Eu não funciono. A culpa não é minha. Eu sofro com isso mais do que você, acredite, eu só estou mais conformada. Eu não funciono, nunca funcionei, o jeito é conviver com isso. Eu já tentei mudar por você, meu bem - tudo por você - mas é difícil, eu dou defeito, eu nasci assim, a culpa não é minha. Tudo o que eu errei, tudo o que eu gritei, tudo o que eu chorei, pode chamar de maluquice, pode chamar de drama, pode chamar de distúrbio psicológico, mas é tolice, meu bem, porque é tudo erro de funcionamento. Não se pode esperar de um pato que ele seja outra coisa que não um pato, como não se pode esperar de uma pessoa que claramente não funciona que se comporte como se funcionasse normalmente. É tolice, meu bem, esperar qualquer coisa de mim. Se em vez de juízo me faltasse um dedo você não ia esperar que um dedo subitamente surgisse na minha mão, então também não espere nada igualmente esdrúxulo do meu juízo. Eu nasci sem ele, é defeito de fabricação. Todo mundo tem defeito. Até mesmo os sábios, até mesmo os reis, até mesmo os papas tem defeito, até mesmo as mães, até mesmo aquela sua ex-namorada que lia Baudelaire. Mais do que comum, eu diria até que é condição necessária da existência humana. E eu bem te avisei. Cuidado, eu não funciono, eu falei. Você escolheu se envolver comigo ciente de tudo isso. Não, meu bem, a culpa não é sua. Fui eu que fiz pouco. Talvez eu devesse ter arranjado uma placa como essas que colocam em máquinas de refrigerante quebradas, uma dessas com os dizeres "FORA DE FUNCIONAMENTO". É uma questão de respeito por parte das máquinas para com os seus usuários, elas deixam bem claro, eu podia ter tomado esse cuidado. Mas eu vou melhorar, você vai ver. Você vai ficar orgulhoso de mim. "Eu não funciono", vai dizer a minha placa. Há de ser o suficiente, não? Tudo isso por causa de um probleminha que eu não posso resolver. Não é preguiça minha, é uma questão de lógica: eu não funciono, não é querer demais que além de existir eu ainda saia por aí resolvendo problemas? Não é que eu não esteja disposta a tentar, veja bem. Ainda temos opções. Terapia, religião, medicina, exorcismo, macumba, vodu, feitiçaria, eu estou aberta a tudo isso. Teve até uma vez que me contaram uma história sobre um senhor que não funcionava, assim, que nem eu, foi para um internato (parece que era na Suécia) e voltou bonzinho. Eu sei, parece mentira, mas não custa tentar. Eu posso fazer isso por você, eu vou para a Suécia, e se o tratamento não funcionar pelo menos eu conheci um país novo, eu posso fazer isso por você, é tudo por você. Não, não é pressão, não é responsabilidade nenhuma, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu nasci assim, eu não funciono, nunca funcionei. E se nada der certo, se eu nunca funcionar e se eu for assim pra sempre, eu te peço tão pouco, meu bem, é só de um pouquinho de paciência que eu preciso. Dispense as pérolas, os diamantes, os anéis de compromisso. Pode dispensar os vestidos, as viagens e as promessas de amor eterno. Tudo o que eu preciso é de um pouquinho de paciência, só um pouquinho, eu peço tão pouco. Eu sei, é complicado, eu sei, eu sou toda errada, mas meu pedido é tão pequenininho e existem coisas tão grandes no mundo, existe a Muralha da China e também o oceano e existe a infinitude do universo, compara com tudo isso, olha como eu te peço pouco. E o nosso amor, meu bem, o nosso amor é infinito como o universo e tudo o que eu te peço é um pouquinho de paciência, só um pouquinho. Porque se você for embora, se você desistir de mim, eu não funciono, não vai dar, eu não vou conseguir sozinha. Não é pressão nenhuma, meu bem, eu sempre quis que você fosse livre, mas se você for embora, aí eu nunca mais vou funcionar, aí eu vou pifar pra sempre, e eu vou ter que comprar uma arma, meu bem, esta sim, funcionando perfeitamente, e eu vou direcionar virada para mim, sem querer te pressionar, meu bem, eu vou direcionar direitinho, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu não funciono, eu vou direcionar a arma e eu vou ter que atirar, e aí meu corpo também vai parar de funcionar, minha mente vai parar de funcionar, e quando finalmente o meu coração parar de funcionar, por favor, meu bem, eu só peço um pouquinho de paciência comigo, não é culpa minha, eu não func ●
Isabel Falcão é graduanda em Letras pela PUC
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quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Trabalho em suspenso, oficina do diálogo -- Paula Justen
Fim de greve, a vida voltando aos seus eixos. Quatro longos meses de tensão e expectativa de volta iminente às aulas, sem saber quando o drama dos trabalhos deixados para depois ia finalmente explodir.
