Rachel Soihet é professora do departamento de
História da UFF. É uma das mais importantes historiadoras da cultura do Brasil.
Entre os assuntos que já discutiu, destacam-se a história das mulheres e a
história do samba. Publicou diversos livros, como Feminismos e antifenismos
(2013), A subversão pelo riso (1998) e Condição Feminina e formas de violência
(1989)
As
contribuições recíprocas decorrentes da explosão do feminismo e das
transformações na historiografia, a partir da década de 1960, foram
fundamentais na emergência da História das Mulheres. Nesse sentido,
ressaltam-se as contribuições da História Social, da História das Mentalidades
e, posteriormente, da História Cultural, articuladas ao crescimento da
antropologia, que tiveram papel decisivo nesse processo, em que as mulheres são
alçadas à condição de objeto e sujeito da História. Fato relevante, se considerarmos
a despreocupação da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a
participação diferenciada dos dois sexos, já que polarizada para um sujeito
humano universal.
A
partir da década de 1970, “gênero” tem sido o termo usado para teorizar a
questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas
americanas, sendo inúmeras as suas contribuições. A ênfase no caráter
fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas no sexo, afastando o
fantasma da naturalização; a precisão emprestada à idéia de assimetria e de
hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das
relações de poder; o relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os
homens, ou seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia
existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado,
constituem - se em algumas dessas contribuições. Acresce-se a significação,
emprestada por esses estudos, à articulação do gênero com a classe e a
raça/etnia. Interesse indicativo não apenas do compromisso com a inclusão da
fala dos oprimidos, como da convicção de que as desigualdades de poder se
organizam, no mínimo, conforme estes três eixos.
Todas
essas reflexões das mais fecundas não excluíram, nos primeiros tempos, críticas
à continuidade nos estudos de gênero dos dualismos, especialmente, da divisão
binária da humanidade, a partir das construções baseadas no sexo. Reflexões e
pesquisas se desenvolveram com vista a
ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização de uma categoria que
tem como referência a diferença sexual quando as discussões ‘politicamente
corretas’ passaram a exigir, cada vez mais privilegiar outras marcas na
explicação das desigualdades. Uma proposta seria partir de uma perspectiva
pluralista, considerando-se uma multiplicidade identitária. A difusão desses
referenciais teóricos contribuiu para a abertura de linhas de pesquisa e
reflexão sobre gênero não centradas nas mulheres. Ressalte-se a produção de
estudos sobre masculinidade e, também, os estudos queer, para os quais a obra
de Butler é altamente inspiradora[i].
A
polêmica entre Joan Scott e as historiadoras Louise Tilly e Eleni Varikas
oferece um panorama da pluralidade de concepções acerca da questão do gênero.
Ao reforçar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gênero,
buscando a utilização de formulações teóricas, Scott afirma a impossibilidade
de uma tal conceitualização efetuar-se no domínio da história social, segundo
ela, marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade de utilizar-se
uma “epistemologia mais radical”, encontrada, segundo ela, no âmbito do
pós-estruturalismo, particularmente, em certas abordagens associadas a Michel
Foucault e Jacques Derrida, capazes de fornecer ao feminismo uma perspectiva
analítica poderosa. Nesse sentido, segundo Scott, os estudos sobre gênero devem
apontar para a necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente da oposição
binária "masculino versus feminino" e a importância de sua
historicização e "desconstrução" nos termos de Jacques Derrida -
revertendo-se e deslocando-se a construção hierárquica, em lugar de aceitá-la
como óbvia ou como estando na natureza das coisas[ii].
