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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Lília Schwarcz: O passado como lembrança e esquecimento

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo. É autora de diversos livros, como O Espetáculo das Raças (1993) e D. João Carioca: A Corte Portuguesa Chega ao Brasil (2008), entre outros. Atualmente, é a Princeton Global Scholar. 

Nos relatos de finais do XIX a memória ou desmemória da escravidão é tema constante. Nada como lembrar do Hino da República, criado em 1890, portanto dois anos após a abolição da escravidão, e que entoava solene: “Nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país”! A escravidão mal havia acabado e já era objeto do passado remoto; do “outro”.

Essa característica de jogar para o “outro”, seja na história, no tempo, na geografia simbólica ou na situação social o prejuízo “da escravidão e do racismo” é característica recorrente, persistente, de um certo modelo brasileiro de pensar o tema racial. A condição de “outro” faz parte de uma série de relatos nacionais que justificam o caráter inclusivo da experiência brasileira.

Joaquim Nabuco, por exemplo, deixou em seu conhecido texto “Massangana”, páginas memoráveis nesse sentido, mostrando o que chamou de “saudade do escravo”; saudade melancólica de um “ethos de pretos dadivosos”, que agradeciam ao ato da abolição como quem mostra-se para sempre fiel ao presente e à pessoa do presente. E aí vai a dialética do escravo, pensada em termos tropicais.

“Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela.”

A lembrança da escravidão ficava assim guardada num canto escuro da memória; tanto que a morte da madrinha aparece como uma “cortina preta que separa do resto de minha vida a cena de minha infância”. Nabuco tinha oito anos na memória e seu mundo estava prestes a mudar. O pai o mandaria buscar e o menino rumaria para o Rio de Janeiro. É como se o tabu se transformasse em totem, mito de amor e de política.

Uma boa escravidão (por oposição à norte-americana), bons proprietários e escravos dadivosos era mais que um exemplo isolado, mas um modelo que seria seguido a risca por Gilberto Freyre nos anos 30 e faria escola. Eis um lado (igualmente verdadeiro da equação brasileira): inclusão social definida pela afeição e pela cultura, entendida como traços compartilhados na cultura.

Com nove anos de distância, Lima Barreto também usaria da memória para falar e repensar o presente. O escritor tinha 9 anos, mas é como adulto que relembra uma passagem na escola:“Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição, foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua injustiça originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! (...) São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar. Quanta ambição ele não mata. Primeiro são os sonhos de posição, os meus saudosos; ele corre e, aos poucos, a gente vai descendo de Ministro a amanuense; depois são os de Amor – oh! como se desce nestes! ... Viagens, obras, satisfações, glórias, tudo se esvai, e esbate com ele. A gente julga que vai sair Shakespeare e sai Mal das Vinhas; mas tenazmente ficamos a viver, esperando, esperando... O que? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe se a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?” [1].

O relato não parece ter escrito para ser lembrado ou legado para a posteridade (diferente de Massangana). Aliás, foi deixado nas costas de um papel do Ministério da Guerra; local em que Lima atuava como Amanuense. O escritor nunca escondeu suas antipatias para com a profissão e usava do tempo livre para se dedicar à literatura: crônicas, contos, novelas. O tom é, porém, diferente do anterior. Ambos carregam certa nostalgia, mas se um fala com saudades de um tempo que não existe mais – apagado pela pátina do tempo – já o segundo é marcado por certo pessimismo. O tempo passado não era.

Diverso de um certo “preconceito retroativo”, presente no texto de Nabuco, nesse caso o modelo é o da exclusão social. O tempo que não foi, que, na verdade, não existiu. A abolição que não foi; a república cujo sonho foi curto. Temos aqui pois, o contrário do contrário que resulta em semelhante. Nabuco, ao valorizar a escravidão brasileira, desfralda todo o racismo da elite nacional. Lima, ao temer pela sorte dos seus desfigura a importância de certas sociabilidade brancas para a sua formação. Não há pois preto no branco; ou mero efeito de contraste.








[1] BARRETO, Lima, escritor e jornalista. O traidor. [S.l.], [19__]. Orig. Ms. 10 f. FBN/Mss I-06,35,0964. Fundo/Coleção Lima Barreto.

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