Quatro meses de militância. Há anos não se via um movimento grevista tão forte e com tanta adesão. Tapa na cara de quem diz que greve não cabe à universidade. Mesmo para aqueles que não foram com freqüência às ruas, não foram meses de corpo mole, meras férias de tempo indeterminado. Era árdua a tarefa convencer os familiares, amigos e quem mais aparecesse para falar sobre a greve de que a causa era, sim, justa e que a greve era, sim, necessária. Que eu não me importava de ter que ter aula enquanto todos estivessem de férias. Que a luta era maior que os meus planos de viagem no verão. Explicar com paciência o porquê da greve, mesmo diante dos olhares de pena de quem só pensa que professor é vagabundo e não quer trabalhar. Cansa, mas paciência é uma virtude, principalmente quando se quer argumentar e convencer.
A cada universidade que aderia, um grito de vitória. Mais um mês sem aula e o governo sem dar sinal. Manifestações, até protesto em Brasília. Quem disse que o movimento estudantil morreu? Mas nada. Dilma conhece sindicatos, os grevistas, sabe como uma greve funciona. Decidiu ganhar da forma mais covarde e simbólica: pelo cansaço.
Lá pelo segundo mês, o furor das adesões foi dissipando. A greve preocupa, e muito, mas a falta de resposta do outro lado desanima. E todo mundo se dá conta de que ela iria durar. Com o final ao longe, a gente se permite a muitas coisas. Ao tédio, para começar. Já não há clima para estudo, todas as promessas de terminar os trabalhos o quanto antes são como resoluções de Ano Novo. Não, hoje eu vou ler aquele capí... – haha, tem aquele episódio de Friends que o Joe tenta falar francês... É, acho que vou rever a temporada inteira... Ops.
E tem o ponto de saturação. A greve dura demais. Momento perigoso. Ninguém agüenta mais ficar em casa, nessa vida em suspenso, nessa indefinição que agonia (e dá fome. Muita fome). Até agora só os estudantes e professores se prejudicavam, o governo mantinha a indiferença absoluta. Valia a pena manter a luta quando o nosso alvo simplesmente nos esnobava como meras moscas, tentando tirar a legitimidade do movimento nos tratando como irrelevantes...? Peraí. Hora de botar os pingos nos ii. A duração da greve não era culpa dos grevistas, mas da ilustre presidenta que se recusava a negociar.
O triste era ter que se obrigar a lembrar disso o tempo todo.
Mais um mês. Dona Dilma não cede. No fundo, todo mundo já sabia que era o fim. Para alguém que governa o país como uma empresária, buscando sempre o desenvolvimento do país através de números, a greve é só um mero estorvo. Dane-se se é uma reivindicação de classe, dane-se se o povo tem necessidades. O país deve crescer, não há tempo para greve. Corta-se o mal pela raiz: afinal, o mal nem existe, o governo já negociara com o sindicato. Legítimo ou não, isso é outra história.
Mas a greve tem que ser levada até o fim. Questão moral, não se pode desistir sem ter nenhum ganho real. Questão de orgulho. O gosto da derrota é amargo demais para se admitir que nada mais saía da Dama de Ferro. O ponto final já estava dado, mas o movimento insistia em reticências, até não dar mais.
Falei derrota, mas peço perdão. A verdade é que toda mobilização em si já é uma vitória. A greve foi discutida em um nível que nunca houve antes, e se nenhuma reivindicação foi ouvida, é caso para se pensar em que tipo de governo está sendo feito no país atualmente. Um governo macro-negócio, ao invés de um governo humano. A greve em si já é uma vitória por tirar do marasmo e da zona de conforto, sair do lugar comum. A greve é por excelência um espaço de discussão e reflexão, muito maior e mais dinâmico do que a nossa Academia em vão se acha.
