O título-tema desta
nota me foi sugerido pelo editor da Folha. A mente paranóica, típica dos
acadêmicos, logo se viu cercada de perguntas prévias, a mais ameaçadora: o que
é ser de esquerda? Para me limitar a apenas um problema (e três páginas), resolvi
ignorá-la por ora. Apostei: todo mundo sabe o que é ser de esquerda, o difícil
é dizer. Então, leitor, devolvo a decisão a você. Vou aqui apresentar uma
narrativa sobre esse experimento político centenário conhecido como estado do
bem-estar social, ou, por concisão, estado social, e você decide se é de
esquerda ou não.
A mais sugestiva metáfora para dar conta dessa invenção política foi concebida pelo pensador austro-húngaro Karl Polanyi, em seu livro sobre a violenta gênese do capitalismo moderno, A Grande Transformação. O livro escrito em 1944, quando tudo parecia dar errado, reflete o enigma do tempo: como chegamos até aqui?, quais as forças do caos? que antídotos possíveis? Entre os fios do enorme emaranhado, Polanyi puxa o capitalismo, a economia concorrencial de mercado que não conhece limites, visto por ele como um sistema que preside à mercantilização de tudo. Não apenas das coisas que produzimos e de que não necessitamos, mas também dos meios que utilizamos para as trocas, o dinheiro, e mais além, da própria natureza e, portanto, dos recursos de que nos valemos para produzir coisas que acontecem ser também o ambiente natural em que vivemos, e finalmente da própria substância humana das sociedades, quando o trabalho, atividade humana, deve ser vendido e comprado.
Financeirização, essa animização do dinheiro que o desvencilha da utilidade social, predação ambiental que desconhece valores não monetários, alienação e exploração do homem pelo homem, são patologias que decorrem da substituição das formas tradicionais de sociabilidade e solidariedade, familiares e comunais, pela forma mercado. Se ainda estivesse entre nós, Polanyi se espantaria das novas fronteiras da mercantilização, que coloniza emoções, formas de entendimento, linguagem, relações interpessoais, relações internacionais, necessidades, aspirações, órgãos do corpo humano, educação, saúde, cultura, semeando o domínio das normas e práticas sociais e das políticas de governo com a praga irreprimível dos incentivos monetários.
Voltando à metáfora, Polanyi observou então que esse movimento violento não se deu sem resistência, o que ele chamou de “autoproteção da sociedade”. Trata-se das tentativas sensatas, desesperadas, espontâneas, organizadas, violentas ou calmas, de violar o regime de mercado, e com graus variados de sucesso. A reação se deu de muitas maneiras, seja pela introdução de melhorias sociais por parte de governos temerosos de revoluções sociais, seja por respostas de governos a lutas dos trabalhadores e outros segmentos, e em várias intensidades, de forma politicamente organizada ou espontânea, se traduzindo em demandas sociais por e para grupos específicos ou mais abrangentes. As contestações se dirigiram ao Estado, âmbito possível, poder-equivalente, do contraponto ao mercado, disputando sua identidade e questionando sua responsividade.
Não se tratou então de repor o mundo perdido, de famílias estendidas e comunidades tradicionais e suas formas de hierarquia. Vários ideários socialistas, democráticos e não democráticos, tiveram sua gênese nesse movimento. Foi na esteira da reação autoprotetora da sociedade, de pressões pressentidas ou de fato sofridas, que emergiram no século XX as leis trabalhistas, os direitos à previdência e assistência, saúde, educação e cultura, a legislação ambiental, as regulamentações ao funcionamento do mercado, inclusive financeiro. O estado-Leviatã, da ordem a todo custo, é revogado por um estado social, novo patamar mínimo inegociável da vida em comum em uma sociedade de mercado. Estados sociais robustos, em contraposição a estados-poder, são também menos propensos a conflito aberto.
O estado social emerge então dessa contra-‘grande transformação’. Mas ele não foi e nem é um monolito. Em sua variedade na superfície do mundo, ele é maior ou menor, mais assistencial ou mais redistributivo, mais atento a manutenção de status diferenciados ou à universalização de condições entre os cidadãos. Essas que foram divisões definidoras da variedade existente de estados do bem-estar recobrem significados mais profundos. Não apenas reações variadas a reivindicações de solidariedade e igualdade, como também distintos ímpetos transformadores e emancipadores. Será ele apenas um apêndice das sociedades de mercado, buscando discipliná-las, ou conterá a semente da transformação em direção a novos horizontes de direitos e reconhecimento, novos sentidos de comunidade política?
Teremos, por razão de espaço, de deixar de lado a variedade de experiências realmente existentes e considerar aquelas que se aproximam do horizonte de possibilidades aberto pelo estado social. Refiro-me ao experimento levado a cabo nos países do norte da Europa. A partir de uma concepção ampla de estado do bem-estar, universalista e igualitário no que se refere a direitos políticos e sociais, cuja condição de recebimento é unicamente o pertencimento à comunidade política, mas cujas obrigações de moralidade pública ultrapassam esse âmbito (são os países que no geral mais doam recursos a países pobres e os que mais recebem imigrantes), esses países se notabilizam por vários sucessos. E também por nos fazer vislumbrar novos problemas de sociabilidade e provocar nossa imaginação.
