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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Edição de Abril de 2014

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Conteúdo:

1. Carta do Editor

2. Não aconteceu nada em Junho de 2013 - Marcos Nobre


3. Big Brother carioca: centros de controle e monitoramento de geografia bruta - Rogério Haesbaert

4. O Encontro das Três Águas - Breno Góes

5. O Traço de Camila Pizzoloto


Carta do Editor

Sem que esta fosse nossa intenção, a edição deste mês tem um tema que a perpassa. Rogério Haesbaert e Marcos Nobre escreveram sobre o que talvez seja, desde as manifestações de junho do ano passado, o tema mais importante para as Ciências Humanas no Brasil. Vivemos um dos poucos momentos na História do Brasil em que parece que temos o poder de moldar a sociedade em que vivemos.

Haesbaert, professor da Geografia da UFF, escreve sobre um dos instrumentos de “organização científica” da sociedade, o Centro de Controle de Operações da prefeitura do Rio. O Centro, defende, é evidência de um projeto de cidade que vê como mais importantes as situações excepcionais pelas quais o Rio passará ,em  especial os grandes eventos; e que coloca mais ênfase nas situações de exceção, ou “crises” e sua pronta resolução. Seu artigo, portanto, discute um dos projetos de moldar a sociedade, que (infelizmente) tem grande poder e influência no caso do munícipio do Rio.

Este projeto parece ter sido criado, em parte, para conter as formas de política que pedem por outros projetos: encara eventos como as grandes manifestações do ano passado como as “crises” que deve solucionar (seja lá o que isso queira dizer).

Já Marcos Nobre, professor de Filosofia da UNICAMP, escreveu motivado por uma frase que se tornou comum: “Não aconteceu nada em junho”. As manifestações, tendo sido esvaziadas por diversos motivos (entre os mais discutidos, a violência da polícia e de manifestantes mais radicais, a grande divergência das reivindicações, a inexistência de uma liderança... ), não teriam nenhuma consequência concreta, dizem seus críticos de hoje. Muitos dos que dizem isso estiveram na Rio Branco, na Presidente Vargas, e no Palácio Guanabara, e o fato de não mais se identificarem com seu próprio entusiasmo da época os faz ainda mais pessimistas.

Nobre tenta algo corajoso: para ele não só de fato “aconteceu” algo como o que aconteceu foi uma mudança radical na democracia brasileira. Tratou-se de uma rejeição sistemática do que chama de “pemedebismo”, ou a criação de unidades políticas forçadas em nome de uma governabilidade. O Junho de 2013, para Nobre, representou o povo brasileiro exigindo a volta da polarização política verdadeira, e quem sabe o novo jogo de alianças que aos poucos se delineia para as próximas eleições seja exatamente reflexo disso.


Na nossa seção dedicada aos alunos, o tema reaparece. A fantástica crônica de Breno Góes trata das manifestações, pela primeira vez entre todos os textos que li que as tem como objeto, com humor. Não anteciparei nada para não roubar do texto sua engenhosidade. E, para fugir um pouco de junho, incluímos também os desenhos mais introspectivos de Camila Pizzolotto, cujo traço é formidável. Aqui, na edição online da Folha, os temos em maior quantidade, vale a pena clicar

Não aconteceu nada em Junho de 2013 - Marcos Nobre

Marcos Nobre é professor do departamento de Filosofia da UNICAMP, e um eminente filósofo brasileiro. É também membro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Publicou diversos livros – entre eles são dignos de nota Habermas e a Reconstrução (2012) e Curso Livre de Teoria Crítica (2008). Seus trabalhos mais recentes tentam entender as consequências políticas das manifestações do ano passado.  


É cada vez mais comum ouvir a afirmação do título acima. Às vezes, em versões mais suaves, o que se diz é que houve uma espécie de “deu!” geral, uma espécie de irrupção vulcânica social. Mas que agora tudo teria voltado ao “normal” da política depois dessa espécie de catarse coletiva.