Que o verão tenha piedade de nós. ●
Paula Justen é graduanda em História pela UFF
Quatro meses de militância. Há anos não se via um movimento grevista tão forte e com tanta adesão. Tapa na cara de quem diz que greve não cabe à universidade. Mesmo para aqueles que não foram com freqüência às ruas, não foram meses de corpo mole, meras férias de tempo indeterminado. Era árdua a tarefa convencer os familiares, amigos e quem mais aparecesse para falar sobre a greve de que a causa era, sim, justa e que a greve era, sim, necessária. Que eu não me importava de ter que ter aula enquanto todos estivessem de férias. Que a luta era maior que os meus planos de viagem no verão. Explicar com paciência o porquê da greve, mesmo diante dos olhares de pena de quem só pensa que professor é vagabundo e não quer trabalhar. Cansa, mas paciência é uma virtude, principalmente quando se quer argumentar e convencer.
A cada universidade que aderia, um grito de vitória. Mais um mês sem aula e o governo sem dar sinal. Manifestações, até protesto em Brasília. Quem disse que o movimento estudantil morreu? Mas nada. Dilma conhece sindicatos, os grevistas, sabe como uma greve funciona. Decidiu ganhar da forma mais covarde e simbólica: pelo cansaço.
Lá pelo segundo mês, o furor das adesões foi dissipando. A greve preocupa, e muito, mas a falta de resposta do outro lado desanima. E todo mundo se dá conta de que ela iria durar. Com o final ao longe, a gente se permite a muitas coisas. Ao tédio, para começar. Já não há clima para estudo, todas as promessas de terminar os trabalhos o quanto antes são como resoluções de Ano Novo. Não, hoje eu vou ler aquele capí... – haha, tem aquele episódio de Friends que o Joe tenta falar francês... É, acho que vou rever a temporada inteira... Ops.
E tem o ponto de saturação. A greve dura demais. Momento perigoso. Ninguém agüenta mais ficar em casa, nessa vida em suspenso, nessa indefinição que agonia (e dá fome. Muita fome). Até agora só os estudantes e professores se prejudicavam, o governo mantinha a indiferença absoluta. Valia a pena manter a luta quando o nosso alvo simplesmente nos esnobava como meras moscas, tentando tirar a legitimidade do movimento nos tratando como irrelevantes...? Peraí. Hora de botar os pingos nos ii. A duração da greve não era culpa dos grevistas, mas da ilustre presidenta que se recusava a negociar.
O triste era ter que se obrigar a lembrar disso o tempo todo.
Mais um mês. Dona Dilma não cede. No fundo, todo mundo já sabia que era o fim. Para alguém que governa o país como uma empresária, buscando sempre o desenvolvimento do país através de números, a greve é só um mero estorvo. Dane-se se é uma reivindicação de classe, dane-se se o povo tem necessidades. O país deve crescer, não há tempo para greve. Corta-se o mal pela raiz: afinal, o mal nem existe, o governo já negociara com o sindicato. Legítimo ou não, isso é outra história.
Mas a greve tem que ser levada até o fim. Questão moral, não se pode desistir sem ter nenhum ganho real. Questão de orgulho. O gosto da derrota é amargo demais para se admitir que nada mais saía da Dama de Ferro. O ponto final já estava dado, mas o movimento insistia em reticências, até não dar mais.
Falei derrota, mas peço perdão. A verdade é que toda mobilização em si já é uma vitória. A greve foi discutida em um nível que nunca houve antes, e se nenhuma reivindicação foi ouvida, é caso para se pensar em que tipo de governo está sendo feito no país atualmente. Um governo macro-negócio, ao invés de um governo humano. A greve em si já é uma vitória por tirar do marasmo e da zona de conforto, sair do lugar comum. A greve é por excelência um espaço de discussão e reflexão, muito maior e mais dinâmico do que a nossa Academia em vão se acha.
