“Você e seu livro despolitizaram a juventude brasileira. Quando seu livro saiu, eles se importavam uns pelos outros, por outras pessoas, por seu país. Agora, só querem fazer dinheiro, graças a você”. – Rio de Janeiro, 2010
“Você é o Marshall Berman? Anos atrás, estava no hospital. Seu livro me tirou de lá” – Downtown Manhattan, 2011.
Este meu livro, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, tem sido uma aventura, talvez a maior aventura de minha vida. Em três décadas, ele teve reverberações mais intensas que qualquer outra coisa que eu tenha feito: reverberações logo ali na esquina, reverberações a quilômetros de distância. Fico impressionado com a forma como estranhos respondem a ele com paixão. Às vezes, o livro os ajudou, de formas que me emocionaram (thrilled). Às, os enraiveceu, como algo repugnante ou odioso. Através dos anos, o livro parece ter estado aí (been there) para pessoas. Ele passou por muita história, e ajudou com que eu me tornasse parte da história de lugares que nunca conheci.
Tudo que é Sólido é, na verdade, meu segundo livro. Meu primeiro, A Política da Autenticidade, uma discussão sobre Montesquieu, Rousseau e o Iluminismo, foi publicado em 1970. Meu editor, infelizmente, perdeu interesse pelo livro, e vendeu toda a edição com um grande desconto, antes mesmo que fosse lançada. Consegui uma boa resenha ou outra, além de algumas bem destrutivas. (Uma das mais destrutivas dizia que livros como o meu ajudavam a “destruir a civilização”). Fico feliz que tenha sido reimpresso, e está disponível novamente. Nos anos 1970, escrevi muitos artigos críticos, para o New York Times Book Review, a The Nation, Partisan Review e Dissent (da qual sou hoje editor). [N. do T. Estas últimas, revistas proeminentes da esquerda americana]. Cheguei à conclusão que meu primeiro livro não alcançou mais pessoas porque seu objetivo era muito limitado; o horizonte de meu próximo projeto precisava ser maior. Quando primeiro imaginei Tudo que é Sólido, o fiz de forma bem ampla: uma visão da vida moderna com um alcance global, uma perspectiva cosmopolita que deveria abarcar não só meu bairro mas todo o mundo, e que poderia ajudar a encorajar (empower) homens e mulheres em todos os lugares. Só isso! O livro saiu em 1982. Mais uma vez, conseguiu algumas poucas resenhas entusiasmadas, mas não pareceu ter tido grande impacto em ninguém. O editor o classificou em uma agourenta categoria: “Indefinidamente fora de estoque”. Um limbo que ninguém poderia penetrar. (Nem eu conseguia o livro para usar em meus cursos.) Foi só depois de alguns anos de sórdidas conversas e ameaças de processos que meu agente conseguiu libertar o livro. Agora ele estava “esgotado”, mas pelo menos eu tinha “direitos” a ele; agora o livro tinha a possibilidade ter um futuro, de se entrar no mundo depois de tudo.
Aí, na metade dos anos 1980, enquanto me sentia ignorado – de uma forma que posso ver agora jovens escritores frequentemente se sentindo ignorados – do outro lado de vários oceanos, meu livro começou a ser descoberto. Ele apareceu em grande variedade de lugares: o Reino Unido, Itália, Suécia, Espanha/México, Brasil. A agitação na América Latina foi especialmente surpreendente. Durante anos, intelectuais latino-americanos negaram todo o paradigma do “moderno” como uma arma ideológica dos EUA ou “do Norte”. Mas em Tudo o que é Sólido, vários latino-americanos pareceram achar uma visão do moderno que eles sentiram ser sobre eles.
