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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O Estado do ICHF - Pérola Lannes

Uma nova edição da Folha chega à nossa universidade no momento em que ela está mais dinâmica: o início de um novo semestre, ainda que turbulento. Calouros ansiosos entrando na fila do bandejão como se não houvesse amanhã (até encararem o primeiro peixe, convenhamos), professores e alunos voltando à ativa, discutindo seus interesses, decidindo seus rumos depois de aproveitarem (ô!) suas duas semanas de férias. Lindo.
Se pensarmos em início de semestre já fica óbvio do que vamos reclamar nessa edição, IdUFF e cia., claro. Todos os alunos do ciclo básico da graduação em história com problemas no sistema – os que estão se candidatando às disciplinas que não são próprias do seu semestre e turno, então, nem se fala. O sistema diz que estamos excedentes, porque alguém configurou essas matérias para aceitarem 10 pessoas no máximo. Básico com 10 alunos, quem dera! Pode passar de 50, como todos sabem.

Ah, foi um erro de digitação? Ah, sim, claro, o IdUFF também é humano.
Bem, não sejamos rudes, claro, existe a possibilidade de que os responsáveis não tenham conseguido retificar essa pequena falha em tempo porque o sistema caiu, de repente é isso... Inclusive nós aqui da Folha lançamos mão das nossas credenciais oficiais de impressa e de uma destreza espetacular para conseguir carregar o IdUFF mais de uma vez por semana e recolher os dados necessários para essa seção.
É, foi. Porque a quantidade de vezes que o sistema esteve fora do ar ou extremamente lento durante o período de inscrição é quase comparável ao sistema da biblioteca – porque esse é hors concours, fui tentar acessar para escrever esse texto e continuam “preparando a ajuda para o novo catálogo online”... Ao fim dessa manutenção o sistema da BCG será o melhor do mundo.
E esse papo todo é só sobre a inscrição online. Tem muito pano pra manga. A integralização de currículo, criptografada para um observador menos atento; o lançamento das disciplinas de 2012.1 fora do prazo em mais de um caso; a carteirinha que demora séculos para chegar, não tem o número da matrícula, mas sim o da conta que você talvez queira abrir no Santander – esquisita essa história de amor, aliás, como também falamos no Editorial desta edição –; a Conexão UFF, a rede social dos nossos sonhos, em que as disciplinas desse semestre ainda não constam.
Isso tudo não pode ser erro de digitação. Será que toda burocracia pública é condenada à ineficiência? Será que falta investimento? Incentivo? Pessoal capacitado? Isso dá uma reportagem para outra edição, quem sabe... Porque ao contrário dos mosquitos ou da greve de ônibus, a questão do IdUFF é estrutural. Bem, talvez os mosquitos também, mas enfim.

O fato é que precisamos lutar pela melhora das nossas condições de estudo. Em minha opinião, sem transformar nossos problemas cotidianos em discussões sobre a questão da ajuda humanitária na Indochina. Imaginem se, cada vez que o IdUFF estiver fora do ar, cada estudante que tentasse acessá-lo mandasse um e-mail cobrando providências. É um meio de ação, assim como o movimento estudantil institucional. E qualquer um que disponha de cinco minutinhos pode fazer isso. Porque qualquer esforço é bem-vindo para manter essa universidade um exemplo de excelência, acho que nisso todos concordamos. E para lembrar a nós mesmos porque escolhemos e lutamos para estar aqui." ● 

Pérola Lannes é graduanda em História pela UFF.Gostaria de escrever para esta seção? Mande uma crônica ou peça de opinião que evidencie obstáculos que a estrutura do ICHF (ou da UFF) coloca à qualidade do ensino para afolhadogragoata@gmail.com

Carta -- Yuri Kestenberg

Na cozinha ela olhou para mim. Não sei porquê acompanhou-me até lá, fui pegar um pano qualquer para secar o chão que ela havia maculado, foi por compaixão ao nervosismo que explicava a minha hiperatividade, foi amizade a quem sempre vale prestar compania, foi dó do aio entristecido. Correndo à área de serviço, apressei-me em dizer:

- Não venha, por aqui o chão está molhado.

