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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O estado do bem-estar social é de esquerda? - Celia Lessa Kerstenetzky

Celia Lessa Kerstenetzky é professora titular de economia da UFRJ. É eminente pesquisadora do estado do bem-estar social, tendo publicado em 2012 O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão pela Editora Campus. Este artigo foi escrito em 2013.

O título-tema desta nota me foi sugerido pelo editor da Folha. A mente paranóica, típica dos acadêmicos, logo se viu cercada de perguntas prévias, a mais ameaçadora: o que é ser de esquerda? Para me limitar a apenas um problema (e três páginas), resolvi ignorá-la por ora. Apostei: todo mundo sabe o que é ser de esquerda, o difícil é dizer. Então, leitor, devolvo a decisão a você. Vou aqui apresentar uma narrativa sobre esse experimento político centenário conhecido como estado do bem-estar social, ou, por concisão, estado social, e você decide se é de esquerda ou não.

A mais sugestiva metáfora para dar conta dessa invenção política foi concebida pelo pensador austro-húngaro Karl Polanyi, em seu livro sobre a violenta gênese do capitalismo moderno, A Grande Transformação. O livro escrito em 1944, quando tudo parecia dar errado, reflete o enigma do tempo: como chegamos até aqui?, quais as forças do caos? que antídotos possíveis? Entre os fios do enorme emaranhado, Polanyi puxa o capitalismo, a economia concorrencial de mercado que não conhece limites, visto por ele como um sistema que preside à mercantilização de tudo. Não apenas das coisas que produzimos e de que não necessitamos, mas também dos meios que utilizamos para as trocas, o dinheiro, e mais além, da própria natureza e, portanto, dos recursos de que nos valemos para produzir coisas que acontecem ser também o ambiente natural em que vivemos, e finalmente da própria substância humana das sociedades, quando o trabalho, atividade humana, deve ser vendido e comprado.

Financeirização, essa animização do dinheiro que o desvencilha da utilidade social, predação ambiental que desconhece valores não monetários, alienação e exploração do homem pelo homem, são patologias que decorrem da substituição das formas tradicionais de sociabilidade e solidariedade, familiares e comunais, pela forma mercado. Se ainda estivesse entre nós, Polanyi se espantaria das novas fronteiras da mercantilização, que coloniza emoções, formas de entendimento, linguagem, relações interpessoais, relações internacionais, necessidades, aspirações, órgãos do corpo humano, educação, saúde, cultura, semeando o domínio das normas e práticas sociais e das políticas de governo com a praga irreprimível dos incentivos monetários.

Voltando à metáfora, Polanyi observou então que esse movimento violento não se deu sem resistência, o que ele chamou de “autoproteção da sociedade”. Trata-se das tentativas sensatas, desesperadas, espontâneas, organizadas, violentas ou calmas, de violar o regime de mercado, e com graus variados de sucesso. A reação se deu de muitas maneiras, seja pela introdução de melhorias sociais por parte de governos temerosos de revoluções sociais, seja por respostas de governos a lutas dos trabalhadores e outros segmentos, e em várias intensidades, de forma politicamente organizada ou espontânea, se traduzindo em demandas sociais por e para grupos específicos ou mais abrangentes. As contestações se dirigiram ao Estado, âmbito possível, poder-equivalente, do contraponto ao mercado, disputando sua identidade e questionando sua responsividade.

Não se tratou então de repor o mundo perdido, de famílias estendidas e comunidades tradicionais e suas formas de hierarquia. Vários ideários socialistas, democráticos e não democráticos, tiveram sua gênese nesse movimento. Foi na esteira da reação autoprotetora da sociedade, de pressões pressentidas ou de fato sofridas, que emergiram no século XX as leis trabalhistas, os direitos à previdência e assistência, saúde, educação e cultura, a legislação ambiental, as regulamentações ao funcionamento do mercado, inclusive financeiro. O estado-Leviatã, da ordem a todo custo, é revogado por um estado social, novo patamar mínimo inegociável da vida em comum em uma sociedade de mercado. Estados sociais robustos, em contraposição a estados-poder, são também menos propensos a conflito aberto.

O estado social emerge então dessa contra-‘grande transformação’. Mas ele não foi e nem é um monolito. Em sua variedade na superfície do mundo, ele é maior ou menor, mais assistencial ou mais redistributivo, mais atento a manutenção de status diferenciados ou à universalização de condições entre os cidadãos. Essas que foram divisões definidoras da variedade existente de estados do bem-estar recobrem significados mais profundos. Não apenas reações variadas a reivindicações de solidariedade e igualdade, como também distintos ímpetos transformadores e emancipadores. Será ele apenas um apêndice das sociedades de mercado, buscando discipliná-las, ou conterá a semente da transformação em direção a novos horizontes de direitos e reconhecimento, novos sentidos de comunidade política?