Isso levou à minha visita ao Brasil, no verão de 1987. Era um tempo curioso. Para usar a expressão de Andy Warhol, eu era famoso por 15 minutos. Nem todos me amavam: eu critiquei a arquitetura de Brasília por sua falta de espaços públicos; Oscar Niemeyer, o discípulo comunista de Le Corbusier que tinha desenhado a capital, disse a um dos jornais nacionais – saiu na manchete da capa – “NIEMEYER: BERMAN IDIOTA”. Mas para muitos brasileiros eu estava dizendo algo de que eles tinham certeza, mas que não ousavam dizer. Em São Paulo, repórteres me recepcionaram no avião, pessoas me paravam na rua, motoristas buzinavam, estranhos me ligavam tarde da noite. Tudo o que eu dizia parecia provocar aplausos estrondosos. Fui aclamado por pessoas de todos os estratos sociais brasileiros, de prefeitos e governadores a vendedores de lojas, do Sindicato dos Metalúrgicos, o sindicato de Lula – gente tão brilhante que, pensei, o Brasil teria sorte se algum dia eles tivesse algum poder – e aí, nos anos 2000, sob Lula, alguns deles realmente ganharam algum poder – a cozinheiros e trabalhadores da cozinha do meu hotel em São Paulo – um homem com uniforme de cozinha bateu na minha porta, disse que tinha amado meu livro, pediu que o autografasse, e disse que eu tinha muitos leitores na cozinha – desci, falei por alguns minutos, assinei autógrafos em livros que, dava pra dizer, tinham sido lidos a sério; a uma cantora de jazz que parou seu show ao me reconhecer; a um oleiro que me viu esperando um ônibus, correu para fora de sua loja e me deu uma linda vasilha “como forma de dizer ‘obrigado’”.
Certa vez, em um talk show numa rádio, perguntei por que os brasileiros gostavam tanto de mim. O moderador disse que a América Latina estava acostumada a marxistas que usavam ternos pretos, como jesuítas, que condenavam tudo; eu era um marxista que pensava criticamente, mas ao mesmo tempo eu usava roupas coloridas e celebrava o amor e a felicidade.
Um homem na plateia adicionou algo: “Você é como um ótimo comercial pela liberdade de expressão”. Para os brasileiros, aquela era uma época de esperança. Eles estavam no meio de um processo de tornar-se um lugar moderno e democrático. Estavam saindo das sombras, depois de anos de “guerras sujas”. Podiam andar pelas ruas, sem medo de serem mortos. Amigos e filhos pararam de desaparecer. A liberdade de expressão estava voltando. Será que eu estava ajudando as pessoas a falarem de novo?
Certa vez, depois de explicar a Revolução Russa, fui perguntado se poderia revelar meus sonhos. Tinha eu sonhos no Brasil? Como eu os comparava aos sonhos que tinha nos EUA? (Mais tarde, no avião de volta para Nova York, quando saíamos das montanhas, vi a resposta: Todo este mês no Brasil foi um sonho).
O Brasil foi uma loucura, que teve também uma vida feliz posterior. O tummel lá ajudou a convencer meus editores americanos que o livro poderia ter um futuro aqui. A Penguin introduziu uma versão em capa mole em 1988, incluindo um prefácio (que infelizmente não está na edição da Verso de 2010), em que falo sobre o Brasil e Dostoievski. Como a edição da britânica Verso, a edição da Penguin americana tem tido vendas limitadas mas estáveis, em mais de três décadas. Nos anos 1990 e 2000, através da mágica Moderna da tradução, o livro chegou a alguns lugares bem diferentes: Irã, Polônia, China, e de volta ao Brasil, onde recentemente saiu uma nova tradução (Cia das Letras, 2007). Enquanto isso, saiu uma nova tradução em português de Lisboa (uma língua diferente, pelo que me dizem), turco, francês, coreano, polonês, chinês, lituano; nos próximos meses, em hebraico. Meu livro tem estado aí por trinta anos. Pode-se vê-lo como parte da cultura mundial, ou como parte de um argumento sobre a existência de uma cultura global. Sempre tive esperança sobre algo assim, mas é impressionante ver fantasias antigas e profundas virando verdade.
De volta aos EUA, o livro fez algumas boas coisas acontecerem. O cineasta Ric Burns, depois de ler meu capítulo sobre Nova York, me incluiu no documentário de sete horas History of New York que ele estava criando para a PBS [N. do T. PBS é a televisão pública dos EUA]. Foi o melhor projeto visual em que me envolvi. A PBS logo colocou a série em seu repertório; ela cumpre papel importante nas tentativas de levantar doações da PBS, e me deu toda uma nova identidade. Volta e meia sou parado nas ruas ou no campus do CCNY, ou por buzinas de pessoas que me conhecem só como “Berman, o urbanista... aquele cara da TV”.