O pressuposto da afirmação é que só “acontece” de fato alguma coisa quando há alguma mudança institucional radical: um golpe, uma nova forma de Estado, uma nova Constituição, uma revolução, uma derrubada das instituições existentes. Mais que isso, esse “acontecimento” tem de ser rápido, imediato. Algo como a revogação do aumento das tarifas de transporte, ainda em Junho de 2013, só que em versão ampliada.

E, no entanto, grande parte das transformações profundas das sociedades não “acontece” assim. “Acontece” ao longo de décadas. Assim foi, por exemplo, a redemocratização, a partir da década de 1980. E assim será – é a tendência para a qual apontam as análises que proponho, pelo menos – com Junho de 2013.

Dizer isso não é exercício de futurologia ou adivinhação. Segundo a tradição intelectual a que me filio, iniciada por Marx e conhecida pelo nome de Teoria Crítica, o sentido profundo de conhecer é o de transformar a sociedade no sentido de liberta-la da dominação. Isso exige fazer diagnósticos o mais precisos possíveis do momento presente, identificando no momento que vivemos quais são as tendências de desenvolvimento, as potencialidades para a transformação e quais os elementos que se põem como obstáculos a essa emancipação.

É assim que a orientação para a emancipação ilumina os potenciais e os bloqueios à ação transformadora, é assim que a teoria identifica possíveis pontos de apoio para a prática emancipatória. Dizer que as Revoltas de Junho representam uma ruptura, que representam o fim da (longuíssima) redemocratização e o início da democratização, o início de um ciclo de aprofundamento da democracia – e é isso o que digo –, significa identificar esse momento como chave para marcar uma tendência.

Pretendo enfrentar o desafio posto pelo título deste texto em duas etapas. Primeiro, comparando as Revoltas de Junho com outra “irrupção” social marcante do século XX, o maio de 1968. Espero com isso mostrar que grandes mudanças não começam somente com eventos que têm consequências radicais imediatas. E espero até indicar que esse é um modelo que veio para ficar nas sociedades contemporâneas.

Segundo, enfrento o diagnóstico colocado pelo título apresentando uma interpretação da redemocratização em que as Revoltas de Junho representam uma cesura, um fim e um novo começo. Espero com isso mostrar o lugar especial de Junho de 2013 na história recente do país, indicando seu caráter inédito.

Ao final, procuro pensar esses diferentes elementos de análise em termos das perspectivas abertas para a ação e a reflexão nos próximos anos.
  
De maio de 1968 a Junho de 2013

O maio de 1968 alterou profundamente o modelo de transformação social radical que se tinha até então. Deixou de ser dominante o modelo revolucionário, herdeiro da Revolução Francesa, das revoluções do século XIX e da Revolução Russa, que fez na Guerra do Vietnã sua derradeira aparição. O maio de 1968 não preconiza mais a construção de “um novo homem”, de uma nova sociedade, a partir de cima, a partir da conquista do poder de Estado. A construção da nova sociedade deve se dar desde baixo – o modelo revolucionário de transformação vigente até então também tinha essa pretensão, mas a prioridade da conquista do poder de Estado impedia, na prática sua realização. Esse foi um dos resultados de movimentos de âmbito planetário, bastante diversificados entre si, que não aceitavam ficar espremidos no exíguo espaço que se abria entre a repressão policial e os sindicatos e partidos existentes.

Na conjuntura mundial, o maio de 1968 francês, a versão mais influente do imaginário posterior, foi um movimento de massa relativamente tardio. Mas, talvez por isso mesmo, conseguiu elaborar os impulsos de protesto e de transformação de uma maneira nova, dando nova direção e alento para os movimentos a partir dali. Na fórmula conhecida do líder estudantil alemão Rudi Dutschke, tratava-se então de “revolucionar os revolucionários”. Só a transformação viva de uma base social significativa podia ser o ponto de partida para lutas políticas democráticas abertas que têm por objetivo estender essa transformação mais restrita para o conjunto da sociedade.