Teremos, por razão de espaço, de deixar de lado a variedade de experiências realmente existentes e considerar aquelas que se aproximam do horizonte de possibilidades aberto pelo estado social. Refiro-me ao experimento levado a cabo nos países do norte da Europa. A partir de uma concepção ampla de estado do bem-estar, universalista e igualitário no que se refere a direitos políticos e sociais, cuja condição de recebimento é unicamente o pertencimento à comunidade política, mas cujas obrigações de moralidade pública ultrapassam esse âmbito (são os países que no geral mais doam recursos a países pobres e os que mais recebem imigrantes), esses países se notabilizam por vários sucessos. E também por nos fazer vislumbrar novos problemas de sociabilidade e provocar nossa imaginação.

Entre os sucessos estão os menores níveis de desigualdade econômica e social do mundo conhecido, a eliminação da pobreza absoluta e os menores níveis de pobreza relativa. Estão também os melhores indicadores de equidade de gênero (a mais equilibrada divisão de trabalho pago e não pago entre homens e mulheres) e respeito e reconhecimento de diferenças (são países onde o casamento gay, no civil e no religioso, é reconhecido), e também as maiores realizações em sustentabilidade ambiental. Helsinque é uma cidade que se projeta hoje para um futuro sem automóvel. Copenhagen, uma cidade em que metade dos habitantes se desloca em ciclovias. Os indicadores de qualidade da democracia e satisfação com o trabalho também se destacam. A combinação de intensa participação e densa representação nessas democracias faz com que sejam os países com a menor incidência de poder despótico do Estado e maior experimentação na concepção de políticas públicas. É elevado o grau de associativismo, o mais alto do continente europeu. A satisfação do trabalho, em parte, corresponde ao inovador experimento de autonomia dos trabalhadores no que diz respeito a decisões relevantes no processo de trabalho, que caracteriza mais da metade dos empregos industriais dinamarqueses. Em parte, à forte densidade sindical.

Centenas de instituições públicas conspiram em favor desses resultados e certamente também uma cultura pública que as revigora e secunda, que não nasceu pronta, mas decantou da longa experiência, e teve origem em deliberada engenharia política, concebida e conduzida pela socialdemocracia. Na origem, o compromisso era cobrir a maior quantidade possível -- com a maior generosidade possível e para a maior comunidade possível -- dos riscos sociais a que se expõem os cidadãos em uma sociedade de mercado, entremeando as vidas de todos por vínculos solidários, na contramão da mercantilização. Essa cobertura é assegurada por pesada tributação, com alta progressividade. Na prática, isso tem significado a socialização de boa parte da riqueza gerada nesses países, bem como a socialização do consumo, sob a forma do consumo conjunto de bens públicos como escolas, hospitais, postos de saúde, museus, parques, transporte coletivo. A resultante socialização democrática de riqueza e consumo (mais consumo público que privado) e acomodação de múltiplas formas de vida repercutem a ambição de encontrar uma espécie de quadratura do círculo: igualdade, liberdade, democracia, bem-estar, sustentabilidade, reconhecimento, comunidade.

Na competição por mundos sociais alternativos, o estado do bem-estar social democrata é competidor sério, com a vantagem, em relação a experimentos já realizados, de enfrentar aspiração mais difícil e por isso mais valiosa: a conciliação de valores caros, no sentido não mercantil do termo, e a abertura para desafios e exercício permanente da imaginação. 

Por que deveríamos nos interessar mais pela filosofia dos sofistas? - Luís Felipe Bellintani Ribeiro

Luís Fellipe Bellintani Ribeiro é professor do departamento de Filosofia da UFF. É uma das maiores referências brasileiras no estudo dos sofistas da Grécia Antiga. É autor de Filosofia e Doxografia: O Artefato Antifonte (2015) e publicou, como tradutor e organizador, obras de Aristóteles, Antifonte e do Anônimo de Jâmblico.

A filósofa brasileira contemporânea Ivana Bentes cunhou uma expressão simples para dizer o páthos (a disposição de humor pela qual se é afetado) em que atualmente se insere sua complexa atividade pensante e falante: “o tédio da erudição”. Imagino que outros eruditos ou aprendizes de eruditos sintam simpatia por esse páthos e, sem necessariamente prejuízo de sua atividade de erudição, se coloquem outros desafios quanto ao que fazer com suas filosofias. Estudar Grego Clássico e História da Filosofia Antiga é um labor altamente recomendável, mas mais para aprender a falar o português do futuro, do que para se tornar um juiz autoproclamado do correto discurso sobre o passado.

Nesse espírito e cientes de que em filosofia todo perguntar e responder nunca exaurem a questão, mas antes alargam-lhe o escopo de interrogação, coloquemos sem mais a pergunta que Foucault corretamente considera ser em todo tempo a pergunta número um da filosofia: o que está acontecendo no mundo agora?

