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terça-feira, 15 de setembro de 2015

Edição de Setembro de 2015

Ainda o melhor jornal de Niterói (desde 2012)

1. Carta do Editor
2. Luz Contorcida - Antonio Zelaquett Khoury
O que é a óptica quântica?
3. O Grito do Silêncio - Ian B. Sarges
Por uma história popular.
4. Caixa de Surpresas - Leonardo Ferrari
Poema.
5. Poema Filosofísico - Leonardo Ferrari
Poema.
6. Desespero - Victor Tiribás
Poema.
7. Renata Januária - Igor Dias
A vaquinha de porcelana comprada no MAC.

Carta do Editor

Um dos problemas de não respeitarmos a periodicidade que certa vez nos impusemos (este deveria ser um veículo mensal) é que há, na UFF, toda uma geração de alunos que nunca ouviu falar da Folha do Gragoatá. Isto é um problema porque, para fazermos jus à nossa alcunha (“desde 2012, o melhor jornal de Niterói”), faz-se necessário, basicamente, que nós existamos; e para que isto ocorra de fato, não podemos passar sem que edições sejam feitas.

Munidos destas razões e de outras, ligadas ao prazer que fazer este jornal provoca, jogamos no mundo mais esta edição. Pela primeira vez, a Folha não sairá em papel. Por motivos relacionados ao ajuste fiscal, não conseguimos um parceiro que imprimisse nossa edição. Por isso, ela é um pouco menor; desta vez, publicamos apenas um professor convidado, além de contribuições várias de estudantes.

Nosso convidado é Antonio Zelaquett Khoury, professor associado do Instituto de Física da UFF. Khoury é especialista da área de Óptica Quântica. Como confessei ao professor Khoury quando fiz meu convite, para a maior parte dos alunos do ICHF a pesquisa que ocorre nos laboratórios do Instituto de Física é completamente misteriosa. Ao mesmo tempo, várias das discussões que travamos, em especial na Filosofia, tocam temas que nos são comuns.

Por isso, o tema que sugerimos a ele foi “O que é a Óptica Quântica?”. O resultado, a seguir, é interessante sob vários aspectos: por um lado, foi possível perceber que a Física, um pouco como as “Ciências” Humanas, é interessante talvez menos por sua utilidade prática do que pela beleza das ideias que nos faz ver; por outro, os impactos práticos que este tipo de pesquisa pode ter podem nos dar uma pontinha de inveja.

Com relação às contribuições dos alunos, procuramos dar conta de um pedacinho da pluralidade em que acreditamos. Há uma conclamação em nome da história da cultura popular, por resgatá-la das margens; há um belo continho sobre uma vaca de porcelana; há ainda três poemas de inspirações bastante variadas. Aos que não conhecem a Folha, nós aceitamos contribuições de contos, crônicas, poemas, artigos e desenhos (em preto e branco) que não ultrapassem o espaço de duas laudas em times 12, através do email afolhadogragoata@gmail.com.

Luz Contorcida - Antonio Zelaquett Khoury

Antonio Zelaquett Khoury é professor associado do departamento de Física da UFF. É membro do Grupo de Óptica e Informação Quântica, sendo o professor responsável pelo Laboratório de Óptica Quântica.



Desde a antiguidade, a natureza da luz ocupou a mente de filósofos e pensadores. Esteve no centro de um debate entre o grande Isaac Newton e o holandês Christiaan Huygens no século XVII, no qual Newton sustentava que a luz era formada de pequenos corpúsculos, enquanto Huygens defendia que a luz era formada por ondas. As primeiras evidências experimentais apontavam fortes indícios em favor da teoria ondulatória até que, no final do século XIX / início do século XX, surgem a teoria quântica e a ideia da dualidade onda-partícula. Esta dualidade implica na coexistência de uma dupla natureza, onda e corpúsculo, tanto na luz quanto nos constituintes elementares da matéria, como elétrons, prótons e nêutrons. Este caráter dual intriga os cientistas até a atualidade e ainda é fonte de intensos debates, sobretudo por desafiar nossa percepção da natureza. De fato, é difícil conceber a coexistência de duas características que parecem ser mutuamente excludentes. Corpúsculos são percebidos como pequenos objetos localizados no espaço, enquanto as ondas constituem perturbações que se propagam e distribuem-se pelo espaço.

Apesar desta singularidade da visão quântica da luz, a maioria dos fenômenos luminosos do nosso cotidiano pode ser descrita em termos ondulatórios. Ainda que um conceito razoavelmente antigo, a propagação de ondas enseja características surpreendentes, que muitas vezes desafiam o senso comum. Sabemos que a luz transporta energia e outras grandezas físicas, como o momento linear, associado à quantidade de movimento de translação de um objeto, e o momento angular, associado à quantidade de movimento de rotação. É deste último que nos ocupamos no Laboratório de Óptica Quântica do Instituto de Física da UFF.