Mas, mais que tudo, eu falo em universidades, em todo os EUA, em vários lugares do mundo. Em universidades é que me sinto em casa, e é lá que as pessoas parecem se sentir mais confortáveis comigo. As boas e as más coisas que as pessoas dizem sobre o livro não mudaram muito, mesmo se a maior parte do mundo virou de cabeça para baixo. Tento falar para todos os tipos (o que quer dizer, em universidades, para diversos departamentos): para mostrar às pessoas que trabalham com literatura quão profundamente a literatura moderna, ou pelo menos muito da literatura moderna, está embutida na realidade urbana, e para mostrar aos arquitetos ou planejadores urbanos como seus projetos e paradigmas crescem a partir de discursos culturais e mitos que os antecedem.
Quando falo com urbanistas, a coisa sobre a qual mais querem conversar é Jane Jacobs e Robert Moses, estrelas em dois polos opostos do meu capítulo sobre Nova York. São fascinados pelos anos turbulentos quando, de repente, em Nova York e em outras cidades americanas, homens e mulheres começaram a pensar e atuar como cidadãos, e um público urbano começou a existir. Eu estava lá, assistindo, e adoro contar a história; ainda soa fresca e vital. O que impediu com que Robert Moses continuasse foi uma grande onda de aprendizado coletivo. Os americanos perceberam que suas cidades eram mortais e vulneráveis, e precisavam ser estimuladas e cuidadas, e pessoas normais tiveram a capacidade de entender esta ideia e atuá-la. Em Nova York e em outras cidades, a partir de suas várias polarizações, o horizonte de empatia se expandiu: pessoas começaram a perceber porque era importante manter os bairros de outras pessoas vivos, mesmo se não gostassem delas e nunca os visitassem ou compartilhassem de suas vidas. Os anos 1960 foram uma época em que milhões de pessoas comuns passaram não só a amar suas cidades, mas a pensar como cidadãs. Com o desenvolvimento deste público, o Lebensraum [n. do T. Em alemão, no original. “Espaço vital”, termo usado pelos nazistas] dos burocratas imperialistas diminuiu rapidamente. Perto de morrer, em 1981, Moses passou a sentir como muitas de suas vítimas – entre elas minha família, nos anos 1950 – deslocado e desolado. Mas foi impressionante, estranho, que algo assim pudesse acontecer. Como pode ter acontecido? Há algo que poderia fazer com que acontecesse de novo? Não sei – pode-se dizer, que as respostas estão blowing in the wind – mas levantar perguntas já é uma forma de aprender para todos nós.
Ao lado de minhas histórias de progresso e crescimento modernos, espreita uma vívida história de colapso e desolação modernos: as ruínas do South Bronx. Nos anos 1970, caminhei por algumas dessas ruínas obsessivamente, como que tentando penetrar seu núcleo místico. Minha busca por um núcleo que contivesse o sentido daquelas ruínas é uma das forças que conduzem Tudo que é Sólido, e que lhe dão vida.
Mais tarde, conforme os anos avançaram, percorrer aquelas ruínas passou a ser doloroso demais, e me afastei. Nunca imaginei que elas fossem mudar minha vida; não poderia imaginar como. Mas aí era 2005, e estava indo de el [n. do T. “elevated line”, linhas de metrô nova-iorquinas que circulam em estruturas elevadas de metal] para o Zoológico do Bronx com meu filho e sua turma da escola, passando exatamente por onde sabia que as ruínas estavam, me levantei, estiquei meu pescoço, me preparei e – AS RUÍNAS DESAPARECERAM! Em seu lugar, conforme o trem ia para o norte, vi prédios ordinários de apartamentos, caminhões sendo descarregados, crianças andando de bicicleta, velhinhos em cadeiras de praia – todo o schmeer [n. do T. do iídiche, algo como “o todo”] do dia-a-dia de uma cidade moderna. “Olha!”, disse para as professoras que estavam no metrô comigo, “parece uma cidade normal.” Elas disseram “ué, e o Bronx não é uma cidade normal?” Notei então quão jovens eles eram. Quando o “Bronx [was] burning!” [o Bronx estava queimando], essas meninas não tinham nem nascido. Agora, não parecia nada de especial – e, no entanto, milagroso. O South Bronx hoje é uma grande história, um belo caso de resiliência das cidades modernas, e de homens e mulheres modernos, que têm tanto a capacidade de cometer urbanicídio quanto de superá-lo; de reduzir todo seu ambiente a ruínas e depois reconstruir as ruínas; de transformar surrealismo apocalíptico em uma agradável realidade urbana ordinária, na qual qualquer um de nós poderia se sentir em casa.