Entre os sucessos estão os menores níveis de desigualdade econômica e social do mundo conhecido, a eliminação da pobreza absoluta e os menores níveis de pobreza relativa. Estão também os melhores indicadores de equidade de gênero (a mais equilibrada divisão de trabalho pago e não pago entre homens e mulheres) e respeito e reconhecimento de diferenças (são países onde o casamento gay, no civil e no religioso, é reconhecido), e também as maiores realizações em sustentabilidade ambiental. Helsinque é uma cidade que se projeta hoje para um futuro sem automóvel. Copenhagen, uma cidade em que metade dos habitantes se desloca em ciclovias. Os indicadores de qualidade da democracia e satisfação com o trabalho também se destacam. A combinação de intensa participação e densa representação nessas democracias faz com que sejam os países com a menor incidência de poder despótico do Estado e maior experimentação na concepção de políticas públicas. É elevado o grau de associativismo, o mais alto do continente europeu. A satisfação do trabalho, em parte, corresponde ao inovador experimento de autonomia dos trabalhadores no que diz respeito a decisões relevantes no processo de trabalho, que caracteriza mais da metade dos empregos industriais dinamarqueses. Em parte, à forte densidade sindical.
Centenas de instituições públicas conspiram em favor desses resultados e certamente também uma cultura pública que as revigora e secunda, que não nasceu pronta, mas decantou da longa experiência, e teve origem em deliberada engenharia política, concebida e conduzida pela socialdemocracia. Na origem, o compromisso era cobrir a maior quantidade possível -- com a maior generosidade possível e para a maior comunidade possível -- dos riscos sociais a que se expõem os cidadãos em uma sociedade de mercado, entremeando as vidas de todos por vínculos solidários, na contramão da mercantilização. Essa cobertura é assegurada por pesada tributação, com alta progressividade. Na prática, isso tem significado a socialização de boa parte da riqueza gerada nesses países, bem como a socialização do consumo, sob a forma do consumo conjunto de bens públicos como escolas, hospitais, postos de saúde, museus, parques, transporte coletivo. A resultante socialização democrática de riqueza e consumo (mais consumo público que privado) e acomodação de múltiplas formas de vida repercutem a ambição de encontrar uma espécie de quadratura do círculo: igualdade, liberdade, democracia, bem-estar, sustentabilidade, reconhecimento, comunidade.
Na competição por mundos sociais alternativos, o estado do bem-estar social democrata é competidor sério, com a vantagem, em relação a experimentos já realizados, de enfrentar aspiração mais difícil e por isso mais valiosa: a conciliação de valores caros, no sentido não mercantil do termo, e a abertura para desafios e exercício permanente da imaginação.
A mais sugestiva metáfora para dar conta dessa invenção política foi concebida pelo pensador austro-húngaro Karl Polanyi, em seu livro sobre a violenta gênese do capitalismo moderno, A Grande Transformação. O livro escrito em 1944, quando tudo parecia dar errado, reflete o enigma do tempo: como chegamos até aqui?, quais as forças do caos? que antídotos possíveis? Entre os fios do enorme emaranhado, Polanyi puxa o capitalismo, a economia concorrencial de mercado que não conhece limites, visto por ele como um sistema que preside à mercantilização de tudo. Não apenas das coisas que produzimos e de que não necessitamos, mas também dos meios que utilizamos para as trocas, o dinheiro, e mais além, da própria natureza e, portanto, dos recursos de que nos valemos para produzir coisas que acontecem ser também o ambiente natural em que vivemos, e finalmente da própria substância humana das sociedades, quando o trabalho, atividade humana, deve ser vendido e comprado.
Financeirização, essa animização do dinheiro que o desvencilha da utilidade social, predação ambiental que desconhece valores não monetários, alienação e exploração do homem pelo homem, são patologias que decorrem da substituição das formas tradicionais de sociabilidade e solidariedade, familiares e comunais, pela forma mercado. Se ainda estivesse entre nós, Polanyi se espantaria das novas fronteiras da mercantilização, que coloniza emoções, formas de entendimento, linguagem, relações interpessoais, relações internacionais, necessidades, aspirações, órgãos do corpo humano, educação, saúde, cultura, semeando o domínio das normas e práticas sociais e das políticas de governo com a praga irreprimível dos incentivos monetários.
Voltando à metáfora, Polanyi observou então que esse movimento violento não se deu sem resistência, o que ele chamou de “autoproteção da sociedade”. Trata-se das tentativas sensatas, desesperadas, espontâneas, organizadas, violentas ou calmas, de violar o regime de mercado, e com graus variados de sucesso. A reação se deu de muitas maneiras, seja pela introdução de melhorias sociais por parte de governos temerosos de revoluções sociais, seja por respostas de governos a lutas dos trabalhadores e outros segmentos, e em várias intensidades, de forma politicamente organizada ou espontânea, se traduzindo em demandas sociais por e para grupos específicos ou mais abrangentes. As contestações se dirigiram ao Estado, âmbito possível, poder-equivalente, do contraponto ao mercado, disputando sua identidade e questionando sua responsividade.
