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sábado, 16 de novembro de 2013

Fernando Cardim de Carvalho: As Ciências Sociais e a Crise

Fernando J. Cardim de Carvalho é professor Emérito do Instituto de Economia da UFRJ, além de ser um dos mais ilustres pós-Keynesianos do Brasil. Entre suas publicações mais importantes vale citar Mr Keynes and The Post Keynesians: Principles of Macroeconomics for a Monetary Production Economy (1992), e Dívida Pública: Propostas para Aumentar a Liquidez (2003), além de diversos artigos. 



Como se tornou impossível ignorar, desde 2007, quando a crise financeira se iniciou nos Estados Unidos, e 2008, quando ela contagiou um grande número de países (inclusive o Brasil), o mundo praticamente inteiro vive uma situação de crise econômica e social profunda. O desemprego na União Europeia como um todo é superior a 11% da população economicamente ativa (o que exclui aqueles desempregados que já desistiram de procurar empregos, chamados de “desencorajados”), mas chega a um quarto da PEA (população economicamente ativa) em países como a Espanha. Jovens são particularmente punidos pela falta de oportunidades de trabalho. Na Espanha, novamente, cerca de metade dos jovens com idade suficiente para ingressar no mercado de trabalho não encontram emprego. A emigração voltou a ser a saída para um grande número de jovens na Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia e outros países europeus, como no final do século XIX. Diferentemente daquela época, porém, esses países são abandonados por jovens com formação universitária, cuja qualificação para o trabalho mais produtivo um dia será amargamente lembrada com saudade e cobiça por sociedades envelhecidas e empobrecidas, que com certeza lembrarão dos tempos em que a parte mais promissora de sua juventude foi forçada a buscar construir sua vida em outro lugar. Nos Estados Unidos a situação não é tão dramática, pelo menos no momento, mas o desemprego também prossegue elevado, cerca de 9%, a economia prossegue mantendo uma taxa de crescimento medíocre, e o horizonte continua marcado por nuvens negras, em uma permanente ameaça de novas tempestades. Para nós, no Brasil e em outros países ditos “emergentes”, a ilusão de que estaríamos protegidos destes ventos solares, se desfez rapidamente no ano passado, em que se aprendeu que é possível minimizar seus impactos (embora não seja possível simplesmente anulá-los), mas apenas através da adoção de políticas econômicas muito mais eficientes e nem planejadas do que o que se praticava até então e cujo perfil mais exato ainda é objeto de busca.

Em meio a tudo isso, pesquisadores e estudantes de ciências sociais (inclusive economia e história) veem-se em uma posição peculiar, frente a uma oportunidade única, eu não diria em cada geração, mas, na verdade, em pelo menos duas ou três gerações. A crise atual já dura, se contada a partir do inicio de 2007, mais de cinco anos, sem solução à vista. Praticamente ninguém aposta em uma recuperação efetiva em menos de cinco anos, e muitos sugerem pelo menos dez anos antes que as dificuldades possam ser dadas como superadas. Se a crise, por intervenção divina (ou, como diríamos nós, pela intervenção de fatores exógenos) acabasse hoje, por sua duração, alcance e intensidade ela já seria classificada como uma depressão. Economias capitalistas conhecem frequentes períodos de dificuldades. Na verdade, costumam ser tão frequentes e sistemáticos, que um ramo importante da teoria econômica se dedica há muitas décadas exatamente ao estudo dos chamados “ciclos econômicos”, isto é, o fenômeno da repetição periódica de períodos de expansão e contração, chamados de prosperidade e recessão. Usando uma expressão que costumava ouvir de minha bisavó, a teoria dos ciclos nada mais é do que uma versão formalizada do princípio de que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Períodos de prosperidade sempre serão inevitavelmente sucedidos por recessões (ainda que perceber a sucessão de fases seja mais fácil do que conseguir descobrir uma razão sólida para isso).

Não é disso que se fala quando se fala de uma depressão. Depressões são situações em que a contração é tão forte e profunda que a repetição de fases é interrompida, sabe-se lá por quanto tempo. Uma depressão não é apenas uma recessão especialmente dura, mas uma situação em que os mecanismos normais de recuperação da economia são danificados em tal extensão que essa recuperação só poderá ser conseguida pela intervenção de algum fator exógeno (novamente, talvez alguma divindade, mas mais provavelmente o Estado mesmo).

É consenso entre analistas que o mais próximo da situação que conhecemos pode ser encontrado na Grande Depressão da década de 1930. Naquela década, a crise iniciada com o colapso do sistema bancário norte-americano entre 1931 e 1933 levou a economia daquele país, e o resto do mundo, a uma situação da qual só se conseguiu sair com o início da Segunda Guerra Mundial, que, do ponto de vista econômico, nada mais foi do que um período de enorme crescimento de gastos públicos, redinamizando as economias envolvidas.

Observar o desenrolar de uma crise como a atual é um privilegio dos estudantes e pesquisadores de ciências sociais. Mal comparando (ou talvez bem comparando), é como ser um epidemiologista nos tempos da Peste Negra. Pode-se observar “ao vivo” e em “tempo real”, como esses processos se desenrolam, como o colapso financeiro americano de 2007/2008 se transmutou na crise da dívida pública na Europa, na reorientação do crescimento chinês para o mercado interno, na busca de novas estratégias de crescimento no Brasil. Mas a oportunidade não existe apenas para economistas. Observar a polarização política nos Estados Unidos ou, um fenômeno ainda mais significativo, a desintegração de sociedades como a grega, ou a emergência de partidos políticos de extrema-direita em praticamente toda a Europa, as ameaças a própria existência da União Europeia, o desenrolar das tensões políticas na China, fenômenos que se não resultam da crise são fortemente influenciados por ela, é um desafio para estudantes de ciência política, sociologia, história. Até mesmo a geografia mais tradicional está sendo desafiada pelas iniciativas gregas, por exemplo, de vender parte de seu território (especialmente suas cobiçadas ilhas) para pagar o que lhes é  imposto pelos credores europeus.


A grande depressão dos anos 2010 representa, portanto, uma grande oportunidade de estudo para cientistas sociais de todas as áreas. Não é razão para euforia, é claro, porque se trata de um período de intenso sofrimento para um número astronômico de pessoas em todo o mundo. Mas vale sempre a pena lembrar que do estudo gerado pela grande depressão dos anos 1930 emergiram políticas que garantiram o maior período de prosperidade conhecido na história do capitalismo, no pós-Segunda Guerra. É importante não apenas torcer para que desta crise possamos sair com um conhecimento de processos e de instrumentos de intervenção igualmente eficientes. É preciso investir esforços e pesquisas para que isto ocorra. 

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