Outro grupo que prestou uma atenção especial a Tudo que é Sólido são escritores e críticos de departamentos de Inglês e Literatura Comparada, dos dois lados do Atlântico. Gostaram especialmente de minha abordagem de Baudelaire, sobre sua conexão entre a vida metropolitana e a vida “interna”. Passei muitas horas felizes “usando”[doing] Baudelaire, tirando de seu romantismo uma cidade de massas, vibrando com fantasias e desejos mútuos. Baudelaire imagina uma nova forma de escrever que é também uma nova forma de desenvolvimento urbano, e também uma nova forma de cidadania democrática, e também uma nova forma de se estar completamente vivo.
Mas departamentos de literatura também foram a origem de vários ataques particularmente viciosos. Pessoas denunciavam a universalidade da minha visão. Apontavam-se como juízes olímpicos de valores, e diziam que eu estava impondo “valores modernos” a culturas que “têm valores diferentes”. (De algum modo, eles tinham se apropriado da autoridade de dizer que valores eram apropriados para cada uma). Essas culturas – às vezes culturas particulares, definidas geográfica, étnica ou culturalmente, às vezes todas as culturas – eram retratadas como inocentes, e eu era uma espécie de estuprador cultural violando sua inocência. Discussões sobre Tudo que é Sólido se tornaram bizarras: críticos pegavam quaisquer facetas da vida moderna que mais os perturbavam, e falavam como seu eu tivesse o poder mágico de fazer aquelas coisas acontecerem. A raiva contra meu livro muitas vezes vinha com a exaltação da “tradição”: como se todas as tradições culturais, religiosas e políticas da história do mundo fossem parecidas; ou como se todas fossem uniformemente benignas; ou como se as pessoas simplesmente fossem a tradição com a qual cresceram – são judeus ortodoxos, são fazendeiros nórdicos, são pescadores sicilianos, são comunistas devotos – e como se por acaso acontecesse que pensassem de forma diferente, ou renegassem o mundo de seus pais, ou se apaixonassem com as pessoas erradas, ou tivessem ideias erradas, é só porque, como aquele homem no Rio me disse, “agitadores externos” como eu confundiram suas cabeças.
Durante anos, me preocupei, Como posso agradar a essas pessoas? Levei um tempo para perceber: Deixe pra lá. Tudo isso é parte da guerra cultural que acontece desde o Iluminismo. Uma das facetas mais estranhas da modernidade é toda a energia cultural que é jogada na medonha mas em última instância impossível missão de sair da modernidade. Na “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoievski [n. do T., in “Os irmãos Karamazov”] profetiza o poder desta missão. Ela é o material primário de que é feito o romantismo do totalitarismo – fascista, Stalinista, fundamentalista – que conduziu tanto da história moderna.
Seria burro se não me entristecesse com a inundação de violência de nosso tempo. Mesmo assim, quando escrevi Tudo que é Sólido, quis me inscrever nesse tempo. Se alguma dessa violência emocional me tem como alvo, devo dizer “Presente!” na hora da chamada.
Recentemente, meu livro tem sido atacado por pessoas de esquerda – vide a citação do Rio, em 2010 – que dizem que meu trabalho não é suficientemente de esquerda. Eu vejo a sociedade burguesa moderna como uma mistura, cheia de contradições, tão criativa quanto monstruosa; tal visão, um crítico recente diz, me caracteriza como um “colaboracionista”. Isso soa parecido com o que alguns dos críticos à esquerda de Marx – Proudhon, Bakhunin e seus seguidores burros – diziam sobre ele. Estão tocando aquela música de novo? Se ele pôde aguentar, eu também posso.
Um dos grandes saltos à frente na história da esquerda no mundo foi a dissolução do leninismo, com seu romance da “vanguarda”, e seu desprezo pela democracia, liberdades civis e o povo. A queda do Muro de Berlim, em 1989, é símbolo desta mudança. Mas mesmo antes disto, em muitas instituições da esquerda, os tempos estão mudando [n. do T. no original, times they are a-changing, como na música de Bob Dylan]. Nelson Mandela, enquanto estava preso em Robben Island, foi convencido (assim ele disse) por Joe Slovo, um comunista que era um dos líderes do CNA, que uma África do Sul livre teria de ter separação total dos poderes, uma Corte Constitucional que teria poder sobre o Legislativo e uma Carta de Direitos. Hoje está claro que, para a esquerda, deveria ter sido sempre assim: a esquerda deve se confundir com a defesa dos direitos humanos. Fico feliz que possa ajudar a levar essa ideia adiante.