Para início de conversa, convenhamos que, em um mundo como o nosso, em que Publicidade, Mídia e Direito têm a importância que têm, e que de resto é “tão pouco platônico”, como constata Kerferd nas palavras de Cassin, ninguém está em condições de dar lições de moral à sofística. Todos sabem que aquele ator de novela não usa na vida real o produto que na propaganda recomenda usar, mas essa falsidadezinha segue inofensiva no dia-a-dia das pessoas, o ator passa a ser até mais admirado e o consumo do produto aumenta no final das contas (o sofista Górgias: “o que iludiu é mais justo do que o que não iludiu, e o iludido é mais sábio do que o não iludido (...), pois o que se deixa prender mais facilmente pelo prazer das palavras não é insensível.”).

Talvez haja um domínio em que seja possível falar de uma ciência (epistéme) diferente de uma simples opinião (dóxa), o da matemática e das ciências formais em geral, e o da natureza que se deixa descrever matematicamente, e a Física, genuína ontologia realista da atualidade, está aí para sugeri-lo. Mas no domínio da política, isto é, de tudo que se diz e faz na praça pública, o que inclui o domínio da ética, da religião e da cultura em geral, pois as pessoas vão cheias de ética, religião e cultura para a praça pública, pergunto: há alguma possibilidade de distinguir no meio das dóxai um discurso especial a título de epistéme? Não, não há, só há dóxa, a menos que se queira incorrer de novo no erro ego- e etnocêntrico de confundir a opinião própria com a verdade universal.

A famosa máxima do sofista Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, do ser das que são e do não-ser das que não são”, não tem nada a ver com respaldo à posição antropocêntrica, mas, ao contrário, vale como uma advertência para toda vez que se for tomar sem mais as coisas relativas ao homem como se fossem as coisas em si mesmas. Mesmo que se compreenda o homem da frase como a espécie humana, ela não incorre neste especismo. Quando Sócrates no Teeteto conclui, da argumentação atribuída a Protágoras, que o porco e o cinocéfalo, dotados de sensação, também seriam medida das coisas, o Protágoras encenado por Sócrates retruca que as percepções do homem não são mesmo mais verdadeiras e reais que as do porco e do cinocéfalo, apenas melhores, segundo uma escala de valores já certamente decidida no âmbito da lei convencionada. A frase de Platão nas Leis, “deus é a medida de todas as coisas”, é que é antropocêntrica”, pois deus, entendido como inteligência e potência teleológica, a qual deveria então governar toda a natureza, é que é criação à imagem e semelhança do homem.

Se o homem da frase é interpretado como o indivíduo (essa é a principal interpretação no Teeteto), ela aponta então para uma verdade universal: não há aparição do real para fora da percepção por um indivíduo, toda aparição é de saída enviesada, e nesse pé de igualdade não há como uma perspectiva pretender ser acesso privilegiado ao real mais que as outras, todas são de saída absolutamente reais. Quem diz o que é ou não? Todos e ninguém. Ou cada um a cada vez em sua oportunidade própria.

Se o homem da frase é interpretado como o conjunto dos cidadãos de uma Cidade-Estado (pólis) determinada, interpretação citada en passant no Teeteto, mas provavelmente mais próxima do pensamento de Protágoras, então temos agora proclamada não a igualdade de todos os indivíduos humanos e até viventes no tocante a serem medidas do ser, como antes, mas a própria tese do relativismo cultural, esse ambíguo bônus civilizatório do Ocidente. É mesmo somente no interior de uma cultura determinada com uma língua materna determinada que o ser pode aparecer pela primeira vez. Nenhum indivíduo fala uma língua idiota, só sua. O mínimo nesse domínio, o idioma, já é instância compartilhada coletivamente. No âmbito de uma sociedade, por mais que os indivíduos discordem e sejam diferentes, há uma concordância maior de fundo, manifesta na pretensão espontânea e recíproca de significar sinonimamente as palavras da mesma língua, ainda que para enunciar posições diferentes sobre o então mesmo mundo compartilhado.

O relativismo não tem nada a ver com a tese frouxa de que cada um pensa, diz e faz o que quer. Tem a ver com as teses rigorosas de que o ser não aparece senão articulado em alguma relação, e de que todo homem não tem como fugir da condição trágica de ser medida das coisas e de ter de decidir, diante da contradição, e malgrado eventual equipolência, por um de seus polos, só lhe restando a possibilidade de querer retrospectivamente o que já pensou, disse e fez.

Entendida como uma construção sofística no contexto polifônico da Cidade Grega (“o sistema mais tagarela de todos”, nas palavras de Burckhardt), a república de Platão é uma das coisas mais geniais que o Ocidente já produziu. Levada ao pé da letra, isto é, como se além da letra houvesse uma realidade mais real que a letra, como se fosse mais que um paradigma no céu construído pelo lógos (discurso) com mentiras úteis, é, no menos daninho dos casos, uma boa base erudita para o pequeno dono-da-verdade que mora em cada um de nós se sentir em paz com seus inconfessáveis instintos elitistas e excludentes. No mais daninho dos casos, o sentimento autocentrado de identidade entre a lei positiva e a lei moral torna-se coletivo e expansionista e estende-se a intervenções materiais no mundo. O lastro metafísico que toda lei moral tem de ter para pretender ser mais que lei positiva – afinal de contas, pretender saber como a natureza efetivamente é, isto é metafísica – é que permite aproximar essa posição, no limite da exacerbação, da teocracia.

