Há dois anos, o mundo ficou órfão de um dos mais célebres repórteres de sua história. Pois sim: embora não costumemos associar com frequência a figura de García Márquez com a de um repórter, é curioso quando nos damos conta que o escritor nunca chegou
a abandonar o ofício por algum espaço de tempo que permita o traçar de uma linha divisória entre o ‘jornalista’ e o ‘literato’. Apaixonado irrecuperável pelos deadlines desde o final dos anos 40, não largou de escrever sobre a Macondo-nossa-de-cada-dia
deste amalucado cotidiano latino-americano – com a única regalia jornalística de não ter de inventar nada – mesmo depois do estouro global de Cem Anos de Solidão em 1967 e a posterior consagração conferida pelo Prêmio Nobel de Literatura em
1982. Aliás, não seria nenhuma grande ousadia dizer que o maior reconhecimento formal deste planeta à obra de um ficcionista tenha sido, também, um reconhecimento de sua obra como escritor de verdades, uma vez que ele nunca as separou.
Na segunda metade da década de setenta, inclusive, fez a rompante promessa de não tornar a escrever ficção até que Pinochet fosse deposto e saiu a rodar o mundo como repórter da revista colombiana Alternativa, da qual foi sócio-fundador. Registrou impressões sobre o fascismo chileno, o comunismo cubano e a revolução nicaraguense, dentre outros momentos históricos e políticos que, através do olhar de Gabo, seriam compiladas no livro Periodismo Militante (1978). Felizmente, o escritor voltaria atrás em seu decreto pessoal e alguns anos depois seríamos presenteados com Amor nos Tempos do Cólera (1985).
O adjetivo “militante”, vale a ressalta, não parece de modo algum inadequado para caracterizar a não-ficção de García Márquez: as sanções que recebeu por suas reportagens de maior impacto, opondo-se a censura mordaz das ditaduras militares latino-americanas, talvez por si só já façam jus ao título autoconcedido. Pouco após a publicação de Relato de um Náufrago (1955), as tensões envolvendo seu nome e o periódico El Espectador culminaram em seus anos cinzas de exílio em Paris e na subsequente clausura do jornal. Motivo: revelar que o dito naufrágio não havia se dado graças a uma tormenta, como queria fazer acreditar a versão escusa da marinha do general Rojas Pinilla, mas ao excesso de peso acarretado por uma carga de contrabando ilegal que o destróier levava.
Já a Aventura de Miguel Littin Clandestino no Chile (1986) – onde narra os temerários dias nos quais o cineasta exilado Miguel Littin, impedido de voltar a pôr os pés em sua terra natal sob risco de fuzilamento, retorna para filmar um documentário sobre o país durante a era Pinochet – teve a pouco modesta quantia de quinze mil cópias queimadas pelos militares em praça pública. Aliás, mais do que o “militante”, temos de reconhecer o “periodismo”, especialmente se concordamos com a máxima de George Orwell de que “jornalismo é tudo aquilo que alguém não quer que se publique, todo o resto é relações públicas”. Quem sabe, enfim, o título do seu compêndio de reportagens não passe mesmo de um inadvertido pleonasmo.
Se a retórica, todavia, não for suficiente para concluirmos que a obra de não-ficção do escritor merece com toda a justiça dividir os louros da Academia Sueca com o universo fantástico de seus romances, vamos pois aos números: García Márquez especulava ter escrito mais de duas mil notas de imprensa, e um número que não se atrevia a arriscar de reportagens, crônicas e resenhas críticas– boa parte destas reunidas nos cinco tomos que formam a antologia de sua Obra Jornalística (este mês com 21% de desconto no Submarino, e aqui com a licença de George Orwell gostaria de alertar para as tênues e complexas nuances das divisas postas entre a publicidade e a utilidade pública).