O que ela aceitou de bom grado, já me encontrava agachado. Com o pano na mão, debrucei-me sobre o tanque. Ela me dá ânsias, e lá consternei a própria face. Das duas uma: em um níquel de segundos desmascara-me, ou ao mesmo preço esvai o momento, deperdiça a moeda rogando um desejo sobre o meu ombro, e estatela-te no poço de líquida alma. Perturbações. Isso me dá ânsias.

Supondo a primeira hipótese e a transfigurando em opção, de lá olho pra baixo. Não tanto ao que se mire o ralo, o que seria muito desprezo, nem tão alto que mire a insolente bica, ao que pela cena já esvairia as forças.

- Sabes o que me deixa triste?

Ao passo que seu rosto branco revele uma comiserada surpresa, ela esperava que algo fosse dito, atiçava a vertigem do diálogo durante a curta estada branca cozinha, bem iluminada, uns restos de festa sobre a pia, uma certa distância com porta aberta.

- Dizes que é feia, quando não é, e afirmas ser burra sempre, sendo o extremo oposto. Desvalorizas-te por demais, vivendo ao lado do exemplo mór dum estouvado. Não aguento.

No que o leitor afirma piegas o rumo da história tomado, sinceramente, posso justificar-me. E que mesmo assim ria das minhas excusas diretas, excuso-me, e tento compreensão na própria folha, cuja gramatura serve de distância ao ridículo. Já acostumei ao ridículo, à real amizade da angústia, e o sobrolho sempre direcionou-se à desilusão, quando presente em calorosos beijos e abraços ao canto da sala, pode-se dizer até em rotina. Ordena o estômago de quem escreve para embrulho, que é o que real aconteceu.

A rebelião interna que levou às hemácias exigirem as primeiras palavras foi deveras algo incomum, ele não era dado a isso. Quieto, suportar a pancada sempre lhe conviu, um gemido quieto, pudicismo e ética fizeram escolher esse caminho durante a vida, e calejado todo já está. A pancada demora a doer. Dessa vez era demais.

- De todas as misérias – e aqui se emprega o feminino, que aparenta ser mais digno de misericórdia – essa é a única que me faz chorar. O meu pai me processar na Justiça, os meus irmãos passarem necessidade, à minha mãe faltar dinheiro, a magreza que me aflige, o futuro que mostra os dentes, os amigos que vão ao largo. Nada realmente me faz chorar, não menisca o límbico, a não ser você, e antes de tudo a tua desvalorização e a clara solidão à que você destranca a porta.

E ele chorou aquela noite.●


Yuri Kestenberg é graduando em Matemática Aplicada pela UFRJ

Renato Lessa: Filosofia Política: para quê?



Renato Lessa é professor titular do Departamento de Ciência Política da UFF, além de Investigador associado do ICS – Lisboa e presidente do Instituto Ciência Hoje. Tem diversas obras publicadas, entre as quais A Invenção Republicana (1988) e Presidencialismo de Animação (2006). É também coordenador do Laboratório de Estudos Humeanos da UFF e do Observatório de Países da Língua Portuguesa.

A “Política”, enquanto campo de conhecimento, mantém uma relação de identidade nominal com o objeto sobre o qual se debruça, qual seja, a política desprovida de aspas. Em termos diretos, trata-se, para o praticante da “Política”, de estudar a política, em uma convergência entre nome e coisa há muito estabelecida por Aristóteles, em duas de suas obras primas, a Política e a Ética a Nicômano, nas calendas gregas de tempos menos aziagos. Tal redundância confere à reflexão política – suspendamos agora as aspas – um lugar singular entre as disciplinas que, de uma forma canônica, compõem o conjunto das assim chamadas ciências sociais.

