Maria Elvira Díaz-Benítez é professora de Antropologia Social
no Museu Nacional/UFRJ. Dedica-se ao estudo de diversos temas ligados à
sexualidade, pesquisando temas como “Corpo e sexo bizarros”, identidade sexual,
além de articulações entre raça, classe, gênero, corpos e sexualidade. Entre os
livros que publicou, destacam-se Nas redes do sexo: Os bastidores do pornô
brasileiro (2010) e Prazeres dissidentes (2009), com C. Figari. As notas de
rodapé deste texto estão disponíveis no blog da Folha.
No dia que Antonio Kerstenetzky me convidou para escrever uma reflexão para a Folha do Gragoatá eu acabava de receber uma
mensagem de minha amiga Berenice Bento pelo Facebook. Ela me dizia: você viu
isso? E adicionava o link que levava a um depoimento da ex-atriz pornô
norte-americana Shelley Lubben “Roxy”: http://bit.ly/1blAckX.
Ao
longo desse dia a mesma notícia passou a ser compartilhada por diversas pessoas
na rede e um grande número de comentários veio à tona. A maioria deles
condenava a indústria pornográfica por ser um mercado que permite (e até
promove) o estupro das mulheres. Nisso havia um consenso: o pornô é ruim. Houve, contudo, um comentário dissidente: uma
atriz brasileira que se desempenhou ao redor de cinco anos na indústria e
afirmou nunca ter sido objeto de abusos. Seu depoimento virou alvo de respostas
do tipo “me engana que eu gosto” ou “acorda, menina, você foi abusada todo esse
tempo e não quer aceitar”. A julgar
pelas reações, não havia dúvida de que ninguém ali acreditava na possibilidade
de que uma mulher pudesse ter algum tipo de prazer ou de agência dentro desses
mundos, pois a ideia da opressão feminina intrínseca nesse trabalho ocupava
toda primazia no discurso do coletivo.
Isso
me fez lembrar as vezes que tenho sido interpelada em seminários e congressos
quando tenho apresentado minha etnografia sobre o universo de produção de
pornografia, acerca da “realidade” das mulheres. Elas gostam? O que elas acham
sobre essa carreira? Como é que elas se relacionam moralmente com essa
ocupação? Por que é que, realmente, elas ingressam? Grande parte de minha
pesquisa foi dirigida a responder alguns desses interrogantes. Eu apresentei
trajetórias onde a escolha das mulheres era evidente e onde a pornografia se
apresentava como um meio para a realização de alguns projetos pessoais, ou,
simplesmente, um meio de adquirir certos status sociais e estilos de vida
associados à juventude, a boemia, o hedonismo numa dinâmica que denominei Ética
do Instante. Nesses mundos, pude observar que as gramáticas do poder se
apresentavam de maneiras flexíveis e o suficientemente complexas como para
desafiar as noções básicas e estereotipadas de “mundos onde homens oprimem
mulheres”.
Contudo,
há um incómodo que me persegue e há um incómodo em algumas pessoas em relação a
meus argumentos. Estaria eu colocando tanta ênfase no prazer e a escolha ao
ponto de obliterar a possibilidade de, efetivamente, enxergar a violência que
pode estar acompanhando certas práticas e representações? Como entender a
denúncia da Roxy sem satanizar a indústria pornográfica e, ao mesmo tempo, sem
acreditar que queixas como aquelas são falsas ou produto de mulheres
arrependidas que encontraram os caminhos da “boa” moral e por isso empreendem
cruzadas contra seu passado, como forma de redenção?
Esta
é uma discussão de velha data que já protagonizou aquilo que ficou conhecido
como sex wars. O sexo foi o culpável para o movimento feminista
anti-pornográfico dos anos 70. Naquele momento, organizações como Women Against
Pornography (WAP), Feminist Fighting Pornography, a Nacional Coalition Against
Pornography, e a Women against violence in Pornography and Media atribuíram à
pornografia as causas da violência contra as mulheres, os crimes de misoginia,
a discriminação sexual e a propagação das desigualdades hierárquicas de gênero.
Para eles, a submissão das mulheres se evidenciaria ao serem representadas em
atos de humilhação, espancamentos, suplícios ou mostrando-as ajoelhadas fazendo
sexo oral, sexo com animais ou em todo tipo de cenas onde cabia ao corpo
feminino (ou efeminado, deve-se acrescentar) o lugar do violentado.
A
década dos oitenta, por sua vez, trouxe novas reflexões teóricas surgidas de
outros olhares feministas que criticaram a interpretação das anteriores.
