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domingo, 23 de março de 2014

Platão, Platonismo e Antiplatonismo - Fernando Muniz

Fernando Muniz é professor do departamento de Filosofia da UFF, e um dos mais célebres platonistas brasileiros. Entre suas obras mais importantes destacam-se A Potência da Aparência: um estudo sobre prazer e sensação nos Diálogos de Platão (2011) e O Filebo de Platão (2012), em que traduziu pela primeira vez ao português este diálogo. O seguinte artigo é uma versão, editada por Luiz Eduardo Freitas, de conferência realizada originalmente em agosto de 2010 na XI Semana de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio.




Aqui tratarei da questão do platonismo e do antiplatonismo. Sem dúvida, um tema filosófico intermitente e amplo demais. Isso porque os diálogos platônicos formam um monumento que se tornou uma espécie de esfinge pelo fato de a história da filosofia tê-lo tomado como a referência fundamental para a própria constituição da filosofia.“Nós, os platônicos...” – já dizia o primeiro filósofo antiplatônico de vulto, Aristóteles, no seu extraordinário esforço de suplantar o mestre. De Aristóteles aos filósofos contemporâneos, o reconhecimento da herança platônica manteve sua pertinência e sua impertinência. É verdade que à medida que se desenvolveu a partir da modernidade a consciência da sobredeterminação a que foi submetido o pensamento Ocidental pelo pensamento platônico, essa consciência gerou reações diversas e algumas delas radicais e exasperadas. 
Mas antes de tratar especificamente dos exasperados, vou exemplificar o papel histórico da filosofia platônica com a celebérrima frase de Whitehead: a filosofia ocidental não fez mais do que colocar notas de rodapé na obra de Platão. 
A frase reconhece uma função premonitória da filosofia platônica, fazendo dela uma espécie de hipertexto em que os filósofos posteriores a Platão - Kant e Hegel, por exemplo - teriam uma função apenas secundária de desenvolver e explicar temas e problemas já contidos embrionariamente no texto dos Diálogos. Mas há outra dimensão interessante na sentença de Whitehead. Se as notas explicativas ou críticas possibilitam a reprodução inevitável do platonismo no futuro, o que dizer das notas de referência do próprio Platão?  Ele cita no corpo dos Diálogos filósofos anteriores a ele, como Heráclito e Parmênides. Em muitos casos, no entanto, a referência é indireta, como no caso dos “Amigos das Formas” e, em outros casos, a referência simplesmente não é feita, como em relação a Demócrito. O trabalho crítico que estabelece a relação do texto platônico com essas fontes externas permite que se produza - ainda que sob o efeito de um fascínio - uma miragem platônica sobre os filósofos anteriores a ele. Portanto, se há uma projeção da imagem do platonismo no futuro, através das notas explicativas ou críticas, há, em contrapartida, uma projeção do platonismo no passado, por meio das notas de referência explícitas ou elaboradas por comentaristas e intérpretes. Projetada assim no passado e no futuro pelas notas de pé-de-página, a filosofia platônica alcança uma atemporalidade que é indiscernível da própria história da filosofia. 
No entanto, paralela à idéia de um Platão iluminado, uma sombra espessa também começou a se desenvolver. Estou me referindo ao fato de que, desde a Antiguidade, ao mesmo tempo em que Platão e os seus Diálogos eram louvados como uma obra de originalidade radical, uma corrente antiplatônica trabalhou arduamente para provar que o divino Platão era, na verdade, uma fraude, ou seja, um plagiário. Uma leitura perversa de Aristóteles permitiu que Pitágoras, Heráclito, Sócrates, vistos por Aristóteles como influenciadores, fossem transformados em vítimas de apropriação intelectual praticada por Platão. 
O antiplatonismo da Antiguidade chega parecer inocente perto do que nós conhecemos hoje. Mas a ideia absurda de que Platão usurpou ou se apropriou de textos de outros autores, pareceu convincente para muitos estudiosos durante séculos. No séc. IV de nossa era, eruditos como Diógenes de Laércio, Ateneu de Náucratis e Porfírio dedicaram-se a mostrar que Platão não tinha nenhuma originalidade. As fontes de tais acusações remontam ao IV séc a.C. São, por exemplo, Theopompo de Chios (IV ac), um historiador antiplatônico que denunciava o plágio de Platão de Aristipo de Cirene e de Antístenes. Outra fonte mais antiga é Aristóxenos de Tarento, (IV Séc. Ac.) acusava Platão de plagiar Demócrito e Protágoras. Segundo Diógenes de Laércio (IX 40), Aristóxenos afirmava que Platão teria plagiado Demócrito. Essa seria a razão pela qual Demócrito, a despeito da evidente influência que exerceu sobre Platão, não ter  sido citado nem uma só vez nos Diálogos. Ainda segundo Aristóxenos, Platão teria tentado obter todos os livros de Demócrito para queimá-los e esconder assim seu plágio. 