O maio de 1968 expandiu os horizontes da política para todas as dimensões da vida cotidiana de uma maneira que não exigia sua subordinação a um “sentido maior” de política, normalmente entendido no sentido restrito de “realpolitik”, de “pragmatismo”, como se diz atualmente. Ao contrário, considerou todas as diferentes dimensões da política como valiosas em si mesmas e por si mesmas, como campos de batalha política tão importantes quanto quaisquer outros. Criou mecanismos de enfrentamento de um poder que não era mais apenas estatal, mas que se infiltrava em todas as brechas da vida social.
Não se trata aqui de edulcorar o que aconteceu factualmente em maio de 1968. Houve muita intolerância no interior dos movimentos, versões autoritárias de transformação social estavam ali presentes também. Como típico momento de transição de um paradigma de transformação para outro, o maio de 1968 foi muito mais um amálgama do velho e do novo. Só com o tempo o novo decantou e se separou definitivamente do velho modelo de transformação, ainda calcado na Revolução Francesa. Só com a sedimentação histórica, com os rumos que tomaram os movimentos de protesto e contestação a partir dos anos 1970 é que se chegou ao imaginário de 1968 que se tem hoje. Em outras coisas, o maio de 1968 também abraçou movimentos e imaginários próximos, como foi o caso do movimento hippie, por exemplo.

Como em todo episódio que se torna referência para a posteridade, também o decisivo aqui passou a ser o imaginário do maio de 1968, muito mais do que a sequência factual dos eventos. Tornou-se uma referência de transformação libertária que é hoje ponto de partida para qualquer grupo organizado que pretenda uma transformação radical da sociedade. E esse imaginário tem como ponto forte a ideia de que uma real transformação não pode acontecer mediante o sacrifício da individualidade, que a organização não pode exigir sacrifícios em nome de um futuro abstrato e longínquo, que o movimento não pode significar submissão do indivíduo a um partido ou grupo de sábios iluminados. Auto-organização não combina com estruturas verticalizadas e hierárquicas.

Na minha maneira de ver, foi esse tipo de modelo de transformação que esteve presente nos grupos mais avançados das Revoltas de Junho.
  
Da abertura democrática às Revoltas de Junho de 2013

Levar seriamente em conta o corte que representaram as duas últimas décadas do século XX no país, levar seriamente em conta a redemocratização, exige pensar o conservadorismo histórico do Brasil em nova chave. Em livros recentes[1], defendo a tese de que um dos mecanismos fundamentais desse novo conservadorismo está em uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo modificando-se ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação, em favor de um ritmo extremamente lento de democratização.

A essa cultura política dou o nome de pemedebismo, em lembrança do partido, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que capitaneou a transição para a democracia, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Mas o nome não quer dizer que essa cultura política se restrinja a esse partido, pelo contrário. Quer dizer que quase todos os partidos brasileiros pretendem, no fundo, ser – grande ou pequeno – um PMDB, ou seja, um amálgama de interesses que sempre está no governo, qualquer que seja o governo.

Coloco como marco inicial da redemocratização a aprovação da lei que reintroduziu o multipartidarismo no país, no final de 1979. E estabeleço como marco final da redemocratização as Revoltas de Junho de 2013, que, na interpretação que proponho, iniciam um novo ciclo, não mais de redemocratização, mas de democratização, de aprofundamento da democracia no país[2].

O período da redemocratização assim estabelecido, de 1979 a 2013, pode ser dividido, por sua vez, em dois grandes blocos. O primeiro, de 1979 até 1994, foi marcado pela coincidência entre o declínio da ditadura militar, a redemocratização e a crise estrutural do modelo de sociedade vigente no país por cinco décadas e que se costuma denominar “nacional-desenvolvimentismo”.

Hegemônica nesse período é a cultura política do “progressismo”, caracterizada pela diretriz de que era necessário unir todas as forças de oposição à ditadura – aquelas que abandonaram o barco em naufrágio no último momento, inclusive. A cultura política do progressismo é a primeira figura do conservadorismo típico da redemocratização, a que dou o nome mais amplo de pemedebismo.