Quando duas ou mais ondas se superpõem no espaço, ocorre o conhecido fenômeno de interferência. Este fenômeno provoca uma redistribuição espacial da energia luminosa, que muitas vezes produz imagens ricas em complexidade e beleza. Por exemplo, ao iluminarmos o anteparo exibido na figura 1, a luz atravessará as partes brancas e será obstruída pelas partes escuras. Após o anteparo, a onda luminosa será composta pela superposição das ondas transmitidas, dando origem ao fenômeno de interferência, o qual distribui sua energia por feixes secundários que se propagam em direções específicas.
Figura1. Anteparo usado na produção do fenômeno de interferência luminosa



A superposição de ondas também pode produzir modos interessantes de propagação da luz, formando vórtices como num redemoinho ou num furação. Vórtices luminosos podem ser formados a partir de um laser comum utilizando-se o fenômeno de interferência. Partindo de um feixe laser com seção reta circular, utilizamos um anteparo que possui uma estrutura bifurcada, como a exibida na figura 2. Alinhando o centro do feixe incidente na bifurcação, sua energia é redistribuída sobre vários feixes secundários que resultam da interferência entre as ondas transmitidas pelo anteparo. Parte do feixe segue inalterado sobre a mesma direção de propagação incidente. Sobre os feixes secundários formam-se vórtices que se propagam em direções defletidas, simetricamente dispostas de cada lado do feixe inalterado, conforme mostrado na figura 2. Os vórtices dispostos de cada lado do feixe principal circulam em sentidos opostos.
Figura 2. Anteparo utilizado na produção dos vórtices e esquema dos feixes defletidos



A formação dos vórtices pode ser evidenciada utilizando-se novamente o fenômeno de interferência. Na figura 3 exibimos uma imagem obtida em nosso laboratório, formada a partir da superposição de um vórtice com um laser comum. O padrão de interferências construtivas (regiões claras) e destrutivas (escuras) exibe uma estrutura em forma espiral que revela a presença do vórtice.
Figura 3. Imagem de uma figura de interferência entre um vórtice e um laser comum


Além de sua beleza intrínseca, os vórtices óticos também são estudados por suas potenciais aplicações tecnológicas em diferentes contextos. Sabemos que eles podem ser utilizados no aprisionamento e rotação de pequenas partículas em montagens chamadas de pinças óticas. Além disso, os vórtices surgem naturalmente em certos tipos de fibras óticas e também podem vir a ser úteis em protocolos de telecomunicação. No Laboratório de Óptica Quântica do IF-UFF, dedicamos nossa pesquisa ao estudo dos vórtices em protocolos de transmissão e processamento de informação quântica, onde tanto a natureza ondulatória quanto a corpuscular da luz são necessárias. Esperamos que os vórtices tenham um papel importante em uma nova geração de tecnologia de informação.

O Grito do Silêncio - Ian B. Sarges

Ian B. Sarges é graduando em História pela UFF

“Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou.” (O canto das três raças, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro)

Diz o ditado popular: O pior cego é aquele que não quer ver. Eu iria além, acrescentado que o pior cego não é somente aquele que não enxerga, mas aquele que se esforça para embaçar a visão dos outros. Experimente buscar na internet centros culturais e museus localizados no centro do Rio de Janeiro, local no qual há a maior concentração, em relação à cidade e quiçá ao estado do Rio, de empreendimentos deste tipo. Encontrará o Museu de História Nacional, o Teatro Municipal, o Paço Imperial, o Museu Nacional de Belas Artes, a Casa França-Brasil, a Biblioteca Nacional, centros culturais de toda monta, vide Centro Cultural do Banco Brasil, e afins.

Como podemos perceber, existe toda uma exaltação e contemplação, que se estende do poder público ao privado, da “cultura erudita”, a qual não contempla a amplitude dos grupos marginalizados e a produção destes. Dentro da história oficial ou pública, a narrativa do negro, com toda sua herança e produção cultural, é marginalizada, sendo, contra a maré, levada a cabo pelo movimento negro desde sempre. E quando esse caldo cultural penetra – e penetrou com toda a força que carrega consigo -, como o reconhecimento do samba, a “esquizofrenia” aguda ataca ferozmente, fazendo com que tal contribuição se ligue forçosamente a outra identidade – nesse caso, a do brasileiro -, que é englobante, e, por tanto, harmoniosa.

Poder, literalmente, experimentar as pedras do Cais do Valongo, os ossos e a terra do Cemitério dos Pretos Novos e os degraus da Pedra do Sal – imaginando, ao mesmo tempo, as batidas da água do mar - é trazer a luz da sociedade uma narrativa desconhecida; é sentir a História correr por entre os olhos, como rio em seu leito; é tornar a História mais humana e palatável; é dar asas a imaginação histórica, a qual é tão cara não só ao historiador, mas também aos sujeitos que pretendem relacionar biografia e História.