Que o verão tenha piedade de nós. ●
Paula Justen é graduanda em História pela UFF
Do tempo ao vento -- Diego Ferreira
Eirá estreitura rebatetevento
dentro a fim da lousa escura
sabes como estás por dentro
dentro do abismo afunda
afundas sem argumento
intento, vendo, acento de magistratura
veja como flui o vento
aprouve quem te abate assim
fazerte dentro do peito aberto
choras, lava alma abrupta
aguarde que já não me não ausento
impeto de alma afunda outrora
clareia luzes ao passaro tempo
mas como fazernos alvo, sagas versura?
Respostas virão, do tempo ao vento.●
Diego Ferreira é graduando em História pela UFF
dentro a fim da lousa escura
sabes como estás por dentro
dentro do abismo afunda
afundas sem argumento
intento, vendo, acento de magistratura
veja como flui o vento
aprouve quem te abate assim
fazerte dentro do peito aberto
choras, lava alma abrupta
aguarde que já não me não ausento
impeto de alma afunda outrora
clareia luzes ao passaro tempo
mas como fazernos alvo, sagas versura?
Respostas virão, do tempo ao vento.●
Diego Ferreira é graduando em História pela UFF
O Estado do ICHF - Pedro Castro
Passamos a terça-feira do dia dez de abril distribuindo a última edição da Folhado Gragoatá, cem exemplares para os alunos do ICHF. Mal essa coluna estreava, já deveríamos saber sobre o que escrever na próxima, e inspiração é o que não falta, sempre há um bom motivo pra escrever. Na verdade, foi até fácil, subimos as escada, pois a dama de ferro do segundo andar não é muito fã de atrasos e assistimos aula como bons alunos. Saldo do dia? Duas horas de aula, uns vinte alunos e o dobro em mosquitos. Quem tem frequentado o bloco N sabe que ele tem vivido infestado deles. Para os alunos, cabe escolher entre usar tênis e calça comprida em um calor de mais de trinta graus ou gastar o suado dinheiro do nosso trabalho estagiário intensivo em repelente; aliás, caso alguém veja um aluno chacoalhando pelo campos, beirando um ataque epilético, esse sou eu, é a minha escolha pessoal para evitar os borrachudos.Os malditos artrópodes voadores vão continuar por um tempo; podem ter vindo do mato cortado pela obra, ou ser simplesmente uma coisa de época, o que é engraçado,porque no verão todo mundo veste essa camisa de Rio contra a dengue, mas o nosso bloco é uma ilha, aqui a gente vai aproveitando a nossa própria versão da invasão dos pássaros do Hitchcock, só que no nosso caso não são pássaros, não é filme e não interessa a ninguém.●
Pedro Castro é graduando em História pela UFF. Gostaria de escrever para esta seção? Mande uma crônica ou peça de opinião que evidencie obstáculos que a estrutura do ICHF coloca à qualidade do ensino para afolhadogragoata@gmail.com
Córrego -- Tainá Telles
"Sinto um devir tão grande e intenso para todos os cantos, por volta de mim. Sinto em minha pele o contato suave e sutil do tempo que passa, uma brisa leve quase imperceptível – estava lá mas já se foi. O toque não é forte o suficiente para decidir os rumos por mim. A cada movimento que faço, até mesmo sem notar, destino a brisa suave do vento por um caminho. A cada mudança de postura faço desaguar dali há muito tempo algo diferente do que havia planejado.
É o devir de mim, que eu mesma me guio sem saber (como me guiar?, não sei para onde quero ir). E me toca a pele toda o tempo inteiro, me arrepia o tempo que corre e a todo instante pergunta: para onde, para onde? É um tempo sem dó de mim que nada sei, que nada quero, que tão pouco pretendo – é só saber.
Passa, escorre, deságua: para onde?"●
Tainá Telles é graduanda em História pela UFF
Ronaldo Vainfas: Reconstrucionismo, historicismo ou neo-historicismo?
Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense. É autor de Trópico dos Pecados (1989) e Jerusalém Colonial (2010), entre outros livros. Recentemente, organizou, junto ao prof. Ciro F. Cardoso, o volume Novos Domínios da História. Neste artigo, ele continua debate que ocorreu durante a última Semana de História da UFF.
Esta pergunta vem a propósito do modelo que Ciro Cardoso expôs na introdução de Novos Domínios da História, livro que organizamos para a Campus em 2011. Como não pude comparecer ao debate da Semana de História, organizada pelos alunos da UFF, vou dizer duas ou três palavras sobre o assunto, baseado no que escrevi na conclusão do livro.
