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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Por que deveríamos nos interessar mais pela filosofia dos sofistas? - Luís Felipe Bellintani Ribeiro

Luís Fellipe Bellintani Ribeiro é professor do departamento de Filosofia da UFF. É uma das maiores referências brasileiras no estudo dos sofistas da Grécia Antiga. É autor de Filosofia e Doxografia: O Artefato Antifonte (2015) e publicou, como tradutor e organizador, obras de Aristóteles, Antifonte e do Anônimo de Jâmblico.

A filósofa brasileira contemporânea Ivana Bentes cunhou uma expressão simples para dizer o páthos (a disposição de humor pela qual se é afetado) em que atualmente se insere sua complexa atividade pensante e falante: “o tédio da erudição”. Imagino que outros eruditos ou aprendizes de eruditos sintam simpatia por esse páthos e, sem necessariamente prejuízo de sua atividade de erudição, se coloquem outros desafios quanto ao que fazer com suas filosofias. Estudar Grego Clássico e História da Filosofia Antiga é um labor altamente recomendável, mas mais para aprender a falar o português do futuro, do que para se tornar um juiz autoproclamado do correto discurso sobre o passado.

Nesse espírito e cientes de que em filosofia todo perguntar e responder nunca exaurem a questão, mas antes alargam-lhe o escopo de interrogação, coloquemos sem mais a pergunta que Foucault corretamente considera ser em todo tempo a pergunta número um da filosofia: o que está acontecendo no mundo agora?

Para início de conversa, convenhamos que, em um mundo como o nosso, em que Publicidade, Mídia e Direito têm a importância que têm, e que de resto é “tão pouco platônico”, como constata Kerferd nas palavras de Cassin, ninguém está em condições de dar lições de moral à sofística. Todos sabem que aquele ator de novela não usa na vida real o produto que na propaganda recomenda usar, mas essa falsidadezinha segue inofensiva no dia-a-dia das pessoas, o ator passa a ser até mais admirado e o consumo do produto aumenta no final das contas (o sofista Górgias: “o que iludiu é mais justo do que o que não iludiu, e o iludido é mais sábio do que o não iludido (...), pois o que se deixa prender mais facilmente pelo prazer das palavras não é insensível.”).

Talvez haja um domínio em que seja possível falar de uma ciência (epistéme) diferente de uma simples opinião (dóxa), o da matemática e das ciências formais em geral, e o da natureza que se deixa descrever matematicamente, e a Física, genuína ontologia realista da atualidade, está aí para sugeri-lo. Mas no domínio da política, isto é, de tudo que se diz e faz na praça pública, o que inclui o domínio da ética, da religião e da cultura em geral, pois as pessoas vão cheias de ética, religião e cultura para a praça pública, pergunto: há alguma possibilidade de distinguir no meio das dóxai um discurso especial a título de epistéme? Não, não há, só há dóxa, a menos que se queira incorrer de novo no erro ego- e etnocêntrico de confundir a opinião própria com a verdade universal.

A famosa máxima do sofista Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, do ser das que são e do não-ser das que não são”, não tem nada a ver com respaldo à posição antropocêntrica, mas, ao contrário, vale como uma advertência para toda vez que se for tomar sem mais as coisas relativas ao homem como se fossem as coisas em si mesmas. Mesmo que se compreenda o homem da frase como a espécie humana, ela não incorre neste especismo. Quando Sócrates no Teeteto conclui, da argumentação atribuída a Protágoras, que o porco e o cinocéfalo, dotados de sensação, também seriam medida das coisas, o Protágoras encenado por Sócrates retruca que as percepções do homem não são mesmo mais verdadeiras e reais que as do porco e do cinocéfalo, apenas melhores, segundo uma escala de valores já certamente decidida no âmbito da lei convencionada. A frase de Platão nas Leis, “deus é a medida de todas as coisas”, é que é antropocêntrica”, pois deus, entendido como inteligência e potência teleológica, a qual deveria então governar toda a natureza, é que é criação à imagem e semelhança do homem.

Se o homem da frase é interpretado como o indivíduo (essa é a principal interpretação no Teeteto), ela aponta então para uma verdade universal: não há aparição do real para fora da percepção por um indivíduo, toda aparição é de saída enviesada, e nesse pé de igualdade não há como uma perspectiva pretender ser acesso privilegiado ao real mais que as outras, todas são de saída absolutamente reais. Quem diz o que é ou não? Todos e ninguém. Ou cada um a cada vez em sua oportunidade própria.