Nesse sentido, o Circuito da Celebração da Herança Negra Africana na região portuária - compreendido pelo Cais do Valongo, pela Pedra do Sal, pelo Jardim Suspensos do Valongo, pelo Largo do Depósito, pelo Cemitério dos Pretos Novos e pelo Centro Cultural José Bonifácio – é um romper de silêncio por meio de um atabaque nervoso, ansioso e alegre, representando a resistência dentro da dominação, o júbilo na dor, o sagrado do desgraçado; é conquista do movimento negro, muito mais que uma iniciativa do Estado, que é representado por uma plaquinha vulgar, enquanto aquele é simbolizado e materializado por cada pedra, objeto metálico e ossos visualizados durante o trajeto.

Parafraseando Bertolt Brecht no seu poema chamado Perguntas De Um Trabalhador que lê[1], eu pergunto: Quem construiu e constrói o Brasil? São os figurões que possuem seus nomes nas plaquinhas? Ou os sujeitos cujos ossos estão à flor da pele e cujos nomes estão estampados nas paredes do Cemitério dos Pretos Novos?

Tendo isso em vista, é fundamental se apropriar dessa narrativa nascente no coração de uma das cidades mais ricas, mais desiguais, mais discriminantes e mais eurocentristas – vide as reformas urbanas baseadas influências europeias e também a própria reforma no cais do Valongo para o recebimento da princesa Teresa Cristina - do país, assim como Dona Merced – que encontrou o Cemitério dos Pretos Novos ao fazer uma reforma em sua casa - o fez, ela, que poderia simplesmente ignorar como muitos outros moradores fizeram, tomou posse com a ajuda de alguns pesquisadores, lutando, ao mesmo tempo, contra a burocracia burra e a falta de investimento do Estado. E hoje conclama, através de seu ativismo, a todos nós que façamos o mesmo.

Assim, cabe a nós historiadores investirmos cada vez mais na modalidade de história pública, a qual sai das salas climatizadas das universidades para o calor das massas e do asfalto, fazendo com que os investimentos provenientes, não de uma entidade sobrenatural, mas da sociedade, tenham um sentido.

Cabe a nós os cidadãos ocuparmos esses locais de memória, a fim de que não se percam entres as construções modernizantes como em outrora. E assim reconstruir a memória coletiva, deixando-a mais crítica, inclusiva e rica. Aliás, a história que não contribui para o debate acerca dos dilemas da sociedade torna-se apenas armazenamento de acontecimentos sem relações uns com os outros. No dia do cumprimento desses compromissos, o samba da Pedra do Sal sobrepujará todos os resquícios do silêncio com seu gingado e malemolência.



[1] "Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída — Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas Da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida Os que se afogavam gritaram por seus escravos Na noite em que o mar a tragou. O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada Naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele? Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões.”

Caixa de Surpresas - Leonardo Ferrari

Escondi meus segredos
Em uma caixa no sótão.
Escondi até de mim,
As verdades esquecidas
E as que desejo esquecer.

Mas de vez em quando
Eu vou conferir
Se não falta nada.

Leonardo Ferrari é mestrando em Matemática pela PUC

Poema Filosofísico - Leonardo Ferrari


Não sei que causa fantástica,
Psicológica ou relativística,
Foi responsável por esse efeito.
Talvez possamos culpar a aceleração
De nossa velocidade mental,
Ou quem sabe o verdadeiro responsável
Foi o aumento das horas disponíveis?
Mas a causa não importa,
Os dias estão cada vez mais longos.
Eles se esticam e se estendem
Com uma elasticidade imaterial.
Estão tão longos que em um dia apenas
Podemos experimentar as sensações
De uma breve e intensa vida,
Indo da serenidade à euforia,
Da paixão à melancolia,
Da inspiração à apatia.
Toda noite morremos
E toda manhã renascemos.

Por isso, proponho
Uma nova medida de tempo:
O dia-vida,
A unidade dos tempos modernos,
Tão diferentes dos dias antigos
Que precisam de outra medida!


Leonardo Ferrari é mestrando em Matemática pela PUC

Desespero - Victor Tiribás


Esperei por tempo demais
Agora que te des-espero
Desespero
Ora, não me venha falar de eros
Se sou ex-perto é porque sou esperto
Dê longe; de longe te espeto.




Victor Tiribás é mestrando em Ciência Política pela UFF

Renata Januária - Igor Dias

Igor Dias é doutorando em Engenharia de Produção pela UFF

Quando comprei uma singela vaquinha de porcelana no Museu de Arte Contemporânea, dei a ela o nome de Renata Januária.