A república de Platão é genial mas não é completa. Falta-lhe a versão antilógica. Que os homens nascem diferentes, como está dito no exato princípio da república de Platão, isso é uma verdade, mas não é uma verdade completa. Os homens também nascem iguais, como diz o sofista Antifonte, pois todos caminham com os pés e seguram as coisas com as mãos, e isso não é pouca coisa, mas exatamente a parte de natureza no homem. Para onde os homens caminham ou que coisas seguram nas mãos talvez sejam questões já inteiramente do reino do nómos (lei, convenção não-natural), esse reino gigantesco feito todo de linguagem, que enche de significado as cores e formas que afluem pela sensação formando assim pela primeira vez as coisas reais. Se é verdade que a questão ontológica da realidade das coisas não se resolve fora do âmbito do nómos, vale dizer, da cultura e da política, então não adianta justificar sua cultura e sua política baseado em alguma pretensa realidade prévia.

Poderíamos acrescentar à lista de Antifonte, que todos os homens, uma vez nascidos, tendem a perseverar no ser e a lutar para preservar sua integridade, característica, aliás, compartilhada até com as baratas. Isso é só uma constatação sobre o nascimento do que nasce, isto é, da natureza. Não há nenhum direito humano aí, nem em nenhum outro lugar do universo natural. Mas deste material linguístico, uma asserção em palavras que se autoproclama “constatação”, um bom retor pode começar a produzir um valor de igualdade e ganhar a adesão de seu auditório. Se o auditório vier a ser a assembleia dos cidadãos o valor pode se tornar lei. Essa é uma das formas de intervenção mais efetivas da linguagem no real. No mundo ideal, a lei provém de um consenso pré-legal espontâneo, que torna o juramento de obediência às leis um voluntário assentimento. Num mundo menos perfeito, a lei, respaldada num parcial e circunstancial consenso de maioria, ao contar com o aparato coercitivo do Estado, ao menos evita que determinadas intervenções concretas no mundo se realizem, a despeito do que se passe nas consciências dos seus agentes. Se não é possível convencer os etnocêntricos das vantagens cognitivas e morais do multiculturalismo, que ao menos haja leis para coibir os efeitos reais da arrogância etnocêntrica. Ainda que muitos continuem a fazer piada dos direitos humanos, que ao menos esse valor ganhe algum dia estatuto de lei, e passe a contar com o aparato coercitivo do Estado. Trata-se de um desejo que não se pretende respaldar metafisicamente em nenhuma natureza, que, ao contrário, se reconhece pura fabricação de linguagem e apenas busca formar consenso.

A conversa continua.

Schneider à beira-mar - Schneider

            1. Ele saiu por volta das três da madrugada, achou um bar aberto, entrou e pediu uma cerveja ao homem do outro lado do balcão. Seu senso de verdade e humanidade estavam confusos. Isso porque, nos últimos dois dias, passou pelo inferno de perto: descobriu-se portador de depressão (embora ele já sabia disso e só não queria admitir) e, ao mesmo tempo, teve uma crise de identidade: ele é cristão e tem vício em pornografia. Sentia-se contraditório e perdido, e não suportando mais, decidiu sair na madrugada em busca de silêncio para alma. Sendo o único cliente naquele momento se permitiu pedir uma música. Escolheu “Shy” do Sonata Arctica (pelo menos era o que parecia em meio aos tons menores tristes e gostosos da música). Essa música fala aos corações...
            O simples começar da música não lhe aquietou o coração, mas o fez refletir. Sua mente pensava em como chegara a tal estado... Um jovem, 23 anos, nascido no melhor dos mundo, com todas as regalias possíveis. Um prodígio de seu tempo, exímio pianista e piedoso... Que um dia, numa tarde solitária, adentrou no que não lhe convinha (podemos até pensar: “comeu do fruto que lhe fora dito para não comer”) e desse estado não mais saiu. Toda a construção ruiu – melhor dizer: vem ruindo desde aquele dia. Seus impulsos passaram de momentâneos a correntes ligadas a sua coluna vertebral. Ele é arrastado pelo seu desejo como um animal de savana capturado para um circo. Comparação muito forte? Absolutamente; ambos são parecidos: perderam sua liberdade e foram capturados pela curiosidade. Enfim, no momento uma questão perpassa todos esses fatos revisitados pela sua psique entorpecida: “quando foi que eu me perdi”.
            A música termina e o pensamento continua a lhe incomodar. Decidiu partir para algo mais forte, pediu indicações ao barman. Este lhe trouxe o ouro da casa, Utopias, alertando para seu alto valor. Ele toma, sente, começa a perder da consciência e assim, adentrou no vazio. Não sabia o que fazer nem por onde ir. Se retirou do bar. Sabia de sua morte eminente. Intuitivamente, entrou no primeiro taxi que viu e disse ao motorista (e a si mesmo) que não podia mais voltar atrás e que muitos iriam chorar pela sua partida. Esperou mais uns quinze minutos - se aproximava a vigésima terceira hora - e partiu. Uma lágrima caiu em seu rosto e as nuvens como que leitoras de pensamentos alheios formaram no céu o que significava aquilo tudo: haraquiri. Sim, não se sabe para onde ele teria ido, todavia soube-se posteriormente: ele já não sentia mais sua consciência e sim mecanicismo; não estava ali há muito tempo e decidiu se encontrar - se encontrando poderia demonstrar o seu adeus a existência, contra qual não poderia lutar naquele momento. E se foi.