O segundo grande bloco da redemocratização, de 1994 às Revoltas de Junho de 2013, foi marcado pela transição do nacional-desenvolvimentismo a um novo modelo de sociedade, que chamo de “social-desenvolvimentista”. Hegemônica nesse período é a cultura política da “governabilidade”, caracterizada pela ideia de que o impeachment de Collor teria demonstrado a necessidade de governos se apoiarem não apenas em maiorias parlamentares, mas em supermaiorias parlamentares, em esmagadoras maiorias congressuais. A cultura política da governabilidade é segunda figura do pemedebismo e só foi de fato abalada com as Revoltas de Junho.

Porque o traço de união das Revoltas de Junho, a meu ver, foi a rejeição à blindagem pemedebista. Mas não se trata mais de uma unidade forçada como a do progressismo, que dominou as grandes manifestações de massa no país até o impeachment de Collor, em 1992. Menos ainda pode se tratar da unidade forçada da “governabilidade”, em que não há real polarização de posições políticas, mas acomodação amorfa. Junho de 2013 representa a recusa dessa nova unidade, ainda que não necessariamente o seu final.

A rejeição ao pemedebismo veio de todos os lados e se dirigiu contra inúmeros aspectos do sistema político simultaneamente. Também por isso as Revoltas de Junho representam um grande avanço: mostram que a pauta não é mais a da transição para a democracia, em que estava em jogo a estabilização econômica e política, mas já a do aprofundamento da democracia.

As Revoltas mostram que o funcionamento do sistema está em descompasso com as ruas. A sociedade alcançou um grau de pluralismo de posições e tendências políticas que não se reflete na multidão informe de partidos políticos reunidos na coalizão governamental.

Mas um país não sai incólume de vinte anos quase ininterruptos de pemedebismo. Uma juventude que cresceu vendo uma política de acordos de bastidores, em que figuras políticas adversárias se acertam sempre em um grande e único condomínio de poder, não tem modelos em que basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da política. Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de objetivos estritamente eleitorais. O pemedebismo minou a formação política de toda uma geração. Para não falar nos efeitos deletérios que teve sobre o conjunto da sociedade.

Do lado das ruas, não é de espantar que haja uma recusa abstrata de partidos e de organizações políticas em geral. Não é de espantar que divisões políticas como aquela entre direita e esquerda apareçam como irreais ou sem sentido. Não foi justamente o apagamento de divisões como essas o que se viu no governo do país desde que o governo Lula resolveu fazer um pacto com o pemedebismo? O que se vê nas ruas vem exigir novas polarizações. Um efetivo aprofundamento da democracia poderia vir de uma organização polarizada dessas vozes.

Perspectivas

Quando se pensa democracia em sentido largo, como forma de vida, avanços sociais, especialmente contra as desigualdades, são também avanços democráticos. Mas isso não torna aceitável barganhar menos desigualdade pela aceitação de uma cultura política de baixo teor democrático. As duas coisas têm de vir juntas. Se se abstrai de um desses aspectos, o que se perde é a própria possibilidade de crítica e transformação, de diagnóstico e ação.

Do enfrentamento aberto do pemedebismo depende a construção de uma nova cultura política democrática, de instituições autenticamente social-desenvolvimentistas, de um país menos indecente em um passo mais rápido do que permite esse pemedebismo de fundo. As Revoltas de Junho colocaram a nu o esgotamento do modelo político-econômico que corresponde à fase “lulista” do projeto social-desenvolvimentista. Mesmo se os seus efeitos concretos, institucionais, ainda possam demorar a surgir claramente.

Ao mesmo tempo, colocam o desafio de alcançar a próxima figura do modelo, pensando em metas tão essenciais como ir à raiz da radical injustiça tributária, a necessária universalização com qualidade da saúde e da educação públicas, ou mesmo eliminar com relativa rapidez o setor informal da economia, em que emprego não significa trabalho, nem, portanto, direitos sociais correspondentes. Para não falar na consolidação em termos constitucionais de programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família. Ou de um desafio ainda mais complexo como o de criar as condições para a transição ambiental rumo a uma economia de baixo carbono. Apenas para ficar em alguns exemplos.

Do ponto de vista do debate público, fomentar a produção de alternativas reais de ação e discuti-las politicamente é uma das frentes de combate ao pemedebismo. O passo seguinte de aprofundamento da democracia, o da exigência de extinção do pemedebismo e de um sistema político radicalmente reformado, requer formação e aprendizado políticos que dependem de como os polos organizados da sociedade vão (ou não) se reestruturar para receber as novas energias.