Com efeito, se nada proíbe a antropólogos e sociólogos o exercício de uma auto-observação profissional e sistemática a respeito de suas próprias disciplinas - materializadas em uma “Antropologia da Antropologia”, ou em uma “Sociologia da Sociologia” – é impossível afirmar que existam domínios, designados pelos termos “sociologia” e “antropologia”, que se imporiam como objetos obrigatórios a ser considerados pelas disciplinas que portam os mesmos nomes. Em suma, nestas áreas, nada há de semelhante à sentença que sustenta que “o objeto da ‘Política’ é a política”. Em termos mais diretos, nenhum antropólogo sustentará que a “Antropologia” define-se pelo estudo de algum objeto designado pelo termo antropologia, assim como seria assombroso encontrar sociólogo que defenda que a “Sociologia” o faça com relação a algo que se designe como sociologia. Já vi na vida coisas muito estranhas, mas não a tal ponto.

Ao considerar essas diferentes, digamos, disciplinas – Antropologia, Política e Sociologia – não tenho por meta estabelecer prioridades. Sei que as crenças profissionais dos praticantes destes campos incluem grande dose de etnocentrismo, vá lá, científico. Não sou praticante deste jogo, e reservo minha carga inevitável de etnocentrismo para outros assuntos. Meu argumento, neste pequeno ensaio, visa tão somente estabelecer distinções, e não hierarquias de relevância, com vistas a poder dizer duas ou três coisas a respeito das particularidades do conhecimento político.

Se algum juízo de vantagem puder ser afirmado, este parece favorecer antes a Antropologia e a Sociologia, e não a Política. A razão é simples. Por crer na identidade plena com seu objeto, a Política, enquanto campo reflexivo, dá como certa e indisputada a existência de objetos políticos que, por definição, caem sob sua jurisdição. Não é por outra razão que o “politólogo médio” tende a especializar-se no estudo das instituições políticas. Tal inclinação, menos do que natural, resulta de uma crença profissional: a de que politólogos estudam “objetos políticos”.

Nossos colegas antropólogos e sociólogos tendem a representar seus campos cognitivos mais como perspectivas de observação do que como domínios disciplinares, detentores de jurisdição preferencial sobre certos objetos. É mesmo o caso de ler – ou reler – a pequena obra prima de Peter Berger, Invitation to Sociology, sabiamente traduzida entre nós sob o título de Perspectivas Sociológicas (Petrópolis: Editora Vozes, 1976). Ali encontraremos, para além das razões da vocação específica do cientista social, a defesa da ideia de perspectiva, como parte inerente ao processo de conhecimento social. Isto significa dizer que qualquer objeto ou assunto pode, em princípio, ser enquadrado a partir de perspectivas sociológicas ou antropológicas, sem que os objetos desta, digamos, ação perspectivada sejam inerentemente “sociológicos” ou “antropológicos”. Que o diga o mais brilhante dos sociólogos portugueses contemporâneos, José Machado Pais, autor de pungente e inspirado estudo sociológico sobre a solidão, com base em observações de pet shops, lavanderias noturnas, bêbados, vagabundos, imigrantes e moribundos (ver Nos rastos da solidão: deambulações sociológicas, Porto: Ambar, 2006).

Os politólogos – e refiro-me aqui aos “politólogos médios” ou típicos, treinados nos laboratórios intensivos de institucionalismo e de mensuração – recusam tal ideia de perspectiva e aderem à crença de que há objetos políticos por natureza. Parlamentos, partidos, políticas públicas, eleições, entre outros, constituem seus objetos naturais. E não vai aqui qualquer juízo quanto à qualidade do que faz a “Política” – ou Ciência Política – orientada para estudos institucionais e muito menos quanto à relevância indisputada dos temas. Há excelentes trabalhos institucionalistas, de leitura recomendável e útil para o estudioso das ciências sociais e da história. O que aqui está em questão são as características do paradigma, e não a qualidade específica de pesquisas particulares. Um paradigma que, com frequência, reduz a riqueza e a variedade da vida social e da ação humana a “variáveis” estritamente políticas e institucionais e a cálculos estratégicos. Houve mesmo, por exemplo e para citar um paroxismo, quem interpretasse o desastre brasileiro de 1964, com a queda de João Goulart, como decorrente de uma crise no interior do parlamento.