Não se tratou então de repor o mundo perdido, de famílias estendidas e comunidades tradicionais e suas formas de hierarquia. Vários ideários socialistas, democráticos e não democráticos, tiveram sua gênese nesse movimento. Foi na esteira da reação autoprotetora da sociedade, de pressões pressentidas ou de fato sofridas, que emergiram no século XX as leis trabalhistas, os direitos à previdência e assistência, saúde, educação e cultura, a legislação ambiental, as regulamentações ao funcionamento do mercado, inclusive financeiro. O estado-Leviatã, da ordem a todo custo, é revogado por um estado social, novo patamar mínimo inegociável da vida em comum em uma sociedade de mercado. Estados sociais robustos, em contraposição a estados-poder, são também menos propensos a conflito aberto.
O estado social emerge então dessa contra-‘grande transformação’. Mas ele não foi e nem é um monolito. Em sua variedade na superfície do mundo, ele é maior ou menor, mais assistencial ou mais redistributivo, mais atento a manutenção de status diferenciados ou à universalização de condições entre os cidadãos. Essas que foram divisões definidoras da variedade existente de estados do bem-estar recobrem significados mais profundos. Não apenas reações variadas a reivindicações de solidariedade e igualdade, como também distintos ímpetos transformadores e emancipadores. Será ele apenas um apêndice das sociedades de mercado, buscando discipliná-las, ou conterá a semente da transformação em direção a novos horizontes de direitos e reconhecimento, novos sentidos de comunidade política?
Teremos, por razão de espaço, de deixar de lado a variedade de experiências realmente existentes e considerar aquelas que se aproximam do horizonte de possibilidades aberto pelo estado social. Refiro-me ao experimento levado a cabo nos países do norte da Europa. A partir de uma concepção ampla de estado do bem-estar, universalista e igualitário no que se refere a direitos políticos e sociais, cuja condição de recebimento é unicamente o pertencimento à comunidade política, mas cujas obrigações de moralidade pública ultrapassam esse âmbito (são os países que no geral mais doam recursos a países pobres e os que mais recebem imigrantes), esses países se notabilizam por vários sucessos. E também por nos fazer vislumbrar novos problemas de sociabilidade e provocar nossa imaginação.
Entre os sucessos estão os menores níveis de desigualdade econômica e social do mundo conhecido, a eliminação da pobreza absoluta e os menores níveis de pobreza relativa. Estão também os melhores indicadores de equidade de gênero (a mais equilibrada divisão de trabalho pago e não pago entre homens e mulheres) e respeito e reconhecimento de diferenças (são países onde o casamento gay, no civil e no religioso, é reconhecido), e também as maiores realizações em sustentabilidade ambiental. Helsinque é uma cidade que se projeta hoje para um futuro sem automóvel. Copenhagen, uma cidade em que metade dos habitantes se desloca em ciclovias. Os indicadores de qualidade da democracia e satisfação com o trabalho também se destacam. A combinação de intensa participação e densa representação nessas democracias faz com que sejam os países com a menor incidência de poder despótico do Estado e maior experimentação na concepção de políticas públicas. É elevado o grau de associativismo, o mais alto do continente europeu. A satisfação do trabalho, em parte, corresponde ao inovador experimento de autonomia dos trabalhadores no que diz respeito a decisões relevantes no processo de trabalho, que caracteriza mais da metade dos empregos industriais dinamarqueses. Em parte, à forte densidade sindical.
Centenas de instituições públicas conspiram em favor desses resultados e certamente também uma cultura pública que as revigora e secunda, que não nasceu pronta, mas decantou da longa experiência, e teve origem em deliberada engenharia política, concebida e conduzida pela socialdemocracia. Na origem, o compromisso era cobrir a maior quantidade possível -- com a maior generosidade possível e para a maior comunidade possível -- dos riscos sociais a que se expõem os cidadãos em uma sociedade de mercado, entremeando as vidas de todos por vínculos solidários, na contramão da mercantilização. Essa cobertura é assegurada por pesada tributação, com alta progressividade. Na prática, isso tem significado a socialização de boa parte da riqueza gerada nesses países, bem como a socialização do consumo, sob a forma do consumo conjunto de bens públicos como escolas, hospitais, postos de saúde, museus, parques, transporte coletivo. A resultante socialização democrática de riqueza e consumo (mais consumo público que privado) e acomodação de múltiplas formas de vida repercutem a ambição de encontrar uma espécie de quadratura do círculo: igualdade, liberdade, democracia, bem-estar, sustentabilidade, reconhecimento, comunidade.
Na competição por mundos sociais alternativos, o estado do bem-estar social democrata é competidor sério, com a vantagem, em relação a experimentos já realizados, de enfrentar aspiração mais difícil e por isso mais valiosa: a conciliação de valores caros, no sentido não mercantil do termo, e a abertura para desafios e exercício permanente da imaginação.