Ao lado desta ridícula imagem do Platão plagiário mantinha-se a não menos plausível do Platão divino e original. Outras tantas imagens antitéticas foram construídas ao longo da história da interpretação de Platão. Temos um Platão dogmático ao lado do cético, um questionador anti-sistemático ao lado de um hábil construtor de sistema, um Platão fervoroso místico, outro, dialético frio e interessado apenas em lógica. Um libertário ao lado de um totalitário fascista, um poeta incomparável ao lado de um inimigo mortal da arte, um Platão gênio matemático ao lado de um mero retórico etc. Isso nos leva a uma questão: qual a fonte dessas imagens incompatíveis? Por que Platão, à diferença da maioria dos filósofos, não permite uma imagem consensual? Essa pergunta incomoda tanto os defensores do platonismo quanto os antiplatonistas militantes. A resposta deve ser buscada no modo de exposição da filosofia platônica. Daí seguem alguns elementos: 
(1) Platão não escreveu tratados como Kant, escreveu dramas filosóficos. Não aparece em nenhum dos seus diálogos. Esse anonimato impede que se possa dizer de modo não problemático: “Platão afirma” isso ou aquilo. Platão, como o leitor, está sempre em silêncio. O silêncio grave ou silêncio irônico de quem observa a cena filosófica.
(2) Nos dramas não encontramos tratamentos sistemáticos de tópicos isolados. Os temas éticos, políticos, cosmológicos, ontológicos, estéticos, epistemológicos estão todos entrelaçados. Platão não pensa por disciplinas estanques, pensa a pluralidade dos fenômenos filosóficos.
(3) Quem fala por Platão nos Diálogos? Há que se decidir sobre isso. Platão tem porta-voz ou porta-vozes? Seria Sócrates? Mas o que dizer do Estrangeiro de Eléia no Sofista e do Ateniense no Timeu? Por que Platão tomou essa decisão de não falar em nome próprio? Há que se decidir sobre isso também.
(4) Podemos falar de teorias gerais em Platão? A história do platonismo nos diz que sim, transformando a diversidade dos diálogos em um sistema integrado. Uma tarefa muitas vezes tentada, mas fadada ao fracasso. Podemos, sim, forçar os enunciados espalhados pelos Diálogos a dizer a mesma coisa, preencher lacunas, eliminar contradições, ambiguidades até formar um todo coerente e uniforme. Este é o sonho dos antiplatônicos e dos adeptos do platonismo. Seria preciso fazê-los acordar desse sonho. 
Como eles fazem com que os Diálogos dialoguem entre si de modo sistemático? Uma das táticas usadas para forçar essa comunicação foi durante séculos a técnica da atetização, ou seja, cortar do texto aquilo que é considerado espúrio. Essa técnica hermenêutica foi uma das armas para forçar o texto platônico a se comportar como sistema. O pressuposto geral desse procedimento é o seguinte: qualquer palavra, frase ou passagem do corpus platônico é virtualmente suspeita. Para que sejam inocentadas elas precisam comprovar a interpretação do investigador. 
O antiplatonismo moderno foi muito além do limite da atetização. Afinal, os autodenominados “Mestres da Suspeita” precisavam fazer melhor do que meramente amputar o texto platônico. Os Mestres da Suspeita trouxeram pequenas tesouras afiadas, não para cortar, mas para recortar o texto platônico. Mas o que queriam eles ressaltar com seus recortes? 
Para responder a essa pergunta precisamos reconhecer que o antiplatonismo moderno, diferente do antigo, surgiu da consciência de que lutar contra Platão é uma luta vã. Kant já tinha observado isso. Para Kant, ser antiplatônico é ter em comum com o platonismo os mesmo problemas, postulados e pressupostos. É produzir apenas uma resposta diferente para a mesma questão. Por causa de Kant, a palavra de ordem contra Platão passou a ser: não lutar contra ele, não se opor a ele, mas revertê-lo, revirá-lo. Por que revertê-lo? Na trilha de Kant: Nietzsche anuncia que a filosofia dele pretende ser um “platonismo revertido”. 
Mas de que eles estão falando? De qual Platonismo? Querem atacar a doutrina das Formas, querem atacar a separação entre inteligível e sensível, entre corpo e alma? A resposta não parece ser tão simples. Eles têm uma ambição mais vasta e profunda; querem destruir a Metafísica. Mas como a Metafísica é identificada por eles ao platonismo e o platonismo, por sua vez, à filosofia, a tarefa do pensamento, portanto, não pode ser outra senão a destruição da filosofia. 
Nietzsche e Heidegger teriam analisado os sintomas, dado o diagnóstico e receitado a terapêutica, e seus fiéis discípulos franceses se incumbiram de realizar a tarefa.
Deleuze, Derrida, Foucault e Lyotard, apesar das distâncias teóricas e políticas que eventualmente os podem separar, parecem estar unidos quanto aos inimigos comuns: Platão e o platonismo.