Ciro Cardoso apresenta três modalidades possíveis da epistemologia histórica: (1) o reconstrucionismo, entendido como a reconstrução do passado a partir das evidências factuais, de maneira indutiva, de modo a alcançá-lo na sua feição a mais verdadeira possível; (2) o construcionismo, que atribui ao sujeito historiador o papel de produzir um conhecimento acerca do passado, sempre à luz do presente e a partir de hipóteses hipotético-dedutivas; (3) o desconstrucionismo, que desloca o foco para as estruturas discursivas, consideradas como a única ou a principal matéria de estudo, do que resulta a sub-valorização, ou mesmo eliminação, das realidades históricas.
Trata-se de um texto no qual Ciro atenua bastante suas críticas à chamada Nova História, presentes no texto Uma Nova História? (1988) e História e paradigmas rivais (1997). Em ambos, sobretudo no primeiro, a NH é vista como expressão da fragmentação do conhecimento histórico, em oposição a uma história totalizante e racionalista, inspirada no marxismo e/ou na primeira geração dos Annales (Bloch, Febvre, Braudel).
No texto de 2011, Ciro mantém o foco neste embate de paradigmas rivais, porém retira a Nova Historia Cultural do campo irracionalista para colocá-la “com um pé em cada mundo”, entre o construcionismo racionalista e o reconstrucionismo à moda de Foucault ou Hayden White. Além disso, reconhece, com razão, que o discursivismo que conduz à desconstrução da história não rendeu grande coisa em termos historiográficos.
Parto deste último ponto para acrescentar que o debate sobre paradigmas rivais, que tanto avivou o meio historiográfico nas últimas décadas, talvez não exprima o que tem ocorrido de essencial na pesquisa histórica nos últimos tempos. Refiro-me à crescente diversidade de fontes e consequente especialização das metodologias de investigação. Neste sentido, aquele debate me parece antes de tudo retórico e descolado da prática de pesquisa.
Se assim é, vale a pena reconsiderar a importância do chamado reconstrucionismo, que muitos autores (Ciro inclusive) confinam na historiografia oitocentista, basicamente nos estudos inspirados pelo historicismo. O livro Novos Domínios da História expõe, com relativa abrangência, a renovação dos campos de pesquisa, sugerindo uma preocupação cada vez maior com o tratamento das evidências factuais. Mais que isso, a produção historiográfica dos últimos 50 anos, a despeito das polêmicas sobre “crise de paradigmas”, tem revalorizado as evidências documentais como matéria essencial do trabalho historiográfico. Até mesmo o evento singular é, por vezes, tomado como ponto de partida de várias pesquisas que, partindo da desconstrução (aí sim) de memórias, buscam alcançar a história. Os estudos sobre o Tempo Presente dão excelente exemplo desta tendência.
Nesse sentido, penso que, se o reconstrucionismo chegou a perder força ao longo do século XX, renasceu com ânimo revigorado nas últimas décadas. Dito de outro modo, o “paradigma rival” do construcionismo encontra-se menos no “discursivismo” do que em um historicismo de fôlego renovado. Um historicismo revigorado pela problematização dos objetos e cioso da reconstituição empírica das realidades históricas. Não por acaso, há quem qualifique (criticamente) boa parte da historiografia contemporânea como neo-historicista, apontando seu demasiado apego à pesquisa arquivística e a metodologias específicas para a análise das fontes.
Eis um ponto que merece reflexão. O que parece estar em crise faz tempo é o método hipotético-dedutivo: um modelo que aposta em um conhecimento historico derivado de conceitos ou hipóteses, no qual a evidência factual fica relegada à função demonstrativa de teorias. Por constraste, a pesquisa histórica contemporânea tem apostado cada vez mais no conhecimento indutivo, no diálogo entre o historiador e suas fontes. Neo-historicismo? Talvez. Mas é como escreveu Carlo Ginzburg acerca do “método indiciário”: a história não é ciência “galileana”, senão ciência das particularidades.●
Daniel Aarão Reis: A Comissão da Verdade será de mentirinha?
Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense. É autor de De Volta à Estação Finlândia (1993) e Imagens da Revolução Russa (2006), entre outros títulos. Durante a ditadura militar, militou no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).