Um direito humano que parece embaraçar escritores acadêmicos e políticos, que diversas vezes o deixam de fora – mesmo que as pessoas reais saibam que é crucial para uma boa vida no mundo moderno – é o direito a amar. Tenho escrito sobre amor (vide Gretchen e Fausto no Capítulo um de Tudo que é Sólido e vide A Política da Autenticidade), mas não o suficiente; vou escrever mais sobre amor agora, na minha velhice. O amor não é apenas um acessório de sentido; é central para o que pode significar uma vida humana. Ideias sobre amor vêm desde a Antiguidade, mas em boa parte da história tem sido entendido como um privilégio – mesmo que muitas vezes um privilégio trágico – disponível apenas para poucos. Um dos principais significados de modernidade é que o horizonte do amor abriu para incluir todos. No Fausto de Goethe, Gretchen, uma menina que faz trabalho doméstico e cuida das crianças, é transformada pelo amor em um trágico Mensch [n. do T. termo em alemão e iídiche; quer dizer algo como um homem de integridade e dignidade]. Na Flauta Mágica, de Mozart, realizada pela primeira vez no ano revolucionário de 1791, os amantes são cômicos: o apanhador de pássaros Papageno e sua amada Papagena, que se regozijam na sua banalidade, ameaçam roubar a cena. Uma vez que as pessoas os tenham visto e escutado – e algumas das peças mais bonitas de Mozart são deles – falar de amor como um direito humano parece perfeitamente natural. (E representações da ópera que os deixem de fora soariam muito estranhas). Mas que condições sociais são necessárias? Aqui estão algumas: massas de densidade metropolitana, onde estranhos podem se encontrar e às vezes se tornarem casais apaixonados; liberdade sexual, onde amantes podem sentir não só felicidade mas aprender intimidade, e descobrir um ao outro com profundidade; liberdade de casamento, que ultrapasse barreiras de classe, religião e etnia, para fazer do amor a base de vidas que levarão a vida à frente.
Liberdade de casamento é um assunto crucial. Sugere que Romeu e Julieta é nossa primeira peça moderna. West Side Story, musical de Leonard Bernstein e Jerome Robbins traz a tragédia para perto de nós. Os romances de Jane Austen são sobre isso; também o são as histórias de Sholem Aleichem em “Tevye e suas filhas”, e no musical dos anos 1960 tirado delas, O Violinista no Telhado. Passei minha trabalhando em uma universidade e em uma cidade que, no final do século XX, foram preenchidas cada vez mais por imigrantes. A cafeteria do CCNY [n. do T. City College of New York, uma universidade pública] é um microcosmo impressionante do mundo. No entanto muitos dos alunos que dele fazem parte cresceram em bairros que são fechados e exclusivos, cheios de tabus sexuais, religiosos e étnicos, isolados do mundo. O amor floresce onde quer; mas para casais, em especial para mulheres, que se atrevem a “ultrapassar fronteiras”, as potencialidades trágicas são reais. (Lembram-se da provocadora música “Accross the Lines”, de Tracy Chapman? Se não, procure-a agora!). Mesmo assim, às vezes Papageno e Papagena vencem: é possível vê-los juntos nos sábados, fazendo compras em mercados e shoppings, exaustos mas felizes, com carrinhos e crianças em cores nunca antes vistas pelo Homem.
