006), com Carlos Porto-Gonçalves.



Visitar um hub de controle como o “Centro de Operações Rio” (COR), da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e deparar-se com a sofisticação tecnológica e a enorme quantidade de dados trabalhados através de informações georreferenciadas é como realizar uma viagem no futuro, num enorme contraste com a precarização do espaço (e dos serviços) que se estende por amplas áreas da cidade. Assim, a pergunta que se impõe é: em função de que presente é que esse “futuro” toma forma? Faremos aqui algumas reflexões gerais inspiradas pelo impacto de uma visita ao COR.

Logo no folder de apresentação que encontramos na entrada, o COR (novo core da cidade) é apresentado como uma “espécie de Quartel-General da Prefeitura”, “projeto pioneiro na América Latina” e “primeiro centro do mundo a integrar todas as etapas de gerenciamento de crise”. Construído com esse objetivo explícito de “gerenciar crises”, o COR também lembra, em escala menos dramática, o “capitalismo (produtor e gerenciador) de crises” – ou de desastres, como prefere Naomi Klein. Esta autora, pautada na crítica ao projeto neoliberal de Milton Friedman, utiliza o termo “capitalismo de desastre” para caracterizar um capitalismo marcado pelas “doutrinas de choque” que, a partir de eventos críticos ou catastróficos, trata os desastres como “estimulantes oportunidades de mercado”. 

Esse capitalismo de desastre ou da administração de tragédias vem acompanhado da implantação (e legitimação, especialmente pelo discurso do medo) de regimes de emergência ou de exceção, tanto em nome do combate a crises mais explicitamente biopolíticas (como aquelas ligadas a catástrofes ambientais, como a das inundações que afetaram o Rio de Janeiro em janeiro de 2011, logo após a inauguração do COR) quanto no combate a crises econômicas (que, afirma-se, ocorrerão a partir de agora em intervalos menores e com maior frequência).

Pedro Almeida, diretor de Smarter Cities (Cidades Inteligentes) da empresa IBM, parceira no projeto do COR, quando de uma entrevista à emissora Globo News, afirmou que se trata do centro de controle (ou “de operações” – como numa estratégia de guerra) mais avançado do mundo. Segundo o jornal New York Times, em reportagem de março de 2012, “o que está acontecendo aqui reflete experimento ousado e potencialmente lucrativo que pode moldar o futuro de cidades em todo lugar do mundo”. É o Rio de Janeiro de Eduardo Paes no mapa “lucrativo” da globalização, com sua imagem muito mais vendável e, assim, inserida no circuito (para o município, provavelmente não exatamente lucrativo, mas dispendioso) dos megaeventos.

No folder aparecem em destaque duas salas, a “de controle” e a “de crise”. Percebemos logo como a palavra “crise” virou lugar comum, companhia cotidiana, nem estranhamos mais viver em crise – como diria Milton Santos, a crise agora identifica o próprio período, não a transição de um para outro. Nem mesmo os governantes precisam mais escondê-la, pois grande parte de seu discurso é por ela construído e legitimado.

Uma das principais funções do Centro é a prevenção de tragédias como as que frequentemente afetam o Rio de Janeiro através das inundações. Mas o grande desastre de janeiro de 2011, obviamente, não estava previsto quando da construção do centro. O que estava amplamente previsto, isto sim, era a situação “crítica” ou “excepcional” da cidade a partir da sua transformação em cidade de megaeventos – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – num espaço reconhecidamente marcado por criminalidade e violência.

A “sala de crise”, a primeira que visitamos, está conectada diretamente, através de um “sistema de telepresença de última geração” com a residência do prefeito (ou onde ele estiver pelo mundo), com a sede da Defesa Civil do município e mesmo com o palácio de governo estadual (“com respostas imediatas em situações de emergência”, segundo o folder). A sofisticação tecnológica envolve o monitoramento da cidade através de mais de 600 câmeras (eram 150 no início de 2011 e, com instalação já iniciada, haverá uma em frente a cada um dos 10 mil coletivos urbanos) posicionadas estrategicamente junto às principais vias de circulação, nas mais diferentes áreas do município. No total são mais de 70 camadas de informação georreferenciada acessíveis numa sala de controle com “o maior telão da América Latina” (doado pela Samsung), composto por 80 monitores, e onde se revezam diariamente cerca de 400 profissionais de mais de 30 diferentes órgãos e concessionárias que servem ao município. 