Se o homem da frase é interpretado como o conjunto dos cidadãos de uma Cidade-Estado (pólis) determinada, interpretação citada en passant no Teeteto, mas provavelmente mais próxima do pensamento de Protágoras, então temos agora proclamada não a igualdade de todos os indivíduos humanos e até viventes no tocante a serem medidas do ser, como antes, mas a própria tese do relativismo cultural, esse ambíguo bônus civilizatório do Ocidente. É mesmo somente no interior de uma cultura determinada com uma língua materna determinada que o ser pode aparecer pela primeira vez. Nenhum indivíduo fala uma língua idiota, só sua. O mínimo nesse domínio, o idioma, já é instância compartilhada coletivamente. No âmbito de uma sociedade, por mais que os indivíduos discordem e sejam diferentes, há uma concordância maior de fundo, manifesta na pretensão espontânea e recíproca de significar sinonimamente as palavras da mesma língua, ainda que para enunciar posições diferentes sobre o então mesmo mundo compartilhado.

O relativismo não tem nada a ver com a tese frouxa de que cada um pensa, diz e faz o que quer. Tem a ver com as teses rigorosas de que o ser não aparece senão articulado em alguma relação, e de que todo homem não tem como fugir da condição trágica de ser medida das coisas e de ter de decidir, diante da contradição, e malgrado eventual equipolência, por um de seus polos, só lhe restando a possibilidade de querer retrospectivamente o que já pensou, disse e fez.

Entendida como uma construção sofística no contexto polifônico da Cidade Grega (“o sistema mais tagarela de todos”, nas palavras de Burckhardt), a república de Platão é uma das coisas mais geniais que o Ocidente já produziu. Levada ao pé da letra, isto é, como se além da letra houvesse uma realidade mais real que a letra, como se fosse mais que um paradigma no céu construído pelo lógos (discurso) com mentiras úteis, é, no menos daninho dos casos, uma boa base erudita para o pequeno dono-da-verdade que mora em cada um de nós se sentir em paz com seus inconfessáveis instintos elitistas e excludentes. No mais daninho dos casos, o sentimento autocentrado de identidade entre a lei positiva e a lei moral torna-se coletivo e expansionista e estende-se a intervenções materiais no mundo. O lastro metafísico que toda lei moral tem de ter para pretender ser mais que lei positiva – afinal de contas, pretender saber como a natureza efetivamente é, isto é metafísica – é que permite aproximar essa posição, no limite da exacerbação, da teocracia.

A república de Platão é genial mas não é completa. Falta-lhe a versão antilógica. Que os homens nascem diferentes, como está dito no exato princípio da república de Platão, isso é uma verdade, mas não é uma verdade completa. Os homens também nascem iguais, como diz o sofista Antifonte, pois todos caminham com os pés e seguram as coisas com as mãos, e isso não é pouca coisa, mas exatamente a parte de natureza no homem. Para onde os homens caminham ou que coisas seguram nas mãos talvez sejam questões já inteiramente do reino do nómos (lei, convenção não-natural), esse reino gigantesco feito todo de linguagem, que enche de significado as cores e formas que afluem pela sensação formando assim pela primeira vez as coisas reais. Se é verdade que a questão ontológica da realidade das coisas não se resolve fora do âmbito do nómos, vale dizer, da cultura e da política, então não adianta justificar sua cultura e sua política baseado em alguma pretensa realidade prévia.

Poderíamos acrescentar à lista de Antifonte, que todos os homens, uma vez nascidos, tendem a perseverar no ser e a lutar para preservar sua integridade, característica, aliás, compartilhada até com as baratas. Isso é só uma constatação sobre o nascimento do que nasce, isto é, da natureza. Não há nenhum direito humano aí, nem em nenhum outro lugar do universo natural. Mas deste material linguístico, uma asserção em palavras que se autoproclama “constatação”, um bom retor pode começar a produzir um valor de igualdade e ganhar a adesão de seu auditório. Se o auditório vier a ser a assembleia dos cidadãos o valor pode se tornar lei. Essa é uma das formas de intervenção mais efetivas da linguagem no real. No mundo ideal, a lei provém de um consenso pré-legal espontâneo, que torna o juramento de obediência às leis um voluntário assentimento. Num mundo menos perfeito, a lei, respaldada num parcial e circunstancial consenso de maioria, ao contar com o aparato coercitivo do Estado, ao menos evita que determinadas intervenções concretas no mundo se realizem, a despeito do que se passe nas consciências dos seus agentes. Se não é possível convencer os etnocêntricos das vantagens cognitivas e morais do multiculturalismo, que ao menos haja leis para coibir os efeitos reais da arrogância etnocêntrica. Ainda que muitos continuem a fazer piada dos direitos humanos, que ao menos esse valor ganhe algum dia estatuto de lei, e passe a contar com o aparato coercitivo do Estado. Trata-se de um desejo que não se pretende respaldar metafisicamente em nenhuma natureza, que, ao contrário, se reconhece pura fabricação de linguagem e apenas busca formar consenso.

A conversa continua.

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