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domingo, 8 de junho de 2014

História das Mulheres e Relações de Gênero: debatendo algumas questões - Rachel Soihet

Rachel Soihet é professora do departamento de História da UFF. É uma das mais importantes historiadoras da cultura do Brasil. Entre os assuntos que já discutiu, destacam-se a história das mulheres e a história do samba. Publicou diversos livros, como Feminismos e antifenismos (2013), A subversão pelo riso (1998) e Condição Feminina e formas de violência (1989)

As contribuições recíprocas decorrentes da explosão do feminismo e das transformações na historiografia, a partir da década de 1960, foram fundamentais na emergência da História das Mulheres. Nesse sentido, ressaltam-se as contribuições da História Social, da História das Mentalidades e, posteriormente, da História Cultural, articuladas ao crescimento da antropologia, que tiveram papel decisivo nesse processo, em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História. Fato relevante, se considerarmos a despreocupação da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a participação diferenciada dos dois sexos, já que polarizada para um sujeito humano universal.
A partir da década de 1970, “gênero” tem sido o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas, sendo inúmeras as suas contribuições. A ênfase no caráter fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a precisão emprestada à idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; o relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado, constituem - se em algumas dessas contribuições. Acresce-se a significação, emprestada por esses estudos, à articulação do gênero com a classe e a raça/etnia. Interesse indicativo não apenas do compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da convicção de que as desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme estes três eixos.
Todas essas reflexões das mais fecundas não excluíram, nos primeiros tempos, críticas à continuidade nos estudos de gênero dos dualismos, especialmente, da divisão binária da humanidade, a partir das construções baseadas no sexo. Reflexões e pesquisas  se desenvolveram com vista a ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização de uma categoria que tem como referência a diferença sexual quando as discussões ‘politicamente corretas’ passaram a exigir, cada vez mais privilegiar outras marcas na explicação das desigualdades. Uma proposta seria partir de uma perspectiva pluralista, considerando-se uma multiplicidade identitária. A difusão desses referenciais teóricos contribuiu para a abertura de linhas de pesquisa e reflexão sobre gênero não centradas nas mulheres. Ressalte-se a produção de estudos sobre masculinidade e, também, os estudos queer, para os quais a obra de Butler é altamente inspiradora[i]
A polêmica entre Joan Scott e as historiadoras Louise Tilly e Eleni Varikas oferece um panorama da pluralidade de concepções acerca da questão do gênero. Ao reforçar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de formulações teóricas, Scott afirma a impossibilidade de uma tal conceitualização efetuar-se no domínio da história social, segundo ela, marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade de utilizar-se uma “epistemologia mais radical”, encontrada, segundo ela, no âmbito do pós-estruturalismo, particularmente, em certas abordagens associadas a Michel Foucault e Jacques Derrida, capazes de fornecer ao feminismo uma perspectiva analítica poderosa. Nesse sentido, segundo Scott, os estudos sobre gênero devem apontar para a necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente da oposição binária "masculino versus feminino" e a importância de sua historicização e "desconstrução" nos termos de Jacques Derrida - revertendo-se e deslocando-se a construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza das coisas[ii].
Louise Tilly contrapõe-se a tal postura, com o que concorda Eleni Varikas, ao afirmar que a vontade política de conceder às mulheres o estatuto de sujeitos da história contribuiu para o encontro das historiadoras feministas com as experiências históricas das mulheres. E, para muitas, este encontro teve lugar no terreno da história social, do que resultaram análises notáveis de relações entre gênero e classes sociais. Desse modo, as críticas formuladas por Joan Scott contra a história social, quanto à marginalização das experiências femininas, a redução do gênero a um subproduto das forças econômicas, a indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na cultura e na ideologia política foi, segundo Varikas, precisamente o que desapareceu nas tentativas bem sucedidas de re-escrita feminista da história. Também, Tilly e Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao potencial de epistemologias situadas no âmbito do pós-estruturalismo para elaborar uma visão não determinista da história e uma visão das mulheres como sujeitos da história[iii].
Critica, porém, Varikas as restrições de Tilly ao que denomina “uso mais literário e filosófico do gênero”, atentando para a importância de se refletir com mais precisão, acerca da influência do paradigma lingüístico sobre a história das mulheres. Acentua Varikas a importância das abordagens no âmbito da história das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado para a análise das representações, dos discursos normativos, do imaginário coletivo; as quais chamaram a atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos do masculino e do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres puderam re-interpretar e re-elaborar suas significações. E os estudos feministas não esperaram o pós-estruturalismo para sublinhar a importância das representações e dos sistemas simbólicos na análise e na compreensão da construção do gênero e das relações sociais que os sustentam. 