Por fim, temos Notícia de um Sequestro (1996), seu último livro-reportagem publicado. Trata-se de um magistral e apavorante relato dos muitos meses de cativeiro a que foram submetidos dez jornalistas no início dos anos 90 a mando do já lendário narcotraficante Pablo Escobar para chantagear o governo colombiano. Mas trata-se também, e especialmente, de um dos mais inspiradores odes já feitos à coragem sobre-humana necessária para se exercer dignamente a profissão num país em estado de calamidade. Dois anos depois García Márquez concluiria o ciclo completo do ofício que começou como repórter raso se tornando autoridade máxima de uma redação com a compra da revista colombiana Cambio, para a qual só deixou de ser um colaborador prolífico quando a demência enfim lhe aposentou compulsoriamente.
Como se poderia esperar, sua ficção não saiu intocada da vivência intensa no inacreditável mundo das histórias reais. Revelou, inclusive, lançar mão de artimanhas de jornalista para tornar mais verossímil seu consagrado universo fantástico. E justificava-as com argumentos de fato difíceis de rebater. “Se um escritor diz que viu voar um rebanho de elefantes, não haverá ninguém que acredite, pois o bom jornalismo fez crer o mundo que elefantes não voam. Mas não faltará quem acredite nele se apela ao recurso jornalístico da precisão e diz que os elefantes que voavam eram 326”, escreveu certa vez.
Mas a coisa vai além, e antecipemos desde já qualquer mal-entendido: seus truques de repórter não se limitaram a ajudar sua “literatura”, mas seu próprio jornalismo era literatura. E não por encaixar-se de alguma forma no tal “jornalismo literário”, este híbrido esquisito que nasce da intercessão promíscua de dois mundos supostamente puros com fronteiras invioláveis e bem desenhadas – o jornalismo e a literatura – mas por defender com firmeza a demolição sumária de tais fronteiras. Acreditava ser o gênero tão digno do título de arte como a novela, o teatro e a poesia. E as suas convicções iam tão longe que até em imbróglios jurídicos o meteram.
Por não considerar a entrevista tradicional um gênero do jornalismo que se sustentasse por si só – e sim uma matéria-prima a ser aproveitada pelo repórter como melhor lhe conviesse, tal qual é a inspiração para o poeta –, era costumeiro que quase nunca transcrevesse a fala de um entrevistado nas exatas palavras em que foi dita. Por conceder-se tal liberdade resolveu narrar Relato de um náufrago em primeira pessoa, como se o próprio náufrago nos falasse, misturando em uma só voz a prosódia do marinheiro Alejandro Velasco e seu próprio estilo de escrever literatura. Esclarecia a escolha: “quando alguém fala, foge do assunto, hesita e faz comentários tolos”.
Apesar da declarada boa intenção, García Márquez foi processado por sua ex-fonte catorze anos após a publicação da reportagem em forma de livro, que não compreendia como a assinatura do testemunho de seus dez dias de martírio no mar poderia pertencer de maneira exclusiva a outro alguém que não ele. A empreitada do ex-marinheiro para ter sua coautoria reconhecida naufragou tanto quanto seu destroier no mar do Caribe, uma vez que, aos olhos da suprema corte colombiana, seria natural das artes e da literatura em geral se inspirarem em eventos cotidianos e histórias reais.
As palavras jornalismo ou reportagem, todavia, não apareceram em um só parágrafo da sentença judicial. E para militar contra ausências como esta García Márquez criaria, em 1995, a ambiciosa FNPI (hoje chamada Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano), recrutando jovens promessas latino-americanas de mais de uma dezena de países para que tivessem oficinas práticas e aprendizagens diretas com consagrados da profissão.
Neste ponto, o “novo” em prol do qual García Márquez lutava parecia ser, a bem da verdade, o resgate de um antigo. O antigo de um tempo em que a relação de mestre-artesão que o editor tinha com seus repórteres rasos não havia sido substituída pela assepsia das redações computadorizadas, em que a escassez de gravadores obrigava os repórteres a estarem invariavelmente atentos a cada fala de seu entrevistado com o bloco de nota em punhos, em que todo o currículo teórico que hoje demanda o diploma de “comunicador social” se absorvia durante as pausas para cigarros e recargas de cafeína entre uma matéria e outra.