O que eles entendem por platonismo não é tão fácil de compreender, principalmente para quem está um pouco familiarizado com a filosofia dos Diálogos. De um modo geral, essa compreensão pode ser resumida assim: a motivação verdadeira do platonismo é caçar fantasmas e simulacros e declarar a diferença impensável e enviar a diferença e o simulacro para o fundo dos oceanos. É o que diz Foucault no seu Teatrum Philosoficum. Derrida, por sua vez, afirma que se esforça na crítica contra a reapropriação incessante desse trabalho do simulacro em uma dialética de tipo hegeliana. Por isso, propõe a reversão, para salvação dos simulacros. 
Para efetuar a reversão, os pós-estruturalistas franceses empregam uma estranha hermenêutica. Preferem não ler os Diálogos. Ignoram na obra a sua diversidade, tomam o sentido como dado. Estranha estratégia em nome da diferença. Tudo se passa como se Platão já tivesse cometido o crime da instauração da Metafísica; agora, a tarefa seria apenas fazer com que seu texto confessasse. Em suma, como no caso do Big Bang, busca-se indícios, marcas, resíduos, reverberações do Acontecimento fundamental da história do Ocidente. 
Heidegger, por exemplo, no seu único texto dedicado a Platão, a doutrina de Platão sobre a verdade concentra-se apenas numa pequena frasezinha em 517c4, ante kuria aletheia. Ali, nessas três palavrinhas, ele escuta o eco da verdade como desvelamento sendo subjugada pela Forma.  Derrida segue o mesmo procedimento: afirma que no Fedro 275a5 a história é cortada em duas. Foucault, no Uso dos Prazeres não faz outra coisa: concentra-se apenas no Banquete 201d e no Fedro 256a. 
Curiosamente, a leitura de reversão de Platão preocupada em recortar pequenos fragmentos que comprovem a criação do Acontecimento-Big-Bang da Metafísica não resiste ao teste de fidelidade de um pedacinho sequer do texto de Platão. Vou exemplificar essa fragilidade interpretativa com a história de uma conversão.
Durante a conversa travada nos momentos que antecedem a sua morte no Fédon, Sócrates faz uma afirmação intrigante: a filosofia é um exercício de morte. Em 80e, ele desenvolve a sentença: “Aquele que mantém a alma concentrada em si mesma e afastada de qualquer relação voluntária com o corpo, exercita-se em morrer”. Essa é a verdadeira filosofia, um exercício de morte (meléte thanátou). A imagem de Sócrates que dominou o século passado foi gerada, em parte, pela interpretação nietzschiana dessa passagem. O exercício de morte socrático para Nietzsche é a prática de um decadente, de alguém que experimenta a vida como uma doença. É dessa maneira que, em O Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche se refere a Sócrates ou ao problema que ele propõe. Sócrates teria estado doente durante muito tempo. Na verdade, afirma Nietzsche foi ele quem forçou Atenas a executá-lo. Aquilo que parecia ter sido um assassinato jurídico foi, na realidade, um suicídio. 
Nietzsche dá uma importância enorme às últimas palavras de Sócrates no leito de morte. Vê ali a confirmação de uma suspeita.  Diz ele na Gaia Ciência, 340: “Terá sido a morte ou o veneno ou a piedade ou a malícia – alguma coisa lhe desatou a língua e ele falou: ‘Criton, eu devo um galo a Asclépio’. Essa ridícula e terrível ‘última palavra’ quer dizer para todos os que têm ouvido: ‘Críton, a vida é uma doença’”. Nietzsche acertadamente entende que a oferenda a Asclépio, o deus da medicina, supõe uma cura realizada pelo deus, mas imediatamente conclui que se trata da morte como cura da doença da vida.
Ironicamente, a História quis que um antiplatônico contestasse de forma incisiva essa interpretação. Foucault, em uma das suas últimas conferências, precisamente em 15 de fevereiro de 1984, poucos meses antes de sua morte, investe contra a interpretação Nietzsche da passagem. 
Nesta conferência, Foucault ataca alguns pequenos pontos cruciais da interpretação de Nietzsche. O principal é o seguinte: Sócrates não diz “eu devo”, mas nós “devemos um galo a Asclépio”. Não há, portanto, como Nietzsche tenta nos fazer acreditar, uma dívida individual, mas, sim, coletiva. O problema é, assim, deslocado, mas não eliminado. Resta saber qual doença e por que a dívida é coletiva. Perguntado na época sobre a posição de Nietzsche sobre Sócrates: Foucault respondeu: “Ele estava errado como em tantas outras coisas.” 
Para concluir essas observações imprecisas, menciono as  palavras atribuídas ao próprio Platão na Carta 7 e que tem resistido bravamente às tentativas de athetização. Diz ele em 341 b-d: 
“Existe pelo menos uma coisa que eu posso afirmar com veemência, sobre todas as pessoas que escrevem ou que escreverão e se declaram competentes sobre o objeto de minhas preocupações [...]: é impossível que tenham compreendido alguma coisa sobre o assunto. Não há nenhuma obra escrita sobre isso nem jamais haverá”. 