A desvantagem do conhecimento político, no que diz respeito à naturalização de seus objetos, possui, no entanto, fortes compensações. A principal é a da natureza normativa – isto é, prescritiva ou propositiva – desta forma de conhecimento. Mesmo politólogos mais aderidos à cultura intelectual da positividade científica, e do respeito contrito à vida como ela é, não escapam do abismo da prescrição. Não há, por exemplo, especialista em sistemas eleitorais que não tenha o “seu”, aquele de sua predileção. Eu mesmo, quando frequentei este campo, andei a tecer loas ao sistema eleitoral praticado na República da Irlanda e na Câmara Alta da Tasmânia! Cheguei mesmo a argumentar das vantagens de sua adoção no Brasil. Tal grau de voluntarismo opinativo não será encontrado, por exemplo, entre etnólogos que se ocupam da análise de sistemas de parentesco em sociedades “tradicionais” ou “primitivas”, tal como se dizia antigamente. Não conheço nenhum especialista em sistemas de parentesco que tenha iniciado movimentos de reforma das relações de parentesco, nas sociedades por ele estudadas. Imaginem só, a bela proposta que disto resultaria: “sugiro alterar o fundamento matrilinear da sociedade Canela, com a correspondente adoção das regras patrilineares dos Mundukuru”. Seria uma bela peça de humor, mas, de certeza, péssima Antropologia.

Como explicar e – o que é mais interessante – justificar o componente normativo do conhecimento político? A resposta exige menção a outro traço distintivo da Política – como campo reflexivo – com relação às demais Ciências Sociais. Enquanto a Antropologia e a Sociologia são de extração recente, ou seja, começam a constituir-se a partir de meados do século XIX, a “Política” resulta de um movimento reflexivo contemporâneo à invenção da política como atividade humana. Em outros tempos, pensamento político e ação política foram, em sua origem, expressões culturais de um experimento – ocorrido entre os gregos durante o século V anterior à Era Comum – marcado pelo estabelecimento de uma distinção entre Physis – Natureza – e Nomos – regra ou lei. Tal distinção é crucial para o estabelecimento de um âmbito político, no qual a ação humana “faz diferença”, ao contrário dos desígnios da Natureza, sobre os quais tal ação não é “causa eficiente” ou motora.

Tal distinção foi posta inicialmente pela filosofia desenvolvida pelos sofistas, tal como depreendemos do que restou de pensadores tais como Protágoras, Górgias e Antifonte. Mas encontraremos tal oposição, de forma inequívoca e direta, em Aristóteles, em vários aspectos um “inimigo” dos sofistas. É o que pode ser depreendido de sua definição – posta na Ética a Nicômaco, uma obra-prima do engenho humano – da ideia de deliberação como atividade humana que incide sobre assuntos incertos e cujos efeitos são indeterminados. Não é acidental que o tema da deliberação tenha sido central para a democracia ateniense: ali tratava-se de decidir sobre assuntos que não são estabelecidos por forças naturais, mas pelo engenho humano da política.

Política, nesta chave originária, significa deliberar e decidir, de modo coletivo, a respeito de questões de interesse público. É impossível imaginar que deliberações possam dispensar reflexão a respeito do que se está a deliberar. Pois bem, é justamente tal reflexão, inerente ao exercício da deliberação, que se apresenta como constitutiva de um hábito de pensamento – a “Política” – cuja constituição é simultânea à invenção de seu objeto – a política. Como se pode ver, trata-se de matéria muito antiga e, por isso mesmo, sujeita a inúmeras ressignificações ao longo do tempo. Hoje o que retemos desta forma originária da política – como prática humana – é, na melhor das hipóteses, residual. Mas, por outro lado, há uma característica da “Política” que se mantém, e que é condição mesma para a sua consistência: a combinação entre realismo – ou seja, esforços cognitivos para considerar o que se passa na vida política – e alucinação – ou seja, a imagem de como o mundo poderia ou deveria ser.