Ainda, Scott propõe a política como domínio de utilização do gênero para análise histórica. Justifica a escolha da política e do poder no seu sentido mais tradicional, no que diz respeito ao governo e ao Estado Nação. Especialmente, porque a história política teria se constituído na trincheira de resistência à inclusão de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero, vistos como categoria de oposição aos negócios sérios da verdadeira política. Acredita que o aprofundamento da análise dos diversos usos do gênero para justificativa ou explicação de posições de poder fará emergir uma nova história que oferecerá novas perspectivas às velhas questões; redefinirá as antigas questões em termos novos - introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da guerra. Tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado e a nossa própria terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre as atuais estratégias feministas e o futuro utópico.
A análise de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições das mais inovadoras no terreno teórico, como no do próprio conhecimento histórico. Considero, porém, que, a partir do modelo de análise proposto, alguns elementos essenciais ao desvendamento da atuação concreta das mulheres tornam-se dificilmente perceptíveis. Importa, portanto, examinar contribuições de outras historiadoras, entre elas Michelle Perrot e Arlette Farge que, com esse objetivo, não se limitam a abordar o domínio público. Recorrem a outras esferas, como o cotidiano, no afã de trazer à tona as contribuições femininas.
Nessa perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar às mulheres nos domínios nos quais ocorria maior evidência de participação feminina. Os estudos sobre a sociabilidade feminina que deram lugar a importantes trabalhos sobre o lavadouro, o forno, o mercado, a casa, assim como os estudos sobre os tempos marcantes da vida, tomando como objetos o nascimento, o casamento e a morte são destacados. Daí não se aterem unicamente à esfera pública - objeto exclusivo, por largo tempo, do interesse dos historiadores impregnados do positivismo e de condicionamentos sexistas. Explica-se, assim, a emergência do privado e do cotidiano, nos quais emergem com toda força a presença dos segmentos subalternos e das mulheres.  Longe está o político, porém, de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem múltiplas relações de poder.
Tais historiadoras evitam o binômio dominação/subordinação como terreno único de confronto. Apesar da dominação masculina, a atuação feminina não deixa de se fazer sentir, através de complexos contra-poderes: poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e "compensações" no jogo da sedução e do reinado feminino. Sua proposta metodológica é estudar o privado e o público como uma unidade, assaz renovadora frente ao enfoque tradicional "privado versus público".
Advertem as pesquisadoras que tais conclusões, acerca dos poderes femininos, não devem, porém dar lugar a enganos, em termos de uma perspectiva conciliadora, de justaposição de culturas, ao mesmo tempo plurais e complementares, esquecendo-se da violência e da desigualdade que marcam a relação entre os sexos. Inúmeros exemplos são apresentados, assinalando-se a presença da complementaridade na divisão sexual das tarefas, o que não exclui uma hierarquização dos papéis exercidos por homens e mulheres. Assim, reiteram a existência da dominação masculina, instrumento indispensável para captar a lógica do conjunto de todas as relações sociais. Entretanto, na perspectiva que adotam, a “dominação masculina” não é mais uma constante sobre a qual toda reflexão tropeçaria, mas a expressão de uma relação social desigual que pode desvendar engrenagens e marcar especificidades de diferentes  sistemas históricos[iv].
Voltando à proposta de Scott, esta não abre espaço para que emerjam as diversas sutilezas presentes nas relações entre os sexos, das quais não estão ausentes as alianças e consentimentos por parte das mulheres. Nesse particular são muito adequadas as considerações de Roger Chartier, pautado em Pierre  Bourdieu, que destaca na dominação masculina o peso do aspecto simbólico, que supõe a adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação. Utiliza-se Chartier do conceito de violência simbólica que ajuda a compreender como a relação de dominação - que é uma relação historica, cultural e linguisticamente construída - é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutivel, universal. Outrossim, alerta Chartier, uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a aceitação pelas mulheres de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação. As fissuras à dominação masculina não assumem, via de regra, a forma de rupturas espetaculares, nem se expressam sempre num discurso de recusa ou rejeição. Definir os poderes femininos permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador.
A noção de resistência torna-se, dessa forma, fundamental nas abordagens sobre as mulheres, revelando sua presença e atuação no seio de uma história construída pelos homens, com vistas a reagir à opressão que sobre elas incide. Historiadoras, como aquelas mais uma vez citadas, M. Perrot, Natalie Davis, A Farge, Silva Dias, eu própria, têm se baseado nesse referencial na obtenção de pistas que possibilitem a reconstrução da experiência concreta das mulheres em sociedade, que no processo relacional complexo e contraditório com os homens têm desempenhado um papel ativo na criação de sua própria história.
Importa esclarecer que tais observações não visam excluir a abordagem das mulheres do terreno da política formal, sem dúvida da maior importância no estudo da movimentação feminina, na luta por direitos e de sua participação como sujeitos na sociedade. Afinal penetrar na esfera pública foi um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Passavam as mulheres, segundo Hannah Arendt, a garantir sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode ser construído  apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais. 

[i] NAVARRO-SWAIN, Tânia. “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitário?”  Textos de História. Brasília: UnB, vol.8, n.1/ 2 p. 47-84.
[ii] SCOTT, Joan W.”Prefácio a Gender and Politics of History” Cadernos Pagu (3)1994: pp.11-26.
[iii] TILLY, Louise A.”Gênero, História das Mulheres e História Social” e VARIKAS, Eleni. “Gênero, Experiência e Subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott” Op. Cit. pp.29-62 e 63-84.
[iv] FARGE, Arlette, PERROT, Michelle et allii. “A História das Mulheres. Cultura e Poder das Mulheres: Ensaio de Historiografia”  Gênero. Revista do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG. V2, n.1. Niterói: EdUFF, 2000, PP.7-30. 

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