É certo que a canalização da insatisfação pode se dar em um sentido progressista ou em um sentido regressivo. Esse é o risco inerente a qualquer aposta no aprofundamento da democracia. Mas uma coisa é certa: recusar o risco é jogar fora a oportunidade de transformação. Já não se trata mais da redemocratização, da transição para a democracia. As Revoltas de Junho encerraram esse ciclo definitivamente. Ao mesmo tempo em que abriram um novo, ainda mais desafiador: o da efetiva democratização da sociedade e da política no Brasil. Como e quando essas novas energias democráticas vão efetivamente plasmar novas instituições e uma nova cultura política é o desafio prático e teórico das próximas décadas.



[1] Choque de democracia. Razões da revolta, livro eletrônico, São Paulo: Companhia das Letras, junho de 2013; e Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] A opção pelo termo “revoltas” remete à tradição política brasileira de chamar assim movimentos como o que se viu em junho de 2013. A opção pelo plural (“revoltas”) pretende indicar não apenas o caráter diverso e diversificado das manifestações, mas igualmente que se trata de uma revolta realizada sob um regime democrático.

Big Brother carioca: centros de controle e monitoramento de geografia bruta - Rogério Haesbaert

Rogério Haesbaert é professor do departamento de Geografia da UFF. É um dos expoentes da geografia humana brasileira, com importantes contribuições no campo das “territorialidades”, tendo sido aluno de Milton Santos. Entre os livros que publicou, destacamos China: entre o Oriente e o Ocidente (1994) e A Nova Desordem Mundial (2006), com Carlos Porto-Gonçalves.



Visitar um hub de controle como o “Centro de Operações Rio” (COR), da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e deparar-se com a sofisticação tecnológica e a enorme quantidade de dados trabalhados através de informações georreferenciadas é como realizar uma viagem no futuro, num enorme contraste com a precarização do espaço (e dos serviços) que se estende por amplas áreas da cidade. Assim, a pergunta que se impõe é: em função de que presente é que esse “futuro” toma forma? Faremos aqui algumas reflexões gerais inspiradas pelo impacto de uma visita ao COR.

Logo no folder de apresentação que encontramos na entrada, o COR (novo core da cidade) é apresentado como uma “espécie de Quartel-General da Prefeitura”, “projeto pioneiro na América Latina” e “primeiro centro do mundo a integrar todas as etapas de gerenciamento de crise”. Construído com esse objetivo explícito de “gerenciar crises”, o COR também lembra, em escala menos dramática, o “capitalismo (produtor e gerenciador) de crises” – ou de desastres, como prefere Naomi Klein. Esta autora, pautada na crítica ao projeto neoliberal de Milton Friedman, utiliza o termo “capitalismo de desastre” para caracterizar um capitalismo marcado pelas “doutrinas de choque” que, a partir de eventos críticos ou catastróficos, trata os desastres como “estimulantes oportunidades de mercado”. 

Esse capitalismo de desastre ou da administração de tragédias vem acompanhado da implantação (e legitimação, especialmente pelo discurso do medo) de regimes de emergência ou de exceção, tanto em nome do combate a crises mais explicitamente biopolíticas (como aquelas ligadas a catástrofes ambientais, como a das inundações que afetaram o Rio de Janeiro em janeiro de 2011, logo após a inauguração do COR) quanto no combate a crises econômicas (que, afirma-se, ocorrerão a partir de agora em intervalos menores e com maior frequência).

Pedro Almeida, diretor de Smarter Cities (Cidades Inteligentes) da empresa IBM, parceira no projeto do COR, quando de uma entrevista à emissora Globo News, afirmou que se trata do centro de controle (ou “de operações” – como numa estratégia de guerra) mais avançado do mundo. Segundo o jornal New York Times, em reportagem de março de 2012, “o que está acontecendo aqui reflete experimento ousado e potencialmente lucrativo que pode moldar o futuro de cidades em todo lugar do mundo”. É o Rio de Janeiro de Eduardo Paes no mapa “lucrativo” da globalização, com sua imagem muito mais vendável e, assim, inserida no circuito (para o município, provavelmente não exatamente lucrativo, mas dispendioso) dos megaeventos.