Uma grande heroína morreu não muito tempo atrás: uma mulher negra chamada Mildred Jeter Loving. Ela e seu marido Robert se casaram ultrapassando fronteiras nos anos 1950. O estado de Virginia fez tudo o que podia para os destruir; focou sua fúria particularmente nela. Mas ela foi à frente e, anos depois, a Suprema Corte, numa decisão arrepiante, Loving v. Virginia (1967), destruiu todas as barreiras ao casamento entre negros e brancos. Algumas dessas barreiras são mais antigas que os EUA; a Lei de Integridade Racial da Virgínia existe desde os anos 1630, não só desde a época da escravidão mas também desde o início da imigração europeia para o Novo Mundo. O Attorney General [n. do T. Nos EUA, o equivalente a procurador-geral da república e a ministro da Justiça] Robert “Bobby” Kennedy e o presidente da Suprema Corte Earl Warren merecem grande crédito por terem permitido o que aconteceu. Mas os verdadeiros heróis eram o casal Loving, Papagena e Papageno confrontando os dragões de um Estado potencialmente livre, mas ainda assim malévolo. O complexo de ideias Loving pode, em breve nos EUA, ser a base constitucional para o casamento gay. Se isso acontecer, será uma grande vitória para o direito a amar. Loving nos lembrará que mesmo nos países mais avançados do mundo, direitos modernos são coisas pelas quais homens e mulheres têm de lutar. [n. do T. notar o trocadilho com o sobrenome do casal, que quer dizer, em inglês, “amando”].
Logo no início da década de 2000, um estudante de graduação que vinha do ramo da publicidade disse que estava feliz por estar lendo um livro que "tem pernas". Eu gostei da expressão, que serve para descrever produtos, incluindo produtos culturais, que têm uma vida útil mais longa do que outros. Mas vejo agora que o termo tem outro significado, mais rico: a capacidade de levar um produto a regiões com as quais o produtor nunca sonhou. Isso aconteceu com o meu livro há uma geração na América Latina, e agora, na década de 2000, aconteceu no Oriente Médio. Normalmente, para o nosso século, grande parte da mudança aconteceu na internet, mas algumas aconteceram – e ainda estão acontecendo – cara a cara.
Algumas coisas novas se revelaram aqui na minha cidade, no movimento que os promotores da mudança chamavam "Occupy Wall Street". Eu não vou falar sobre isso em detalhes, exceto para dizer um par de coisas. Em primeiro lugar, é emocionante [thrilling] estar perto de uma tremenda explosão de energia inteligente, de ser capaz de participar dela. Em segundo lugar, o conceito de Occupy, sua combinação de militância crítica, perspectiva social, transparência e auto-sátira, é uma contribuição incomum para a Manhattan Modernista. Se tivesse vivido para vê-lo, minha mãe teria dito: você pode chegar lá de metrô. Seu ponto seria que Manhattan é livre o suficiente para que você possa estar lá, e o fato de pessoas reais, como todos nós, tomarmos o metrô para estar lá dá ao evento um poder existencial inesperado.
Mas Tudo Que é Sólido também levou mais vida a países com apenas as mais frágeis tradições liberais e democráticas – ou até menos que isso. Em lugares onde todas as partes tomaram como certa a total passividade das pessoas, é uma emoção ver massas de pessoas se revelando e se envolvendo com os maus moços. Eles têm bastardos de verdade e monstros como líderes, e é provável que levem muitos invernos mais antes de qualquer coisa que eles ou nós possamos reconhecer como a primavera possa chegar. Mas isso nos dá tempo para afirmar a nossa solidariedade, e dizer ao mundo que "A Primavera Árabe" não é "Apenas Para os Árabes."
A atual rodada de protestos e lutas pelos direitos humanos no Oriente Médio começou no Irã. Logo no início da década de 2000, eu comecei a receber e-mails de iranianos. Eles se apresentavam; alguns me disseram que gostariam de poder falar seus nomes reais, embora ainda não pudessem, outros, aparentemente mais jovens, eram mais diretos; dois ou três eram jovens mulheres. Disseram que Tudo Que É Sólido estava sendo contrabandeado em farsi (persa), e todos eles tinham encontrado uma fonte de inspiração. No início de 2000 ele saiu como um livro, um elegante livro proibido. Um par de anos atrás, recebi um pelo correio. [Mostrar livro]
Alguns dos meus correspondentes iranianos vieram de jornais e revistas, todos vulneráveis; outros eram da notável indústria cinematográfica iraniana Samizdat. Alguns foram presos e torturados. Compartilhavam o ódio contra o Estado policial teocrático, mas alguns dos escritores mais velhos também disseram que se sentiam culpados pelo que aconteceu com o Irã em 1979. Que eles, então, tinham desastrosamente "entendido errado". Agora eles esperavam ter "uma chance de acertar." Trinta anos em um estado policial lhes tinha dado "alguma ideia do que significa liberdade." Um homem disse: "Talvez agora o Irã esteja pronto para ser moderno."