Temo suscitar entre os mais prudentes algum dissabor, ao sustentar que na oposição entre realismo e alucinação é a segunda faculdade do espírito humano que comanda a primeira, e não o contrário. Em outros termos, os gregos, quando deliberavam em suas assembleias, cuidavam de duas dimensões distintas, porém combinadas, da política. Ao mesmo tempo em que discutiam “o que fazer”, com as implicações práticas que disto decorrem, tratavam de deliberar a respeito do “por que” ou “para que” fazer, o que implicava em incluir no campo da reflexão política questões absolutamente cruciais, hoje um tanto perdidas de vista, dados os hábitos mentais cientificistas que vigoram: que sociedade queremos? O que é uma vida boa? O que é o justo? Como vemos, tais questões vinculam a “Política” ao campo maior da Filosofia, o que justifica dizer que o conhecimento politico é “filosofia política”. Esta tem sido, ao longo dos séculos, abrigo de esforços de entendimento daquilo que se passa no mundo da vida como ela é; esforços orientados por crenças em desenhos de mundos possíveis e imaginados.

A filosofia política ocupa-se do campo do possível – ou de universos possíveis - e este é, por definição, mais – muito mais – amplo do que o universo finito da nossa experiência prática. Em grande medida, são os efeitos deste infinito em nós que nos orientam para lidar com os dilemas da nossa inapelável finitude. Bem disse, certa altura, o cineasta e ensaísta alemão Alexander Kluge: para sermos realistas, devemos ser irrealistas. Disse-o no século XX. Muito antes dele, Jean-Jacques Rousseau falou-nos de uma igualdade originária e natural que, segundo ele próprio, jamais existiu, não existe e não existirá, mas que, a despeito disto, dela é imperativo ter uma noção precisa para melhor avaliarmos nossa condição presente.

É mesmo espantoso: ter uma noção precisa a respeito de algo que não existe, para que melhor compreendamos o que existe. Ninguém melhor do que Rousseau – em seu magnífico Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade humana, de 1754 - fixou a ideia de que sem a ajuda da alucinação, não há conhecimento possível do mundo. Ponto para Kluge e para Rousseau, mas nada melhor do que a precisão poética de Paul Valéry para tornar o argumento ainda mais aliciante: o que seria de nós sem o socorro do que não existe? ●

Lília Schwarcz: O passado como lembrança e esquecimento

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo. É autora de diversos livros, como O Espetáculo das Raças (1993) e D. João Carioca: A Corte Portuguesa Chega ao Brasil (2008), entre outros. Atualmente, é a Princeton Global Scholar. 

Nos relatos de finais do XIX a memória ou desmemória da escravidão é tema constante. Nada como lembrar do Hino da República, criado em 1890, portanto dois anos após a abolição da escravidão, e que entoava solene: “Nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país”! A escravidão mal havia acabado e já era objeto do passado remoto; do “outro”.

Essa característica de jogar para o “outro”, seja na história, no tempo, na geografia simbólica ou na situação social o prejuízo “da escravidão e do racismo” é característica recorrente, persistente, de um certo modelo brasileiro de pensar o tema racial. A condição de “outro” faz parte de uma série de relatos nacionais que justificam o caráter inclusivo da experiência brasileira.

Joaquim Nabuco, por exemplo, deixou em seu conhecido texto “Massangana”, páginas memoráveis nesse sentido, mostrando o que chamou de “saudade do escravo”; saudade melancólica de um “ethos de pretos dadivosos”, que agradeciam ao ato da abolição como quem mostra-se para sempre fiel ao presente e à pessoa do presente. E aí vai a dialética do escravo, pensada em termos tropicais.

“Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela.”

A lembrança da escravidão ficava assim guardada num canto escuro da memória; tanto que a morte da madrinha aparece como uma “cortina preta que separa do resto de minha vida a cena de minha infância”. Nabuco tinha oito anos na memória e seu mundo estava prestes a mudar. O pai o mandaria buscar e o menino rumaria para o Rio de Janeiro. É como se o tabu se transformasse em totem, mito de amor e de política.

Uma boa escravidão (por oposição à norte-americana), bons proprietários e escravos dadivosos era mais que um exemplo isolado, mas um modelo que seria seguido a risca por Gilberto Freyre nos anos 30 e faria escola. Eis um lado (igualmente verdadeiro da equação brasileira): inclusão social definida pela afeição e pela cultura, entendida como traços compartilhados na cultura.