Mas afora o que poderia ser confundido com defasagem teimosa ou nostalgia romântica, havia também um novo nas aspirações quixotescas de García Márquez. Fadado a jamais deixar a inalcançável linha do horizonte das utopias, muito provavelmente, mas decididamente um novo: de um tempo em que não se processará ninguém por entrevistar como quem escreve um poema e não se estranhará quando o primeiro Nobel concedido for ao conjunto da obra de um repórter. Como tanto martelava e bem melhor resumia o velho Gabo, um novo em que o jornalismo haverá de ser “finalmente reconhecido pelo que é: um gênero literário maior de idade”.
Na segunda metade da década de setenta, inclusive, fez a rompante promessa de não tornar a escrever ficção até que Pinochet fosse deposto e saiu a rodar o mundo como repórter da revista colombiana Alternativa, da qual foi sócio-fundador. Registrou impressões sobre o fascismo chileno, o comunismo cubano e a revolução nicaraguense, dentre outros momentos históricos e políticos que, através do olhar de Gabo, seriam compiladas no livro Periodismo Militante (1978). Felizmente, o escritor voltaria atrás em seu decreto pessoal e alguns anos depois seríamos presenteados com Amor nos Tempos do Cólera (1985).
O adjetivo “militante”, vale a ressalta, não parece de modo algum inadequado para caracterizar a não-ficção de García Márquez: as sanções que recebeu por suas reportagens de maior impacto, opondo-se a censura mordaz das ditaduras militares latino-americanas, talvez por si só já façam jus ao título autoconcedido. Pouco após a publicação de Relato de um Náufrago (1955), as tensões envolvendo seu nome e o periódico El Espectador culminaram em seus anos cinzas de exílio em Paris e na subsequente clausura do jornal. Motivo: revelar que o dito naufrágio não havia se dado graças a uma tormenta, como queria fazer acreditar a versão escusa da marinha do general Rojas Pinilla, mas ao excesso de peso acarretado por uma carga de contrabando ilegal que o destróier levava.
Já a Aventura de Miguel Littin Clandestino no Chile (1986) – onde narra os temerários dias nos quais o cineasta exilado Miguel Littin, impedido de voltar a pôr os pés em sua terra natal sob risco de fuzilamento, retorna para filmar um documentário sobre o país durante a era Pinochet – teve a pouco modesta quantia de quinze mil cópias queimadas pelos militares em praça pública. Aliás, mais do que o “militante”, temos de reconhecer o “periodismo”, especialmente se concordamos com a máxima de George Orwell de que “jornalismo é tudo aquilo que alguém não quer que se publique, todo o resto é relações públicas”. Quem sabe, enfim, o título do seu compêndio de reportagens não passe mesmo de um inadvertido pleonasmo.
Se a retórica, todavia, não for suficiente para concluirmos que a obra de não-ficção do escritor merece com toda a justiça dividir os louros da Academia Sueca com o universo fantástico de seus romances, vamos pois aos números: García Márquez especulava ter escrito mais de duas mil notas de imprensa, e um número que não se atrevia a arriscar de reportagens, crônicas e resenhas críticas– boa parte destas reunidas nos cinco tomos que formam a antologia de sua Obra Jornalística (este mês com 21% de desconto no Submarino, e aqui com a licença de George Orwell gostaria de alertar para as tênues e complexas nuances das divisas postas entre a publicidade e a utilidade pública).
Por fim, temos Notícia de um Sequestro (1996), seu último livro-reportagem publicado. Trata-se de um magistral e apavorante relato dos muitos meses de cativeiro a que foram submetidos dez jornalistas no início dos anos 90 a mando do já lendário narcotraficante Pablo Escobar para chantagear o governo colombiano. Mas trata-se também, e especialmente, de um dos mais inspiradores odes já feitos à coragem sobre-humana necessária para se exercer dignamente a profissão num país em estado de calamidade. Dois anos depois García Márquez concluiria o ciclo completo do ofício que começou como repórter raso se tornando autoridade máxima de uma redação com a compra da revista colombiana Cambio, para a qual só deixou de ser um colaborador prolífico quando a demência enfim lhe aposentou compulsoriamente.