No folder aparecem em destaque duas salas, a “de controle” e a “de crise”. Percebemos logo como a palavra “crise” virou lugar comum, companhia cotidiana, nem estranhamos mais viver em crise – como diria Milton Santos, a crise agora identifica o próprio período, não a transição de um para outro. Nem mesmo os governantes precisam mais escondê-la, pois grande parte de seu discurso é por ela construído e legitimado.

Uma das principais funções do Centro é a prevenção de tragédias como as que frequentemente afetam o Rio de Janeiro através das inundações. Mas o grande desastre de janeiro de 2011, obviamente, não estava previsto quando da construção do centro. O que estava amplamente previsto, isto sim, era a situação “crítica” ou “excepcional” da cidade a partir da sua transformação em cidade de megaeventos – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – num espaço reconhecidamente marcado por criminalidade e violência.

A “sala de crise”, a primeira que visitamos, está conectada diretamente, através de um “sistema de telepresença de última geração” com a residência do prefeito (ou onde ele estiver pelo mundo), com a sede da Defesa Civil do município e mesmo com o palácio de governo estadual (“com respostas imediatas em situações de emergência”, segundo o folder). A sofisticação tecnológica envolve o monitoramento da cidade através de mais de 600 câmeras (eram 150 no início de 2011 e, com instalação já iniciada, haverá uma em frente a cada um dos 10 mil coletivos urbanos) posicionadas estrategicamente junto às principais vias de circulação, nas mais diferentes áreas do município. No total são mais de 70 camadas de informação georreferenciada acessíveis numa sala de controle com “o maior telão da América Latina” (doado pela Samsung), composto por 80 monitores, e onde se revezam diariamente cerca de 400 profissionais de mais de 30 diferentes órgãos e concessionárias que servem ao município. 

O COR é, assim, um enorme condensador de “geografia bruta” – sem mapa, sem georreferenciamento, o sistema de “cuidado” (leia-se, sobretudo: monitoramento, vigilância, controle) alegado numa declaração do prefeito, não existe. Trata-se do espaço em seu sentido absoluto, referencial universal abstrato, da geografia em seu sentido mais elementar: a geografia do mapa clássico, porém tecnologicamente sofisticado, que se mostra aqui em toda a sua magnitude cartográfico-quantitativa.

Reúne-se num único núcleo dezenas de informações diferentes e recombináveis que vão desde a localização em tempo real de cada caminhão de coleta de lixo até a situação da distribuição de gás e de eletricidade, a todo momento, em qualquer ponto da cidade. A relevância dessa visão social integrada sobre múltiplas dimensões do espaço, envolvendo os mais diversos órgãos, secretarias e concessionárias que servem ao município é indiscutível, pois lembra um papel elementar (e fundamental), mas tantas vezes menosprezado pelo Estado: o planejamento integrado de seu território. Na verdade, se o acionamento desse aparato integrado não fosse feito basicamente em função da vigilância ou do “gerenciamento de crises” mas, antes, em prol de ações também integradas de transformação efetiva dos espaços sociais mais precarizados, aí sim ele teria um grande papel.

Sabemos, porém, que além dessas situações emergenciais identificadas pelo próprio Centro, ele é estratégico e se tornou praticamente uma exigência internacional para o monitoramento e a vigilância capazes de prevenir problemas durante os momentos também “excepcionais” da realização dos megaeventos. Vincula-se, portanto, também, à política “excepcional” (de exceção) dos grandes eventos e adquire o caráter de modelo (e publicidade) dessa nova logística de segurança. 

Além de compor o marketing da “nova cidade olímpica” e associar-se de forma lapidar às exigências de segurança global impostas para sua realização (não é à toa que a grande corporação IBM é sua principal mentora), o papel publicitário e/ou imagético (em todos os sentidos) do Centro é primordial. É assim que uma sala privilegiada é reservada à imprensa, com vista para a sala de controle e seu imenso telão, e que uma das fontes alimentadoras de imagens do COR são os próprios sobrevoos da cidade realizados pelas redes de televisão (basicamente Globo e Record) – que, por sua vez, fazem do COR um núcleo-base para suas informações e até como locação e cenário para emissão de seus noticiários. 

