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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eu não funciono -- Isabel Falcão

Eu não funciono. A culpa não é minha. Eu sofro com isso mais do que você, acredite, eu só estou mais conformada. Eu não funciono, nunca funcionei, o jeito é conviver com isso. Eu já tentei mudar por você, meu bem - tudo por você - mas é difícil, eu dou defeito, eu nasci assim, a culpa não é minha. Tudo o que eu errei, tudo o que eu gritei, tudo o que eu chorei, pode chamar de maluquice, pode chamar de drama, pode chamar de distúrbio psicológico, mas é tolice, meu bem, porque é tudo erro de funcionamento. Não se pode esperar de um pato que ele seja outra coisa que não um pato, como não se pode esperar de uma pessoa que claramente não funciona que se comporte como se funcionasse normalmente. É tolice, meu bem, esperar qualquer coisa de mim. Se em vez de juízo me faltasse um dedo você não ia esperar que um dedo subitamente surgisse na minha mão, então também não espere nada igualmente esdrúxulo do meu juízo. Eu nasci sem ele, é defeito de fabricação. Todo mundo tem defeito. Até mesmo os sábios, até mesmo os reis, até mesmo os papas tem defeito, até mesmo as mães, até mesmo aquela sua ex-namorada que lia Baudelaire. Mais do que comum, eu diria até que é condição necessária da existência humana. E eu bem te avisei. Cuidado, eu não funciono, eu falei. Você escolheu se envolver comigo ciente de tudo isso. Não, meu bem, a culpa não é sua. Fui eu que fiz pouco. Talvez eu devesse ter arranjado uma placa como essas que colocam em máquinas de refrigerante quebradas, uma dessas com os dizeres "FORA DE FUNCIONAMENTO". É uma questão de respeito por parte das máquinas para com os seus usuários, elas deixam bem claro, eu podia ter tomado esse cuidado. Mas eu vou melhorar, você vai ver. Você vai ficar orgulhoso de mim. "Eu não funciono", vai dizer a minha placa. Há de ser o suficiente, não? Tudo isso por causa de um probleminha que eu não posso resolver. Não é preguiça minha, é uma questão de lógica: eu não funciono, não é querer demais que além de existir eu ainda saia por aí resolvendo problemas? Não é que eu não esteja disposta a tentar, veja bem. Ainda temos opções. Terapia, religião, medicina, exorcismo, macumba, vodu, feitiçaria, eu estou aberta a tudo isso. Teve até uma vez que me contaram uma história sobre um senhor que não funcionava, assim, que nem eu, foi para um internato (parece que era na Suécia) e voltou bonzinho. Eu sei, parece mentira, mas não custa tentar. Eu posso fazer isso por você, eu vou para a Suécia, e se o tratamento não funcionar pelo menos eu conheci um país novo, eu posso fazer isso por você, é tudo por você. Não, não é pressão, não é responsabilidade nenhuma, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu nasci assim, eu não funciono, nunca funcionei. E se nada der certo, se eu nunca funcionar e se eu for assim pra sempre, eu te peço tão pouco, meu bem, é só de um pouquinho de paciência que eu preciso. Dispense as pérolas, os diamantes, os anéis de compromisso. Pode dispensar os vestidos, as viagens e as promessas de amor eterno. Tudo o que eu preciso é de um pouquinho de paciência, só um pouquinho, eu peço tão pouco. Eu sei, é complicado, eu sei, eu sou toda errada, mas meu pedido é tão pequenininho e existem coisas tão grandes no mundo, existe a Muralha da China e também o oceano e existe a infinitude do universo, compara com tudo isso, olha como eu te peço pouco. E o nosso amor, meu bem, o nosso amor é infinito como o universo e tudo o que eu te peço é um pouquinho de paciência, só um pouquinho. Porque se você for embora, se você desistir de mim, eu não funciono, não vai dar, eu não vou conseguir sozinha. Não é pressão nenhuma, meu bem, eu sempre quis que você fosse livre, mas se você for embora, aí eu nunca mais vou funcionar, aí eu vou pifar pra sempre, e eu vou ter que comprar uma arma, meu bem, esta sim, funcionando perfeitamente, e eu vou direcionar virada para mim, sem querer te pressionar, meu bem, eu vou direcionar direitinho, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu não funciono, eu vou direcionar a arma e eu vou ter que atirar, e aí meu corpo também vai parar de funcionar, minha mente vai parar de funcionar, e quando finalmente o meu coração parar de funcionar, por favor, meu bem, eu só peço um pouquinho de paciência comigo, não é culpa minha, eu não func ●

Isabel Falcão é graduanda em Letras pela PUC

Um comentário:

  1. devo dizer q adorei esse jogo proposto pela autora. ela se convenceu, mas não muito q ela não funciona pra convencer seu amor a aceita-la... até com arma na mão. a-do-rei! parabéns moça vc me lembrou algumas pessoas q conheço, quando não eu. ler-te hoje foi balsamo pr'alma... rí bastante!

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