Em 2008-09, as mensagens do Irã tornaram-se mais explicitamente políticas. Um político liberal, que tinha estado na prisão por 10 anos, me convidou: será que eu gostaria de o conhecer e “explicar a separação entre a igreja e o estado”? (eu fiquei feliz em fazê-lo). Uma editora mulher perguntou se eu poderia dizer a seus leitores "o significado da Declaração de Direitos." (O governo logo fechou o jornal.) Fiquei emocionado ao fazer teoria política em uma situação tão urgente, e orgulhoso de que a América imperial ainda tinha algo de real para ensinar ao mundo sobre ser livre.
No final de 2008, eu recebi do Irã a informação de que o fluxo de mensagens que eu estava recebendo provavelmente pararia em breve. (De fato, parou.) O Estado foi ficando cada vez mais adepto da censura na Internet. E "Não é que nos esquecemos de você. Isso significará que estamos na prisão. Mas vamos sair."
E então, no verão de 2009, lá estavam eles, com um milhão de pessoas como eles, nas ruas de Teerã, formando A Onda Verde. E desta vez, ao contrário de 1978-79, havia mulheres no meio da multidão. Uma coisa importante a procurar, em fotos em massa e telejornais: há mulheres no meio da multidão? As mulheres estão tomando a iniciativa? Os homens estão aceitando a sua presença? Ajudando-as a estar lá? Sinais cruciais da promessa. No Egito, em outra capital islâmica, as mulheres desempenharam um papel importante na luta pelos direitos humanos, que eclodiu em 2011. Sacerdotes e soldados trabalharam para empurrá-las para fora do palco. Mas muitas mulheres não sairiam. Elas se arriscaram a prisão e abuso, e gritaram: "Eu existo! Nós existimos! "
Foi ótimo ver o protesto crescer, e fácil subestimar o poder de permanência das velhas classes dominantes. Marx, em 1848, diz em um dos grandes livros modernos, o Manifesto Comunista, que as pessoas que estão começando a aprender a se levantar não devem esperar ganhar tudo. O mais provável é que percam. Mas, mesmo quando perdem, diz ele, "o fruto real" de suas lutas é a “união cada vez maior” a longo prazo que eles podem criar. Precisamos nos lembrar disso quando as velhas classes dominantes tomarem de volta as ruas.
Algo semelhante aconteceu no Irã. Eu envelheci, mas não fiquei tão velho a ponto de não sentir uma onda de vida quando homens e mulheres modernos saem e lutam para conquistar seu lugar nas ruas. No verão passado, em julho de 2012, eu recebi isto por e-mail: "Eu sou uma mulher iraniana e uma doutoranda." Ela disse, sobre Tudo Que É Sólido, “eu posso usar e entender todo os significados deste livro. Acabei de dizer que este livro é o meu favorito, e como uma estudante que mora no outro lado do mundo, eu deveria lhe dizer obrigada". Como um escritor que sempre tentou ajudar as pessoas a levantar e se colocar no quadro, devo dizer, também, obrigado.
Naquele ano da Onda Verde, alguém me perguntou se não me preocupava o fato de que Tudo Que É Sólido Desmancha No Ar "estava sendo usado para fins políticos"? Eu disse que ficaria feliz [thrilled] se alguém pudesse encontrar uma maneira de usar meu trabalho. Um editor de um jornal iraniano, que mais tarde seria preso, me telefonou e perguntou se eu tinha algum conselho; eu disse, As ruas pertencem ao povo, Defenda os direitos humanos, Continue vivo. Ficarei feliz se puder ajudar alguém a ver desta forma, fazer essas coisas, estar aqui agora. Na década de 1860, o herói de Notas do Subsolo de Dostoievski definiu uma grande tradição moderna de luta, se necessário, até mesmo lutando sozinho, pelos direitos humanos, nas ruas. (Meu capítulo sobre São Petersburgo, "O modernismo do subdesenvolvimento", fala sobre isso.) Mulheres dizendo: "Eu existo! Nós existimos!” nas ruas teocráticas, e dizendo isso na cara das classes dominantes que olham para elas como se não existissem, nos mostram que o modernismo hoje está tão vivo como sempre, e nos mostram que ele ainda tem muito pelo o que viver.
City College, City University of New York
October 2012 ●