Louise
Tilly contrapõe-se a tal postura, com o que concorda Eleni Varikas, ao afirmar
que a vontade política de conceder às mulheres o estatuto de sujeitos da
história contribuiu para o encontro das historiadoras feministas com as
experiências históricas das mulheres. E, para muitas, este encontro teve lugar
no terreno da história social, do que resultaram análises notáveis de relações
entre gênero e classes sociais. Desse modo, as críticas formuladas por Joan
Scott contra a história social, quanto à marginalização das experiências
femininas, a redução do gênero a um subproduto das forças econômicas, a
indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na cultura e
na ideologia política foi, segundo Varikas, precisamente o que desapareceu nas
tentativas bem sucedidas de re-escrita feminista da história. Também, Tilly e
Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao potencial de epistemologias situadas
no âmbito do pós-estruturalismo para elaborar uma visão não determinista da
história e uma visão das mulheres como sujeitos da história[iii].
Critica,
porém, Varikas as restrições de Tilly ao que denomina “uso mais literário e
filosófico do gênero”, atentando para a importância de se refletir com mais
precisão, acerca da influência do paradigma lingüístico sobre a história das
mulheres. Acentua Varikas a importância das abordagens no âmbito da história
das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado para a
análise das representações, dos discursos normativos, do imaginário coletivo;
as quais chamaram a atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos do
masculino e do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as
mulheres puderam re-interpretar e re-elaborar suas significações. E os estudos
feministas não esperaram o pós-estruturalismo para sublinhar a importância das
representações e dos sistemas simbólicos na análise e na compreensão da
construção do gênero e das relações sociais que os sustentam.
Ainda,
Scott propõe a política como domínio de utilização do gênero para análise
histórica. Justifica a escolha da política e do poder no seu sentido mais
tradicional, no que diz respeito ao governo e ao Estado Nação. Especialmente,
porque a história política teria se constituído na trincheira de resistência à
inclusão de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero, vistos como
categoria de oposição aos negócios sérios da verdadeira política. Acredita que
o aprofundamento da análise dos diversos usos do gênero para justificativa ou
explicação de posições de poder fará emergir uma nova história que oferecerá
novas perspectivas às velhas questões; redefinirá as antigas questões em termos
novos - introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a
sexualidade no estudo da economia e da guerra. Tornará as mulheres visíveis
como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a
linguagem aparentemente fixada do passado e a nossa própria terminologia. Além
do mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre as
atuais estratégias feministas e o futuro utópico.
A
análise de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições das mais
inovadoras no terreno teórico, como no do próprio conhecimento histórico.
Considero, porém, que, a partir do modelo de análise proposto, alguns elementos
essenciais ao desvendamento da atuação concreta das mulheres tornam-se
dificilmente perceptíveis. Importa, portanto, examinar contribuições de outras
historiadoras, entre elas Michelle Perrot e Arlette Farge que, com esse
objetivo, não se limitam a abordar o domínio público. Recorrem a outras
esferas, como o cotidiano, no afã de trazer à tona as contribuições femininas.
Nessa
perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar às mulheres nos domínios nos
quais ocorria maior evidência de participação feminina. Os estudos sobre a
sociabilidade feminina que deram lugar a importantes trabalhos sobre o
lavadouro, o forno, o mercado, a casa, assim como os estudos sobre os tempos
marcantes da vida, tomando como objetos o nascimento, o casamento e a morte são
destacados. Daí não se aterem unicamente à esfera pública - objeto exclusivo,
por largo tempo, do interesse dos historiadores impregnados do positivismo e de
condicionamentos sexistas. Explica-se, assim, a emergência do privado e do
cotidiano, nos quais emergem com toda força a presença dos segmentos
subalternos e das mulheres. Longe está o
político, porém, de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem
múltiplas relações de poder.
Tais
historiadoras evitam o binômio dominação/subordinação como terreno único de
confronto. Apesar da dominação masculina, a atuação feminina não deixa de se
fazer sentir, através de complexos contra-poderes: poder maternal, poder
social, poder sobre outras mulheres e "compensações" no jogo da
sedução e do reinado feminino. Sua proposta metodológica é estudar o privado e
o público como uma unidade, assaz renovadora frente ao enfoque tradicional
"privado versus público".