            2. Como eu estava dizendo: ele se foi. Seu percurso era como a evolução das personagens de L. Matsumoto (escritor de manga japonês menos famoso; 1938/ atualmente) ou seja, um acontecer que se faz sem nenhuma razão aparente. Se encontrava agora num trem recém inaugurado no triângulo mineiro, o tão famoso Expresso Pharaó 90. Estava em sua cabine, por sorte não dividida, e pensava um pouco no seu destino. Ele saiu da sua terra e iria para o inusitado, que ficaria, segundo suas pesquisas, na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. Para tanto, planejou o melhor caminho para apreciar e dar tempo para si mesmo aceitar o que estava por acontecer: ou o sucesso de sua empreitada ou o seu fracasso existência – caso acontecesse, seria consumado com o tal suicídio. 
            O trem era de tom azul petróleo. A conservação lhe imprimia um aspecto ainda mais agradável e seu interior (contando com quinze vagões) não ficava atrás. Possuía dois restaurantes e cinco vagões eram destinados às cabines (ao todo vinte e cinco cabines). Confortáveis e bem aparelhadas. Chega a ser irônico que o lugar historicamente tido como berço do principal apoiador do transporte individualista tenha posto em funcionamento tamanha obra de arte do transporte público coletivo. Ele ao embarcar verificou os pertences: uma mala de carrinho e uma sacola de livros que comprara na estação. A tal sacola continha duas obras somente: "Kafka on the shore", de Murakami, e “Ulisses”, de James Joyce – deles este era o que mais queria ler, inclusive. Estava ouvindo música de maneira discreta. Um fone de ouvido passava por dentro de sua blusa e, quase num mundo paralelo por conta do isolamento do próprio fone, escutava alguma canção triste na voz da Dione Warwick, dentre outras músicas (numa mistura do estilos jazz, clássico e j-metal). Então, sentado a janela fechou os olhos e ao pensar no que deixou para trás, chorou. Em seguida, lembrou-se do seu objetivo, redescobrir-se, mas isso não o fez parar de chorar. Buscava respostas sobre si e só na fronteira elas poderiam ser encontradas. Começou a ler Ulisses e seu choro cessou. Um guarda bateu em sua porta para checagem do bilhete e, ao final de tudo, informou sobre o trajeto, desejando boa viagem, e se despediu. Seriam 8 dias de viagem. Ao se dar conta da informação, pegou uma caneta vermelha de sua mala e escreveu nos braços "I" (equivalente a um dia) e registrou seu novo livro com data e local, assinando ao fim com o nome que escolheu para si mesmo: Schneider. Voltou à leitura; voltou a chorar discretamente. 
 
 
Schneider (nome fictício) é graduando em História pela UFF

Um Nobel para o jornalismo - Matheus Torreão

Há dois anos, o mundo ficou órfão de um dos mais célebres repórteres de sua história. Pois sim: embora não costumemos associar com frequência a figura de García Márquez com a de um repórter, é curioso quando nos damos conta que o escritor nunca chegou a abandonar o ofício por algum espaço de tempo que permita o traçar de uma linha divisória entre o ‘jornalista’ e o ‘literato’. Apaixonado irrecuperável pelos deadlines desde o final dos anos 40, não largou de escrever sobre a Macondo-nossa-de-cada-dia deste amalucado cotidiano latino-americano – com a única regalia jornalística de não ter de inventar nada – mesmo depois do estouro global de Cem Anos de Solidão em 1967 e a posterior consagração conferida pelo Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Aliás, não seria nenhuma grande ousadia dizer que o maior reconhecimento formal deste planeta à obra de um ficcionista tenha sido, também, um reconhecimento de sua obra como escritor de verdades, uma vez que ele nunca as separou.

Na segunda metade da década de setenta, inclusive, fez a rompante promessa de não tornar a escrever ficção até que Pinochet fosse deposto e saiu a rodar o mundo como repórter da revista colombiana Alternativa, da qual foi sócio-fundador. Registrou impressões sobre o fascismo chileno, o comunismo cubano e a revolução nicaraguense, dentre outros momentos históricos e políticos que, através do olhar de Gabo, seriam compiladas no livro Periodismo Militante (1978). Felizmente, o escritor voltaria atrás em seu decreto pessoal e alguns anos depois seríamos presenteados com Amor nos Tempos do Cólera (1985).