2 comentários:

  1. Esse trecho da carta não nos coloca diante de uma possível interpretação mística de Platão? Algo como se esses textos que conhecemos (esotérios ou exotéricos) seriam incapazes de nos revelar esse objeto?

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  2. Você está certo, Louco, em relação à interpretação esotérica de Platão. Essa passagem é crucial para a adoção da ideia de que o fundamental do pensamento platônico estaria restrito ao ensino oral. Aliando essa passagem àquela do Fedro sobre as limitações do texto escrito, os esotéricos julgam ter encontrado a chave hermenêutica dos Diálogos. Uma chave que acaba sendo mística, você tem razão também sobre esse ponto.
    Mas essa não é a única possibilidade de leitura do texto - pelo menos eu não o leio desse modo. Platão não é um personagem dos Diálogos, não apresenta doutrinas, conceitos e argumentos, mantém-se sempre à distância, como um dramaturgo da sua peça. Quem afirma “Platão afirma isso ou aquilo” não sabe o que fala. O que podemos dizer a esses especialistas nas intenções de Platão é que eles devem ler os Diálogo. Pois, o objeto das preocupações de Platão aparece sempre dramatizado. Foi assim que ele julgou ter encontrado a maneira de manter a filosofia sempre viva: o leitor não tem acesso direto ao pensamento de Platão, tem acesso a teia de questões, conceitos e argumentos que o desafiam a entrar no jogo dialético. Sem dúvida que assim é mais difícil; a filosofia platônica é a experiência do pensamento, arriscada, rigorosa, precária, livre e, por isso, indispensável para a vida.
    F. Muniz

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