Com nove anos de distância, Lima Barreto também usaria da memória para falar e repensar o presente. O escritor tinha 9 anos, mas é como adulto que relembra uma passagem na escola:“Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição, foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua injustiça originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! (...) São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar. Quanta ambição ele não mata. Primeiro são os sonhos de posição, os meus saudosos; ele corre e, aos poucos, a gente vai descendo de Ministro a amanuense; depois são os de Amor – oh! como se desce nestes! ... Viagens, obras, satisfações, glórias, tudo se esvai, e esbate com ele. A gente julga que vai sair Shakespeare e sai Mal das Vinhas; mas tenazmente ficamos a viver, esperando, esperando... O que? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe se a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?” [1].

O relato não parece ter escrito para ser lembrado ou legado para a posteridade (diferente de Massangana). Aliás, foi deixado nas costas de um papel do Ministério da Guerra; local em que Lima atuava como Amanuense. O escritor nunca escondeu suas antipatias para com a profissão e usava do tempo livre para se dedicar à literatura: crônicas, contos, novelas. O tom é, porém, diferente do anterior. Ambos carregam certa nostalgia, mas se um fala com saudades de um tempo que não existe mais – apagado pela pátina do tempo – já o segundo é marcado por certo pessimismo. O tempo passado não era.

Diverso de um certo “preconceito retroativo”, presente no texto de Nabuco, nesse caso o modelo é o da exclusão social. O tempo que não foi, que, na verdade, não existiu. A abolição que não foi; a república cujo sonho foi curto. Temos aqui pois, o contrário do contrário que resulta em semelhante. Nabuco, ao valorizar a escravidão brasileira, desfralda todo o racismo da elite nacional. Lima, ao temer pela sorte dos seus desfigura a importância de certas sociabilidade brancas para a sua formação. Não há pois preto no branco; ou mero efeito de contraste.








[1] BARRETO, Lima, escritor e jornalista. O traidor. [S.l.], [19__]. Orig. Ms. 10 f. FBN/Mss I-06,35,0964. Fundo/Coleção Lima Barreto.

Editorial - Da arbitrariedade universitária

Apesar de estudarmos em uma universidade pública, não raro somos surpreendidos por decisões administrativas, de mérito para lá de discutível, tomadas sem nenhuma discussão com a comunidade acadêmica. Exemplo máximo disso é o projeto de transformar o Gragoatá numa versão reduzida do Fundão, com carros passeando livremente por dentro do campus. Se é difícil escutar aulas por causa das obras, com caminhões e carros particulares a coisa certamente não ficaria menor.
Felizmente a reitoria voltou atrás, não sem antes ter de encarar uma ocupação de seu prédio no Ingá. De quebra, ainda teve de conversar sobre diversas outras reivindicações antigas dos estudantes, como a construção de outro bandejão. Como será que vão as obras?
As vias Orla e 100 estão longe, infelizmente, de serem as únicas medidas recentes bizarras da reitoria. Ano passado, através do email @id.uff.br, pelo qual recorrentemente somos alvo de propaganda institucional (que incluem avisos sobre a semana de prevenção ao ataque cardíaco e um parabéns pelo dia dos professores), fomos informados sobre uma nova carteirinha de estudantes da UFF. Teríamos inúmeras vantagens: a carteirinha poderia ser usada como cartão de débito (com desconto em negócios perto dos campi) e Vale Transporte, além de, claro, carteira de estudante.
O que recebemos, no final do semestre passado, foi um cartão do Santander (já com seu potencial número) que tem, por acaso, nosso nome e uma foto mal impressa. Para ser justo, há também o nome do curso, mas, ilustrativamente, em várias não há o número de matrícula. Para habilitar a função Vale Transporte, é necessário desabilitar qualquer Bilhete Único ou semelhante já cadastrado pelo CPF do aluno. Qualquer um que já usou o site do Riocard sabe que isso é equivalente a dizer que não é possível usar a Função Vale transporte.
Por que nosso cartão da UFF virou um cartão de débito do Santander? Como foi o processo de licitação? O que a universidade ganhou com isso? Para onde foi o dinheiro do convênio? Será que a biblioteca terá mais dinheiro para fazer aquisição de livros? Será que o os banheiros masculinos do Bloco N não vão feder mais nem ser hábitats de colônias de mosquinhas?●