O adjetivo “militante”, vale a ressalta, não parece de modo algum inadequado para caracterizar a não-ficção de García Márquez: as sanções que recebeu por suas reportagens de maior impacto, opondo-se a censura mordaz das ditaduras militares latino-americanas, talvez por si só já façam jus ao título autoconcedido.  Pouco após a publicação de Relato de um Náufrago (1955), as tensões envolvendo seu nome e o periódico El Espectador culminaram em seus anos cinzas de exílio em Paris e na subsequente clausura do jornal. Motivo: revelar que o dito naufrágio não havia se dado graças a uma tormenta, como queria fazer acreditar a versão escusa da marinha do general Rojas Pinilla, mas ao excesso de peso acarretado por uma carga de contrabando ilegal que o destróier levava.

Já a Aventura de Miguel Littin Clandestino no Chile (1986) – onde narra os temerários dias nos quais o cineasta exilado Miguel Littin, impedido de voltar a pôr os pés em sua terra natal sob risco de fuzilamento, retorna para filmar um documentário sobre o país durante a era Pinochet – teve a pouco modesta quantia de quinze mil cópias queimadas pelos militares em praça pública. Aliás, mais do que o “militante”, temos de reconhecer o “periodismo”, especialmente se concordamos com a máxima de George Orwell de que “jornalismo é tudo aquilo que alguém não quer que se publique, todo o resto é relações públicas”. Quem sabe, enfim, o título do seu compêndio de reportagens não passe mesmo de um inadvertido pleonasmo.

Se a retórica, todavia, não for suficiente para concluirmos que a obra de não-ficção do escritor merece com toda a justiça dividir os louros da Academia Sueca com o universo fantástico de seus romances, vamos pois aos números: García Márquez especulava ter escrito mais de duas mil notas de imprensa, e um número que não se atrevia a arriscar de reportagens, crônicas e resenhas críticas– boa parte destas reunidas nos cinco tomos que formam a antologia de sua Obra Jornalística (este mês com 21% de desconto no Submarino, e aqui com a licença de George Orwell gostaria de alertar para as tênues e complexas nuances das divisas postas entre a publicidade e a utilidade pública).

Por fim, temos Notícia de um Sequestro (1996), seu último livro-reportagem publicado. Trata-se de um magistral e apavorante relato dos muitos meses de cativeiro a que foram submetidos dez jornalistas no início dos anos 90 a mando do já lendário narcotraficante Pablo Escobar para chantagear o governo colombiano. Mas trata-se também, e especialmente, de um dos mais inspiradores odes já feitos à coragem sobre-humana necessária para se exercer dignamente a profissão num país em estado de calamidade. Dois anos depois García Márquez concluiria o ciclo completo do ofício que começou como repórter raso se tornando autoridade máxima de uma redação com a compra da revista colombiana Cambio, para a qual só deixou de ser um colaborador prolífico quando a demência enfim lhe aposentou compulsoriamente.

Como se poderia esperar, sua ficção não saiu intocada da vivência intensa no inacreditável mundo das histórias reais. Revelou, inclusive, lançar mão de artimanhas de jornalista para tornar mais verossímil seu consagrado universo fantástico. E justificava-as com argumentos de fato difíceis de rebater. “Se um escritor diz que viu voar um rebanho de elefantes, não haverá ninguém que acredite, pois o bom jornalismo fez crer o mundo que elefantes não voam. Mas não faltará quem acredite nele se apela ao recurso jornalístico da precisão e diz que os elefantes que voavam eram 326”, escreveu certa vez.

Mas a coisa vai além, e antecipemos desde já qualquer mal-entendido: seus truques de repórter não se limitaram a ajudar sua “literatura”, mas seu próprio jornalismo era literatura. E não por encaixar-se de alguma forma no tal “jornalismo literário”, este híbrido esquisito que nasce da intercessão promíscua de dois mundos supostamente puros com fronteiras invioláveis e bem desenhadas – o jornalismo e a literatura – mas por defender com firmeza a demolição sumária de tais fronteiras. Acreditava ser o gênero tão digno do título de arte como a novela, o teatro e a poesia. E as suas convicções iam tão longe que até em imbróglios jurídicos o meteram.

Por não considerar a entrevista tradicional um gênero do jornalismo que se sustentasse por si só – e sim uma matéria-prima a ser aproveitada pelo repórter como melhor lhe conviesse, tal qual é a inspiração para o poeta –, era costumeiro que quase nunca transcrevesse a fala de um entrevistado nas exatas palavras em que foi dita. Por conceder-se tal liberdade resolveu narrar Relato de um náufrago em primeira pessoa, como se o próprio náufrago nos falasse, misturando em uma só voz a prosódia do marinheiro Alejandro Velasco e seu próprio estilo de escrever literatura. Esclarecia a escolha: “quando alguém fala, foge do assunto, hesita e faz comentários tolos”.