O COR é, assim, um enorme condensador de “geografia bruta” – sem mapa, sem georreferenciamento, o sistema de “cuidado” (leia-se, sobretudo: monitoramento, vigilância, controle) alegado numa declaração do prefeito, não existe. Trata-se do espaço em seu sentido absoluto, referencial universal abstrato, da geografia em seu sentido mais elementar: a geografia do mapa clássico, porém tecnologicamente sofisticado, que se mostra aqui em toda a sua magnitude cartográfico-quantitativa.

Reúne-se num único núcleo dezenas de informações diferentes e recombináveis que vão desde a localização em tempo real de cada caminhão de coleta de lixo até a situação da distribuição de gás e de eletricidade, a todo momento, em qualquer ponto da cidade. A relevância dessa visão social integrada sobre múltiplas dimensões do espaço, envolvendo os mais diversos órgãos, secretarias e concessionárias que servem ao município é indiscutível, pois lembra um papel elementar (e fundamental), mas tantas vezes menosprezado pelo Estado: o planejamento integrado de seu território. Na verdade, se o acionamento desse aparato integrado não fosse feito basicamente em função da vigilância ou do “gerenciamento de crises” mas, antes, em prol de ações também integradas de transformação efetiva dos espaços sociais mais precarizados, aí sim ele teria um grande papel.

Sabemos, porém, que além dessas situações emergenciais identificadas pelo próprio Centro, ele é estratégico e se tornou praticamente uma exigência internacional para o monitoramento e a vigilância capazes de prevenir problemas durante os momentos também “excepcionais” da realização dos megaeventos. Vincula-se, portanto, também, à política “excepcional” (de exceção) dos grandes eventos e adquire o caráter de modelo (e publicidade) dessa nova logística de segurança. 

Além de compor o marketing da “nova cidade olímpica” e associar-se de forma lapidar às exigências de segurança global impostas para sua realização (não é à toa que a grande corporação IBM é sua principal mentora), o papel publicitário e/ou imagético (em todos os sentidos) do Centro é primordial. É assim que uma sala privilegiada é reservada à imprensa, com vista para a sala de controle e seu imenso telão, e que uma das fontes alimentadoras de imagens do COR são os próprios sobrevoos da cidade realizados pelas redes de televisão (basicamente Globo e Record) – que, por sua vez, fazem do COR um núcleo-base para suas informações e até como locação e cenário para emissão de seus noticiários. 

A cidade informatizada e supermonitorada do futuro se delineia hoje no COR do Rio de Janeiro. Uma repórter do New York Times chegou a comparar a sala de controle com uma sala de monitoramento espacial, a da NASA (e foi realmente a sensação que tive – porém comparada com o centro de controle de missões espaciais da Rússia, em Moscou, que visitei durante um congresso de Geografia nos anos 1990). Fala-se que até o uniformes dos funcionários teriam sido inspirados nos do organismo norte-americano. 

Do macro ao microespaço, o máximo de controle geográfico possível – no caso do município do Rio de Janeiro, o ambiente do COR surge como uma espécie de espaço esquizofrênico diante não só de periferias que estão entre as mais precarizadas e negligenciadas do planeta, mas também pelo despreparo físico e humano nos procedimentos “in loco” que materializam essas ações de “cuidado da população” (numa expressão que alia termos utilizados pelo prefeito à biopolítica foucaultiana). Nesse sentido, talvez o termo “quartel-general” utilizado no folder de apresentação seja realmente apropriado. Os interesses em jogo, para quem ele se torna relevante e para o que prioritariamente serve, eis a questão a ser constantemente recolocada sobre esses centros de controle, protótipos de nossas altamente vigiadas megalópoles do futuro.