Como se poderia esperar, sua ficção não saiu intocada da vivência intensa no inacreditável mundo das histórias reais. Revelou, inclusive, lançar mão de artimanhas de jornalista para tornar mais verossímil seu consagrado universo fantástico. E justificava-as com argumentos de fato difíceis de rebater. “Se um escritor diz que viu voar um rebanho de elefantes, não haverá ninguém que acredite, pois o bom jornalismo fez crer o mundo que elefantes não voam. Mas não faltará quem acredite nele se apela ao recurso jornalístico da precisão e diz que os elefantes que voavam eram 326”, escreveu certa vez.
Mas a coisa vai além, e antecipemos desde já qualquer mal-entendido: seus truques de repórter não se limitaram a ajudar sua “literatura”, mas seu próprio jornalismo era literatura. E não por encaixar-se de alguma forma no tal “jornalismo literário”, este híbrido esquisito que nasce da intercessão promíscua de dois mundos supostamente puros com fronteiras invioláveis e bem desenhadas – o jornalismo e a literatura – mas por defender com firmeza a demolição sumária de tais fronteiras. Acreditava ser o gênero tão digno do título de arte como a novela, o teatro e a poesia. E as suas convicções iam tão longe que até em imbróglios jurídicos o meteram.
Por não considerar a entrevista tradicional um gênero do jornalismo que se sustentasse por si só – e sim uma matéria-prima a ser aproveitada pelo repórter como melhor lhe conviesse, tal qual é a inspiração para o poeta –, era costumeiro que quase nunca transcrevesse a fala de um entrevistado nas exatas palavras em que foi dita. Por conceder-se tal liberdade resolveu narrar Relato de um náufrago em primeira pessoa, como se o próprio náufrago nos falasse, misturando em uma só voz a prosódia do marinheiro Alejandro Velasco e seu próprio estilo de escrever literatura. Esclarecia a escolha: “quando alguém fala, foge do assunto, hesita e faz comentários tolos”.
Apesar da declarada boa intenção, García Márquez foi processado por sua ex-fonte catorze anos após a publicação da reportagem em forma de livro, que não compreendia como a assinatura do testemunho de seus dez dias de martírio no mar poderia pertencer de maneira exclusiva a outro alguém que não ele. A empreitada do ex-marinheiro para ter sua coautoria reconhecida naufragou tanto quanto seu destroier no mar do Caribe, uma vez que, aos olhos da suprema corte colombiana, seria natural das artes e da literatura em geral se inspirarem em eventos cotidianos e histórias reais.
As palavras jornalismo ou reportagem, todavia, não apareceram em um só parágrafo da sentença judicial. E para militar contra ausências como esta García Márquez criaria, em 1995, a ambiciosa FNPI (hoje chamada Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano), recrutando jovens promessas latino-americanas de mais de uma dezena de países para que tivessem oficinas práticas e aprendizagens diretas com consagrados da profissão.
Neste ponto, o “novo” em prol do qual García Márquez lutava parecia ser, a bem da verdade, o resgate de um antigo. O antigo de um tempo em que a relação de mestre-artesão que o editor tinha com seus repórteres rasos não havia sido substituída pela assepsia das redações computadorizadas, em que a escassez de gravadores obrigava os repórteres a estarem invariavelmente atentos a cada fala de seu entrevistado com o bloco de nota em punhos, em que todo o currículo teórico que hoje demanda o diploma de “comunicador social” se absorvia durante as pausas para cigarros e recargas de cafeína entre uma matéria e outra.
Mas afora o que poderia ser confundido com defasagem teimosa ou nostalgia romântica, havia também um novo nas aspirações quixotescas de García Márquez. Fadado a jamais deixar a inalcançável linha do horizonte das utopias, muito provavelmente, mas decididamente um novo: de um tempo em que não se processará ninguém por entrevistar como quem escreve um poema e não se estranhará quando o primeiro Nobel concedido for ao conjunto da obra de um repórter. Como tanto martelava e bem melhor resumia o velho Gabo, um novo em que o jornalismo haverá de ser “finalmente reconhecido pelo que é: um gênero literário maior de idade”.
Matheus Torreão é mestre em Estudos de Mídia pela UFF
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