Antropólogas como Carol Vance, Gayle Rubin e Pat Califia estariam na cabeceira
deste pensamento. Para elas, as
anti-pornografia ofereciam uma imagem simplificada do poder e uma visão rígida
dos gêneros gerada no determinismo da relação dominador-dominado. A nova
perspectiva desassocia a ideia da dominação e coerção como modelo único
relativo à sexualidade, e criticaria as restrições ao comportamento sexual das
mulheres que se colocaram nos posicionamentos das feministas radicais. Nesse
feminismo pró-sex (onde o sexo não era culpável de antemão) corpo, pornografia
e sexo poderiam ser lugares de resignificação política para mulheres e outras
minorias sexuais, e o prazer virou objeto de reflexão, assim como as maneiras
alternativas e as escolhas sexuais que levam a consegui-lo. Em poucas palavras, esta postura abriu
janelas preciosas para outras formas de interpretação do prazer, erotismo e
escolha.
Contudo,
um problema persistiria. Adiro-me à crítica feita pela antropóloga brasileira,
Maria Filomena Gregori, de que há de fato na bibliografia do “contra-ataque” um
não tratamento do problema da violência. Isto se deve, explica a autora, ao
fato de que grande parte da literatura relativa a estas vertentes do feminismo
se concentrou em enfatizar as práticas sexuais dentro do terreno do
lesbianismo. Tomando como ponto de partida o prazer feminino nas relações de
mulher a mulher, estes estudos dão por certo que o consentimento é garantido de
antemão e a violência e o perigo são transpostos para a arena dos prazeres.
Quer
dizer, o perigo não é (nem pode ser) tudo o que explique a sexualidade
feminina, mas o prazer, por si só, tampouco dá conta. Embora Carol Vance
argumentasse que o que caracteriza a vida sexual das mulheres é uma tensão –
citando “na vida sexual das mulheres a tensão entre o perigo sexual e o prazer
sexual é muito poderosa. A sexualidade é, por sua vez, um terreno de
constrangimento, de repressão e perigo, e um terreno de exploração, prazer e
atuação” – a ideia de tensão, nas análises, parecesse ter se convertido em uma
fronteira divisória mais do que em uma linha que une, de modo intricado, duas
pontas de um mesmo contínuo.
As
imagens do vídeo apresentado por Roxy são francamente chocantes. E se me
perguntassem se eu acredito que sejam reais, eu diria: sim. Mas não quero com isto dizer que o que se
esconde por trás da indústria pornográfica é o abuso e a violência como a
ex-atriz argumenta e como foi intitulada a matéria. Pornografia não é sinônimo
de maltrato e opressão contra a mulher. Contudo, a violência e o abuso podem
vir a acontecer. Como? Em meio daquilo
que eu venho denominando de fissura. Fissuras seriam aqueles instantes de
fronteira em que as emoções extrapolam o sentido dado de antemão às práticas,
são momentos em que, em meio a um ato sexual, transpassa-se do consentimento ao
abuso. As fissuras acontecem durante as
filmagens mesmas, naqueles instantes em que a pessoa (porque as fissuras não
são exclusivas das mulheres) sente em sua própria pele um certo medo, angústia
ou dor que não logrou prever no momento da negociação. Ou seja, houve consentimento, mas a prática
trouxe uma intensidade que não é possível de prever ou de antecipar e que rompe
com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que
evocam mais perigo do que prazer. A
fissura é a evidencia de que a prática extrapolou a expectativa da dor, é uma
fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna violência, embora logo a
fissura possa se refazer por meio da sociabilidade ou a amizade que envolve a
dinâmica de grupo nos sets de filmagem.
As
fissuras no pornô acontecem dentro de um ambiente controlado: certos excessos
nas práticas sexuais nessa indústria, especialmente aquelas que evocam fetiches
de dor e humilhação, fazem alusão a descontrole controlado, para usar os termos
de Featherstone. Trata-se de violências regradas onde são utilizadas técnicas
corporais para suportar a dor física, mas não por isso é menos violento. A
pornografia se baseia no exagero, e nesse tipo especifico de sexo duro se
testam os limites e nesse testar se produzem fissuras.
Assim,
fazer pornografia poderia ser entendido como um prazer perigoso tal como o
entende Gregori. Há práticas ali que
podem ser interpretadas como empreendimentos de risco, nos termos da mesma
autora. São situações e negociações
delicadas onde nada está resolvido nem garantido de antemão. Experiências que
se bem implicam prazer, operam simultaneamente com tensores que podem ser
transgressores dependendo da negociação, que por momentos podem ser paródicos e
que potencialmente podem se aproximar do abuso.
Agora,
no pornô nem sempre acontecem fissuras, e as fissuras não são exclusivas do
pornô. Elas também podem vir a acontecer em nosso leito, nos encontros sexuais
dos mais corriqueiros e longe do mercado. O mercado do sexo tampouco é culpável
ou perigoso de antemão assim como as sexualidades que evocam afetos e amor
romântico nem sempre são exclusivamente prazerosas.
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