Apesar da declarada boa intenção, García Márquez foi processado por sua ex-fonte catorze anos após a publicação da reportagem em forma de livro, que não compreendia como a assinatura do testemunho de seus dez dias de martírio no mar poderia pertencer de maneira exclusiva a outro alguém que não ele. A empreitada do ex-marinheiro para ter sua coautoria reconhecida naufragou tanto quanto seu destroier no mar do Caribe, uma vez que, aos olhos da suprema corte colombiana, seria natural das artes e da literatura em geral se inspirarem em eventos cotidianos e histórias reais.

As palavras jornalismo ou reportagem, todavia, não apareceram em um só parágrafo da sentença judicial. E para militar contra ausências como esta García Márquez criaria, em 1995, a ambiciosa FNPI (hoje chamada Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano), recrutando jovens promessas latino-americanas de mais de uma dezena de países para que tivessem oficinas práticas e aprendizagens diretas com consagrados da profissão.

Neste ponto, o “novo” em prol do qual García Márquez lutava parecia ser, a bem da verdade, o resgate de um antigo. O antigo de um tempo em que a relação de mestre-artesão que o editor tinha com seus repórteres rasos não havia sido substituída pela assepsia das redações computadorizadas, em que a escassez de gravadores obrigava os repórteres a estarem invariavelmente atentos a cada fala de seu entrevistado com o bloco de nota em punhos, em que todo o currículo teórico que hoje demanda o diploma de “comunicador social” se absorvia durante as pausas para cigarros e recargas de cafeína entre uma matéria e outra.

Mas afora o que poderia ser confundido com defasagem teimosa ou nostalgia romântica, havia também um novo nas aspirações quixotescas de García Márquez. Fadado a jamais deixar a inalcançável linha do horizonte das utopias, muito provavelmente, mas decididamente um novo: de um tempo em que não se processará ninguém por entrevistar como quem escreve um poema e não se estranhará quando o primeiro Nobel concedido for ao conjunto da obra de um repórter. Como tanto martelava e bem melhor resumia o velho Gabo, um novo em que o jornalismo haverá de ser “finalmente reconhecido pelo que é: um gênero literário maior de idade”.



 Matheus Torreão é mestre em Estudos de Mídia pela UFF

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Sarabande - Antonio Kerstenetzky

Era seu primeiro dia no novo emprego – segurança noturno no Museu C-- O-- na cidade de F--. M. Onnel não se considerava um especialista em arte, mas o que já tinha visto foi suficiente para que uma breve olhadela em “Sarabande” lhe dissesse que alguma coisa não estava certa.
“Sarabande”, por Jean-Michel Armagnac, ocupava a posição de obra mais importante da cidade. Datada do século XVI, mostrava a avó do pintor, vestida com suas melhores roupas – um vestido vermelho, um colar de pérolas... Mas o que poderia surpreender eram seus olhos. Não se podia dizer com certeza que cor tinham: uma mistura de azul e verde, com uma luz avermelhada. Um efeito inexplicável.
Mas M. Onnel, em sua primeira ronda noturna das galerias, não podia ver os olhos que orgulhavam a cidade. Eles não estavam lá. De fato, a velha senhora tinha desaparecido, e a pintura tinha virado uma paisagem.

...

M. Onnel entrou em choque. Não é que tivesse grande consideração por esta obra em especial, mas sabia que ele não sobreviveria ao escândalo que chegaria no dia seguinte. Ele estava sozinho no museu; o diretor, a polícia, a imprensa – ah, meu Deus, a imprensa que matou Diana – todos virão em cima de mim.
Sem reação possível, M. Onnel se pôs a tentar entender o que tinha acontecido com a velha avó que, depois de 400 anos, decidiu ir-se justamente no seu primeiro dia de trabalho.
Olhou o quadro de todas as maneiras possíveis: de perto, de longe, de um lado, de outro...  Fracasso. Não havia como descobrir onde poderia estar a madame Sarabande.
Finalmente, tomou uma decisão que, normalmente, é a primeira interdição inculcada nos guardas de museu: decidiu tocar o quadro. Estava realmente desesperado.

...

No dia seguinte, quando o curador chegou ao museu, surpreendeu-se por não conseguir encontrar M. Onnel. Era o primeiro dia de M. Onnel: o curador suspirou. Não queria demitir seu genro.
Como em todas manhãs, o curador foi ver “Sarabande”. Considerava esta obra a mais importante da Renascença em F--; estava também secretamente apaixonado pela avó do pintor, representada no quadro.
Quando chegou na sala de “Sarabande”, o curador desmaiou. A velha senhora não fazia mais parte do quadro; em seu lugar estava pintado M. Onnel, sua face deformada por um grito de dor.
 