Advertem
as pesquisadoras que tais conclusões, acerca dos poderes femininos, não devem,
porém dar lugar a enganos, em termos de uma perspectiva conciliadora, de
justaposição de culturas, ao mesmo tempo plurais e complementares,
esquecendo-se da violência e da desigualdade que marcam a relação entre os
sexos. Inúmeros exemplos são apresentados, assinalando-se a presença da
complementaridade na divisão sexual das tarefas, o que não exclui uma
hierarquização dos papéis exercidos por homens e mulheres. Assim, reiteram a
existência da dominação masculina, instrumento indispensável para captar a
lógica do conjunto de todas as relações sociais. Entretanto, na perspectiva que
adotam, a “dominação masculina” não é mais uma constante sobre a qual toda
reflexão tropeçaria, mas a expressão de uma relação social desigual que pode
desvendar engrenagens e marcar especificidades de diferentes sistemas históricos[iv].
Voltando
à proposta de Scott, esta não abre espaço para que emerjam as diversas
sutilezas presentes nas relações entre os sexos, das quais não estão ausentes
as alianças e consentimentos por parte das mulheres. Nesse particular são muito
adequadas as considerações de Roger Chartier, pautado em Pierre Bourdieu, que destaca na dominação masculina
o peso do aspecto simbólico, que supõe a adesão dos dominados às categorias que
embasam sua dominação. Utiliza-se Chartier do conceito de violência simbólica
que ajuda a compreender como a relação de dominação - que é uma relação
historica, cultural e linguisticamente construída - é sempre afirmada como uma
diferença de ordem natural, radical, irredutivel, universal. Outrossim, alerta
Chartier, uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações
e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a aceitação pelas
mulheres de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma
submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam
deslocar ou subverter a relação de dominação. As fissuras à dominação masculina
não assumem, via de regra, a forma de rupturas espetaculares, nem se expressam
sempre num discurso de recusa ou rejeição. Definir os poderes femininos
permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa
entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que
instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador.
A
noção de resistência torna-se, dessa forma, fundamental nas abordagens sobre as
mulheres, revelando sua presença e atuação no seio de uma história construída
pelos homens, com vistas a reagir à opressão que sobre elas incide.
Historiadoras, como aquelas mais uma vez citadas, M. Perrot, Natalie Davis, A
Farge, Silva Dias, eu própria, têm se baseado nesse referencial na obtenção de
pistas que possibilitem a reconstrução da experiência concreta das mulheres em
sociedade, que no processo relacional complexo e contraditório com os homens
têm desempenhado um papel ativo na criação de sua própria história.
Importa
esclarecer que tais observações não visam excluir a abordagem das mulheres do
terreno da política formal, sem dúvida da maior importância no estudo da
movimentação feminina, na luta por direitos e de sua participação como sujeitos
na sociedade. Afinal penetrar na esfera pública foi um velho anseio por longo
tempo vedado às mulheres. Passavam as mulheres, segundo Hannah Arendt, a
garantir sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não
pode ser construído apenas para uma
geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração
da vida dos homens mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres
mortais.
[i]
NAVARRO-SWAIN, Tânia. “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do
nomadismo identitário?” Textos de
História. Brasília: UnB, vol.8, n.1/ 2 p. 47-84.
[ii] SCOTT, Joan W.”Prefácio a Gender
and Politics of History” Cadernos Pagu (3)1994: pp.11-26.
[iii]
TILLY, Louise A.”Gênero, História das Mulheres e História Social” e VARIKAS,
Eleni. “Gênero, Experiência e Subjetividade: a propósito do desacordo
Tilly-Scott” Op. Cit. pp.29-62 e 63-84.
[iv] FARGE,
Arlette, PERROT, Michelle et allii. “A História das
Mulheres. Cultura e Poder das Mulheres: Ensaio de Historiografia” Gênero. Revista do Núcleo Transdisciplinar de
Estudos de Gênero – NUTEG. V2, n.1. Niterói: EdUFF, 2000, PP.7-30.
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