Aprovada há cerca de seis meses, a Comissão da Verdade foi, afinal, constituída. Menos mal. A ânsia de obter um amplo consenso esteve, certamente, na raiz de uma protelação que já se eternizava. A Comissão vai ter que lidar com suas condições: a quase total dependência à Presidência da República, os poderes mais do que limitados (não pode convocar ninguém, apenas convidar), os limites orçamentários – estreitos – e a amplitude de seu escopo – demasiadamente largo.
Tudo isto conduz a um certo ceticismo quanto à possível eficácia da Comissão. No entanto, não quer dizer que sua atuação será necessariamente nula. Vai depender de como a sociedade irá encará-la, como se disporá a se mobilizar em torno dos temas sujeitos à apreciação.
Recentemente, surgiu um movimento interessante e que provocou bastante barulho. Tentando trazer para aqui o exemplo dos “escrachos” argentinos, grupos de jovens – contando também com a presença de alguns velhinhos – foram às casas onde moram torturadores com o objetivo de denunciá-los à sociedade e de escrachá-los, ou seja, esculachá-los. Os militantes também atormentaram militares da reserva – inclusive alguns torturadores notórios -, que se reuniram no Clube Militar para uma sessão-nostalgia a respeito dos “velhos bons tempos” da ditadura civil-militar, instaurada em março de 1964.
A agitação foi um sucesso. Atraiu atenção e suscitou inúmeras discussões, sobretudo em escolas e universidades.
Trata-se, agora, de manter o ritmo das agitações e dos debates. Os torturadores devem contas à sociedade. Não podem escapar de julgamento, porque os crimes que cometeram são imprescritíveis, segundo tratados internacionais assinados pelo Brasil e que não podem ser ignorados, apesar da decisão conciliadora do Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, eles não deveriam ser apontados como “bodes expiatórios”. A rigor, aplicaram uma política de Estado – a da tortura sistemática de todos os opositores considerados radicais. Assim, devem ser também responsabilizados os altos mandos que autorizaram a tortura e cobriram com seu manto a ação dos torturadores. E, finalmente, mas não menos importante, também deve ser questionada a tortura como tradição, aceita e naturalizada por amplos segmentos da população brasileira. Afinal, a tortura não começou a ser praticada com a ditadura mais recente, nem terminou com ela.
Enquanto a sociedade não estiver disposta a discutir, em profundidade, estas questões, não terá condições de superar a infame prática.
Não seria o caso de pressionar a Comissão da Verdade para conduzir os seus debates nestes termos? Se o fizesse, estaria contribuindo positivamente para o enfrentamento desta chaga que faz do Brasil um país de torturados e de torturadores. ●
Editorial – Fim da greve e nossa pretensão
Passou a greve, e voltamos. Apesar de apoiarmos a iniciativa de vários colegas em não permitir o esvaziamento da universidade durante a paralisação, com palestras e debates, decidimos interromper a publicação normal da Folha durante este período. Não tínhamos acesso à infraestrutura necessária para a publicação e, mais importante, achamos que o clima que havia na universidade durante os três meses de greve não era exatamente o mais propício para seguir as discussões que gostaríamos de levantar em nossas edições normais.
Por isso mesmo, elaboramos em junho uma edição especial de greve. Temos a pretensão de fazer parte da vida normal do ICHF – sendo assim, não poderíamos nos abster de procurar levar a nossos leitores pontos de vista sobre o movimento que afetou de forma tão profunda nossa vida como alunos.
Agora voltamos à vida normal. Tínhamos a presente edição pronta desde maio: por isso alguns assuntos, como a formação Comissão da Verdade (que data de maio), e as revoadas de mosquito que aparecem anualmente no Gragoatá (a última também foi em maio) figuram tão proeminentemente entre os artigos. Não achamos que estes assuntos caducaram; as discussões que introduzimos ou continuamos aqui estão tão vivas quanto antes, e os mosquitos não tardam em voltar.
Somos realmente pretensiosos. Prova disso é nossa mudança de formato. Resolvemos deixar de ser apenas a folhinha do Gragoatá para tornarmo-nos de fato uma Folha do Gragoatá, com um espaço respeitável. Vamos preenchendo-o, aos poucos: nesta edição temos dois artigos interessantes de intelectuais discutindo assuntos dos quais fazem parte.
Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da UFF, participou ativamente da luta contra a ditadura militar de 1964. Hoje ele nos traz sua opinião sobre a quantas anda (ou andava, em maio) a Comissão da Verdade –órgão criado pelo governo federal para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas” no período da ditadura (na verdade, uma lei complementar coloca o período sobre o qual se debruçará a Comissão como desde 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição de 1988).
Já Ronaldo Vainfas, professor de História Moderna em nossa universidade, nos insere no cerne de um debate que tem movido o departamento de História. Respondendo a um posicionamento do professor Ciro F. Cardoso, ele argumenta a favor do que chama de reconstrucionismo, defendendo que, ao contrário do que diz Cardoso, uma maior valorização de evidências documentais não é algo que está preso na historiografia do século XIX. O que torna esta discussão ainda mais interessante é o fato destes dois historiadores terem recentemente organizado, juntos, Novos Domínios da História, livro de metodologia que busca atualizar o mapeamento das principais posições historiográficas de hoje (este volume surge como uma continuação de Domínios da História, publicado em 1997).
A partir desta edição, decidimos abrir um pouco mais nosso leque de contribuidores. Pensamos: somos um jornal que visa, em alguma medida, a atender anseios literário-intelectuais ICHFianos (ok, talvez sejamos um pouco petulantes). Interessa-nos ler estudantes de Letras. Interessa-nos ler poesias de alunos de Ciências Sociais. E por que não um conto, quase sonho, de um aluno de matemática (na próxima edição)?●
Por isso mesmo, elaboramos em junho uma edição especial de greve. Temos a pretensão de fazer parte da vida normal do ICHF – sendo assim, não poderíamos nos abster de procurar levar a nossos leitores pontos de vista sobre o movimento que afetou de forma tão profunda nossa vida como alunos.
Agora voltamos à vida normal. Tínhamos a presente edição pronta desde maio: por isso alguns assuntos, como a formação Comissão da Verdade (que data de maio), e as revoadas de mosquito que aparecem anualmente no Gragoatá (a última também foi em maio) figuram tão proeminentemente entre os artigos. Não achamos que estes assuntos caducaram; as discussões que introduzimos ou continuamos aqui estão tão vivas quanto antes, e os mosquitos não tardam em voltar.
Somos realmente pretensiosos. Prova disso é nossa mudança de formato. Resolvemos deixar de ser apenas a folhinha do Gragoatá para tornarmo-nos de fato uma Folha do Gragoatá, com um espaço respeitável. Vamos preenchendo-o, aos poucos: nesta edição temos dois artigos interessantes de intelectuais discutindo assuntos dos quais fazem parte.
Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da UFF, participou ativamente da luta contra a ditadura militar de 1964. Hoje ele nos traz sua opinião sobre a quantas anda (ou andava, em maio) a Comissão da Verdade –órgão criado pelo governo federal para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas” no período da ditadura (na verdade, uma lei complementar coloca o período sobre o qual se debruçará a Comissão como desde 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição de 1988).
Já Ronaldo Vainfas, professor de História Moderna em nossa universidade, nos insere no cerne de um debate que tem movido o departamento de História. Respondendo a um posicionamento do professor Ciro F. Cardoso, ele argumenta a favor do que chama de reconstrucionismo, defendendo que, ao contrário do que diz Cardoso, uma maior valorização de evidências documentais não é algo que está preso na historiografia do século XIX. O que torna esta discussão ainda mais interessante é o fato destes dois historiadores terem recentemente organizado, juntos, Novos Domínios da História, livro de metodologia que busca atualizar o mapeamento das principais posições historiográficas de hoje (este volume surge como uma continuação de Domínios da História, publicado em 1997).
A partir desta edição, decidimos abrir um pouco mais nosso leque de contribuidores. Pensamos: somos um jornal que visa, em alguma medida, a atender anseios literário-intelectuais ICHFianos (ok, talvez sejamos um pouco petulantes). Interessa-nos ler estudantes de Letras. Interessa-nos ler poesias de alunos de Ciências Sociais. E por que não um conto, quase sonho, de um aluno de matemática (na próxima edição)?●
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