Antonio Kerstenetzky graduou-se em História pela UFF

Under the Skin - Beatriz Reis

É curioso o fato de ter sido pena o primeiro sentimento humano que a personagem de “Under the skin” (2013, Jonathan Glazer), interpretada por Scarlett Johansson, sente – ou que pensa sentir, ou que nós pensamos que ela sente. Isso porque a pena, não sendo nem de longe o sentimento mais incômodo – basta que pensemos no amor, que, em determinados momentos, chega a doer – é, sem dúvida, um dos sentimentos mais genuinamente humanos de que consigo me lembrar. Explico:
Tomemos a tristeza como exemplo de comparação. Ela, a tristeza, pode ser pensada como legitimamente “humana” no sentido que nós, humanos, a identificamos como tal (nos sentimos tristes, denominamos uma coisa qualquer de tristeza, etc). No entanto, se pensarmos na tristeza como uma espécie de dor no “espírito”, ou como quer que se chame isto dentro de nós, e levando em conta que corpo e espírito são um tanto indissociáveis, então ela entra na mesma categoria da dor física. E esta, a dor física, é amplamente compreendida por outras espécies dotadas de vida, como os gatos e os canários.
O mesmo pode ser dito da alegria, da revolta, do sofrimento, da coragem, do prazer, e por aí vai. Quero dizer que estes são sentimentos que, por mais que se apresentem inseridos num amplo contexto de relações interpessoais, são realmente egoístas e autocentrados. Identificam-se e atuam sobre um “eu” que sente.
Com a pena, contudo, é diferente. Ela, por mais que se dê como um incômodo no íntimo de alguém, evidencia-se como plena capacidade de identificar-se com as mazelas do outro. O “eu” torna-se medida para um mundo fora de medida e tudo o que não identificamos como parelho a nós mesmos – como inferior a nós mesmos – torna-se digno de pena.
Sentir pena é legitimamente humano (e não faço qualquer juízo de valor quando digo isso), pois, para tal, é preciso que se reconheça no mundo uma ausência total de sentido, a tremenda injustiça – ou será a falta de qualquer dicotomia justiça/injustiça? – que a tudo governa, a plena infelicidade de estar vivo. Cria-se, logo, um distanciamento súbito da vida e do mundo. E, convenhamos, nada é mais humano do que esta falta de contato que sentimos em relação à natureza, ao que não conseguimos ou podemos controlar. A pena é, portanto, uma espécie de aceitação do absurdo da vida (mais ou menos consciente, é bem verdade), resignação com o mundo e percepção do outro como ser castigado pelo destino. Nenhum animal seria capaz de sentir pena, talvez algum tipo de piedade instintual, mas não pena.
A personagem principal, ao sentir pena do jovem deformado, o liberta do cruel destino que o aguarda – ou o condena a um destino ainda mais cruel. Seu gesto de piedade é instintual, como o dos animais, se assemelha ao gesto do tigre, que não come os macacos filhotes por qualquer motivo misterioso (há quem diga que o tigre “sabe” que se comer o macaco filhote, não haverá procriação e, portanto, outros macacos mais), mas a pena – o sentimento que motiva o gesto -, esta é prova incontornável de que ela já é humana, demasiadamente.
Os outros sentimentos, sentidos e assimilados ao longo do filme, por mais complexos que sejam, cumprem função mais a nível egoico: a ajudam na construção de um “eu” mais sólido, capaz de lidar com as próprias sutilezas e com as sutilezas do outro. Mas foi a pena que inaugurou essas duas instâncias de atuação, o “eu” e o “outro”.
Com mais ou menos sucesso, a personagem constrói-se a si, mas seu aspecto “alienígena” a impede de sentir-se completamente humana. Seu corpo, sua pele, é apenas envoltório. Ela continua a ser um alienígena por baixo daquela proteção epidérmica. E todos aqueles sentimentos – perguntam-me -, não foram suficientes? Não bastaram para que ela fosse humana?
Eu respondo às questões com outra pergunta: qual é a grande diferença entre eu, você, o jovem deformado e a alienígena atraente? No fim das contas, somos todos seres humanos-pela-metade, incompletos aqui e ali, incapazes de nos sentirmos completamente humanos, de o fazermos numa instância mais profunda do que a pele (ou mesmo na pele ainda, como creio ser o caso do tal jovem deformado). Todos nos unimos nessa incompletude e ela, inteira, é que nos faz humanos. Nesse caso, sim, basta o sentimento. Basta um início de pena, pelo outro, por si. Basta a percepção do início do sentimento, do início do eu e do outro. Ela, a alienígena, era mesmo humana, pois percebia a si mesma e ao outro. Sentia-se frágil, imperfeita, fora de lugar. Sentia.
Talvez, ser humano seja isso: sentir o incômodo que se aloja em qualquer lugar sob a pele.

“Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido – é o sentido” (C.L.)
 
Beatriz Reis é mestranda em Artes Visuais na UFRJ