A cidade informatizada e supermonitorada do futuro se delineia hoje no COR do Rio de Janeiro. Uma repórter do New York Times chegou a comparar a sala de controle com uma sala de monitoramento espacial, a da NASA (e foi realmente a sensação que tive – porém comparada com o centro de controle de missões espaciais da Rússia, em Moscou, que visitei durante um congresso de Geografia nos anos 1990). Fala-se que até o uniformes dos funcionários teriam sido inspirados nos do organismo norte-americano. 

Do macro ao microespaço, o máximo de controle geográfico possível – no caso do município do Rio de Janeiro, o ambiente do COR surge como uma espécie de espaço esquizofrênico diante não só de periferias que estão entre as mais precarizadas e negligenciadas do planeta, mas também pelo despreparo físico e humano nos procedimentos “in loco” que materializam essas ações de “cuidado da população” (numa expressão que alia termos utilizados pelo prefeito à biopolítica foucaultiana). Nesse sentido, talvez o termo “quartel-general” utilizado no folder de apresentação seja realmente apropriado. Os interesses em jogo, para quem ele se torna relevante e para o que prioritariamente serve, eis a questão a ser constantemente recolocada sobre esses centros de controle, protótipos de nossas altamente vigiadas megalópoles do futuro.

O Encontro das Três Águas - Breno Góes

Breno Góes é graduando em Letras pela PUC

 “Amores são águas doces
Paixões são águas salgadas
Queria que a vida fosse
Essas águas misturadas”
Roberto Mendes e Jorge Portugal

Fala-se tanto das manifestações do Rio que me surpreende ninguém ainda ter falado do Arturo, do Bruno e do Caio. Falo eu, então. Até por que os três são cariocas como eu, tem vinte e dois que nem eu e eu acabei de inventá-los.

Talvez seja uma parábola. Não sei. Arturo, Bruno e Caio vinham de três partes diferentes do Rio, e estudaram em três escolas e faculdades diferentes. Não se conheciam, os três, quando saíram de suas casas no dia 20 de junho para tomar a Presidente Vargas e se possível o poder, por conta de vinte centavos que não eram vinte centavos, mas eram, etc., etc., etc.(vocês lembram como isso foi confuso). Arturo, o primeiro, era o que já então começava-se a chamar de Black Bloc. A sua calça de couro grossa até protegeria bem das balas de borracha, mas a proteção não era completa, uma vez que a peça era rasgada na altura da coxa, à maneira dos punks. Na cabeça, o capuz do casaco e, na mochila, uma máscara de gás e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha a famigerada mistura de ácidos e gasolina necessária para fazer um Coquetel Molotov. Arturo tinha raiva do governo.

Bruno, o segundo, era um “harumaki”. Harumakis são os manifestantes que andam enroladinhos em bandeiras do brasil, à maneira do quitute tão apreciado na culinária japonesa. Bruno enrolava-se todo na sua enorme flâmula auriverde, mas deixava pra fora o cartaz no qual escrevera “ABAIXO OS PETRALHAS”, bem visível. Na cabeça, uma cartola verde e amarela que ele comprara na última copa do mundo. Na mochila, tintas (adivinhem as cores) para o rosto e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha vinagre. O vinagre, como todos sabem, ameniza os efeitos do gás lacrimogêneo. Bruno tinha raiva do governo.

Caio, o terceiro, era o que um jornalista vulgar talvez chamasse de um elo perdido de Woodstock. Eu chamaria de doidão. Como Bruno, Caio também pintara o rosto, mas de diversas cores e purpurinas. Ele não pretendia apenas protestar na passeata, mas mais do que isso queria realizar uma performance de contato corporal e troca energética com os passantes. Talvez fazer um documentário sobre isso. Na cabeça, nada além de seus louros dreadloques. Na mochila, uma câmera e uma garrafinha de água mineral na verdade contendo MDMA, a famosa anfetamina conhecida como “emedê” e mais conhecida ainda como a “droga do amor”. Mas não se iludam, Caio também tinha raiva do governo.