Renata Januária era frágil, quase quebradiça. Veio embalada em uma grossa camada de jornal que deixava à mostra uma coluna da Miriam Leitão. Esta embalagem, cuidadosa, feita pelas mãos finas e delicadas do vendedor da lojinha do Museu, deveria garantir a integridade de Renata Januária em qualquer viagem.

Ao sair da lojinha do Museu, já com Renata Januária chacoalhando dentro da mochila, tive muitas dúvidas em relação a qual caminho tomar. Eu poderia tanto descer em direção à Praia de Icaraí ou em direção ao Ingá. De um lado, a beleza da praia, o vôlei descompromissado, a vista insuperável do Rio de Janeiro enquanto a velha baía nossa de cada dia continuava cheia de esgoto. Do outro, estudantes da UFF aturdidos com suas questões existenciais e suas provas de quinto período, e também a pequena burguesia da terra de Arariboia que faz compras no Extra do Ingá – Sendas forever!

Escolhi o lado do Ingá, por puro diletantismo, e enquanto descia a ladeira da Praia das Flechas, pensei mais uma vez em Renata Januária.

Longe de mim ter ímpetos desmedidos de posse: acho que a gente cria os filhos para o mundo. Decidi dar a ela a oportunidade de experimentar a atmosfera de Niterói. Parei no meio da descida, passei a mochila com destreza por baixo do braço esquerdo e, tendo-a de frente para mim, abri o fecho-eclair. Deparei-me com a embalagem de jornal um tanto quanto disforme, em cima de um caderno velho e de dois livros de literatura barata: era Renata Januária.

Quando comecei a abrir a embalagem, veio se descortinando pouco a pouco a imagem dela: o corpo todo vermelho, as pernas finíssimas, as patas pintadas de preto; dois chifres pequenos pintados de amarelo, uma boca que esboçava um sorriso. Duas manchas na região da alcatra e da chã davam um charme especial à Renata Januária, que tinha as tetas rosadas e gordas, viçosas, férteis. Um pequeno sino dourado atado ao pescoço, adorno de muito bom gosto, coroava os atributos do pequeno presente que eu tinha nas mãos.

Descíamos a Praia das Flechas, eu e Renata Januária, até que começou a chover. Até então, estávamos felizes em nossas realidades paralelas. Eu, humano, de carne e osso. Ela, bovina, de cerâmica e tinta.

À medida que a chuva aumentava, comecei a ficar preocupado com a integridade física de Renata Januária. Sua pele de cerâmica era tão fina que não precisava cair no chão para que se quebrasse: uma chuva um pouco mais forte já seria capaz de destruí-la. Tive então a ideia de guardá-la novamente dentro da mochila. Torná-la-ia por alguns instantes cega, enclausurada, exatos 25 minutos até que eu chegasse em casa para tirá-la da mochila fechada.

Destro, abri a mochila para resgatar a embalagem de jornal. Reembalá-la-ia ligeiro, guardaria Renata Januária para que ela ornasse a prateleira mais alta do meu quarto e velasse, mimosa, o meu sono enquanto eu dormia.

Mal eu acabara de refazer a embalagem, o jornal já densamente molhado pela chuva que não parava de apertar, fui surpreendido por uma forte rajada de vento vinda da baía.

A morte precoce de Renata Januária me deu um aperto esquisito no peito, uma angústia, uma dor de aborto. De uma hora para outra, meu bibelô bovino era um amontoado de cacos vermelhos que se espalhava pela calçada larga da Avenida Benjamim Sodré. Procurei, em vão, pela cabeça com seus chifres amarelos, mas não a encontrei: deve ter caído na baía ou ter sido empurrada para lá pelo vento.

Quando eu vi aquele amontoado de cacos, tive uma vontade enorme de chorar. Mas segurei o choro. Muito molhado, hesitante entre continuar a descida até o Extra ou voltar para o Museu de Arte Contemporânea para me proteger da chuva, olhei para o chão mais uma vez em busca da cabeça de Renata Januária.

Como é de se supor, jamais a encontrei. Mas, se alguém tivesse me visto naquele momento, teria estranhado a minha súbita mudança de humor. Recobrei o ânimo, respirei fundo e segui aliviado e resoluto em direção às pequenas ruas do Ingá. A chuva que havia levado Renata Januária era a mesma que esfacelava e desmanchava a cabeça da Miriam Leitão, que jazia no asfalto da Benjamim Sodré em meio aos cacos.

Apesar de não ter olhado para trás, sei que a cabeça que eu havia encontrado ia se desintegrando e se encaminhando para o esgoto, num pequeno córrego caudaloso que se formava rente ao meio-fio, a chuva cada vez mais grossa.