Encontraram-se no jardim da prefeitura, quando a primeira bomba estourou e começou a correria. Como tudo nessas horas, o encontro entre os três foi fugaz e violento: Esbarraram-se, na verdade, e foram os três ao chão. As mochilas caíram, as garrafinhas de água mineral saíram rolando e atabalhoadamente eles cataram tudo e se puseram de pé. Na confusão, mal puderam pedir-se desculpas, quanto mais dialogar e chegar à tão sonhada via intermediária que conciliaria todos os interesses da nação. Ainda por cima quis o destino, que é um fanfarrão, que as garrafinhas que eles carregavam fossem trocadas. E deu-se o que se deu:

Caio ficou com a garrafinha de Bruno. Ele planejava compartilhar o emedê com seus amigos, mas tudo o que acabou compartilhando foi vinagre. Logo, quando a chuva de bombas lacrimogêneas ficou insuportável, os amigos de Caio ficaram impressionados com os poderes paliativos do suposto emedê sobre o gás. Mais veloz do que a fumaça, se espalhou por muitas pessoas da passeata o boato dos poderes curativos da droga do “loirinho de dread”, e por alguns minutos Caio foi muitíssimo popular: todos queriam o “emedê-anti-gás”.

Bruno, por sua vez, ficou com o proto-Molotov de Arturo. Esvoaçando sua bandeira, o Harumaki rapidamente se afastou da confusão (“não gosto de vandalismo”, dizia ele), não precisou acessar o seu suposto vinagre e portanto felizmente não inalou a perigosa mistura. Contudo, isso não o eximiu de problemas: Quando ele já estava indo pra casa, subindo a Avenida Rio Branco, um PM o parou para a revista. Ele, orgulhoso em “cooperar com o bom trabalho da polícia”, abriu sua mochila, com o que o meganha imediatamente identificou o potencial artefato terrorista. Bruno acabou engrossando a lista dos muitos jovens detidos naquela noite e, até que seu advogado pudesse resolver tudo na manhã seguinte, ele foi severa e criativamente interrogado pelos canelas-pretas na penitenciária. E pior: sem fazer ideia de como entrara naquela situação. Ninguém soube muito dele depois disso, parece que mudou pra Caldas Novas e não quer conversar com ninguém, mas não é certeza.

Por fim, Arturo. O Black Bloc foi o único dos três que, quando da ocasião do esbarrão, não estava fugindo das bombas: estava correndo em direção a elas. Quando chegou mais perto do epicentro da batalha (o prédio da prefeitura) ele se ajoelhou furtivamente e preparou, ao mover o conteúdo da garrafinha plástica para uma outra de vidro, o suposto coquetel Molotov. Digo suposto por que a garrafinha que lhe coube, vamos recapitular, não continha combustível nem ácidos, e sim a mais pura e genuína droga do amor. Na escuridão e na confusão, seus olhos mascarados não deram pela óbvia diferença de cores entre os líquidos, e então ele acendeu o pavio, fez a mira... e nada. Foi uma desilusão para Arturo jogar o “molotov” na direção dos policiais e vê-lo estilhaçar-se sem explodir, deixando-os não flamejantes, mas apenas úmidos. Mas como, pensou, se preparara tudo com tanto cuidado? Obviamente aquilo era a prova de que ele não prestava enquanto guerrilheiro urbano. Arturo, desanimado, virou de costas e foi embora, sem ver a bizarra cena que criara: os cinco policiais da tropa de choque que ele acertara largando as armas, procurando-se sofregamente e trocando um sem fim de beijos saliventos e carícias extremosas entre si, em meio ao fogo, à fumaça e às lágrimas.

Arturo, Bruno e Caio nunca mais se viram. E as coisas estão como estão. Com o que eu descubro que isso não é parábola, no fim das contas, por que não tem moral. É, como já dizia o outro, “sem moralismo”.

O Traço de Camila Pizzoloto