Não deixe de nos seguir no facebook! www.facebook/afolhadogragoata

domingo, 8 de junho de 2014

Um breve suspiro sobre estereótipos de gênero e a contracultura queer - Juliana Streva

Juliana Streva é mestranda em Direito pela PUC. 


Os estereótipos de gênero podem ser compreendidos como a construção social que atribui comportamentos e características ao sexo feminino e masculino, em uma oposição binária entre homem e mulher, generalização ainda muito presente nos dias de hoje. Neste sentido, a mulher ainda é vista como uma pessoa sensível, frágil, cuidadosa, vaidosa, que dirige mal, que gosta de falar ao telefone e fofocar, sonha em se casar e ser mãe e que não deve ter uma liberdade sexual (vide xingamentos sexistas que visam reprimir tal tipo de comportamento - puta, vadia, etc). Já o homem, como um ser viril, forte, carismático, que joga futebol com os amigos, gosta de carro, cerveja e que sua liberdade sexual é tida como “mais do que natural” (é, não há xingamento algum referente a isto, pois não há repressão).
Esta fôrma comportamental gera e enraíza uma profunda intolerância e violência contra as pessoas que rompem com tais padrões segregadores e limitantes, sobretudo em relação às mulheres, que sofrem historicamente a opressão patriarcal - responsável por colocar o homem em uma condição privilegiada no seio social.
Mas, como muitos falam por aí, as mulheres já conquistaram espaço na sociedade, podem trabalhar fora de casa (receber menos que os homens), e até mesmo ser presidente (ainda se recusam o “presidenta”, mas a questão da linguagem é também para um outro momento). Afinal, qual seria então o sentido do movimento feminista: fazer com que as mulheres tenham acesso às estruturas inalteradas deste sistema patriarcal ou reformular essas estruturas de opressão?
Muito além de fazer parte deste sistema opressor, há o intuito de revolucionar a construção social de gênero (uma estrutura opressora), transgredindo suas categorias através da ressignificação do termo “feminino”, assim como do “masculino”, ou até mesmo a sua radical extinção. Estes termos passariam a ser entendidos como adjetivos e não mais categorias dos sexos, rompendo, portanto, com a lógica dual das oposições, recusando-se a alternativa da exclusão (ou, ou) em favor da inclusão (e, e).
Desta forma, o feminino transcende a alternativa dual do sexo e do gênero e pode ser assumido por homens e por mulheres, assim como o masculino. Como já firmado por Judith Butler, filósofa teórica de gênero e feminismo dos Estados Unidos, o sexo identificado social ou morfologicamente não é determinante (!).
Os pensamentos feministas foram responsáveis pelo desenvolvimento do movimento queer vinculado à revolução das identidades sexuais. O termo queer, antes tido como pejorativo e ofensivo, transforma-se em uma afirmação orgulhosa da multiplicidade. Este movimento permitiu o surgimento do camp, um fênomeno popular de contracultura produtor de estranhamento relativo às categorias como a feminilidade e a masculinidade, buscando a sua completa desnormatização.
No meio cinematográfico, esta contracultura se desvincula do cinema hegemônico - produtor e difusor de normatividade (cis e heteronormativa, ou seja, que promulga a visão padronizada de que as pessoas agem conforme o estereótipo de gênero relacionado ao seu sexo biológico, e se interessam sexualmente, em regra, por pessoas do gênero oposto) – e vai muito além do Bechdel Test, por exemplo.
Para quem não conhece, explico: é um teste no qual se apresenta três perguntas básicas, com o intuito de analisar a participação (mínima) de mulheres em filmes. As perguntas são: i) há mais de duas mulheres no filme, com nomes? ii) elas falam uma com a outra? iii) sobre algo que não seja um homem? Essas perguntas que beiram a máxima simplicidade e que se pensada para homens o “sim” para todas as perguntas seria mais do que evidente, acaba não sendo tão simples assim tendo em perspectiva as mulheres. Anita Sarkeesian, responsável pelo site Feminist Frequency, expõe que muitos dos filmes de grande bilheteria dos Estados Unidos não conseguem responder “sim” a estas três perguntas, como por exemplo, X Men, Pulp Fiction, grande parte do James Bond, todos da trilogia d'O senhor dos anéis, Shrek, Up, Clerks, Piratas do Caribe, M.I.B, Clube da Luta, etc etc etc.
Muito além disso, o cinema de contracultura é responsável por subverter a ordem hegemônica sexista. John Waters trouxe ao mundo, em 1972, uma ilustração icônica do camp com seu filme Pink Flamingos protagonizado pela drag queen Divine. Este filme, reconhecido até hoje como um dos mais trash, quiçá controversos, já produzidos, apresenta uma forma transgressora, irônica e cômica da sociedade. Juntamente com seu ulterior Female Trouble, produzido em 1974, Waters afronta a decência e toda a noção de bons costumes. Cabe destacar que, Judith Butler se baseou no título deste filme (Female Trouble), para intitular sua obra Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, mostrando o caminho de mão dupla entre a arte e a teoria de gênero.
Outra ilustração cinematográfica deste rompimento do cinema cis e heteronormativo é trazido com o clássico de 1975 Dog Day Afternoon, dirigido por Sidney Lumet. Este filme conta a história de um assalto a banco realizado pelo personagem homossexual, representado por Al Pacino. Ele, desempregado, (atenção: spoiler necessário) recorre ao crime para pagar operação de mudança de sexo de seu namorado. Este anti-herói consegue cativar a simpatia do público que torce por ele no desenrolar da trama e, ao mesmo tempo, torna visível uma questão pouquíssimo explorada e debatida pelo cinema e pela sociedade, até então.
Em 1980, influenciado pelos filmes de John Waters, o diretor Pedro Almodóvar apresenta o seu primeiro longa, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón. O filme apresenta personagens, com forte predominância de mulheres, que, em diversas situações, se rebelam contra a normatividade comportamental, demonstrando que toda performatividade social é passível de ridicularização. Almodóvar participa, desta forma, também do cenário subversido do camp através do absurdo, do grotesco, do descanso com a moral, em uma postura desafiadora e questionadora.
O movimento feminista queer extendeu o seu questionamento e o seu rompimento do sistema de repressão através do devir-minoritário por meios artísticos (como o cinematográfico mencionado, como também em outros campos artísticos, como o musical, com o glam rock de Bowie na fase andrógina e New York Dolls, com a pintura de Frida Kahlo e com os quadrinhos de Laerte, por exemplo), assim como também pelos meios acadêmico (com a já mencionada Butler, dentre outros e outras) e social (por exemplo, a marcha das vadias).
Afinal de contas, este movimento questionador que subverte o mecanismo de opressão, transforma a vida de qualquer pessoa em minoritária no sentido de permitir ao indivíduo ser múltiplo, amplo e o mais livre possível em sua performance, autodeterminação e identidade pessoal-social. Buscamos, assim, não mais repetir este modelo opressor, ignorante e intolerante de “estereótipos limitantes” ou se inserir nele, mas repensá-lo, questioná-lo e abrir espaço para a manifestação de toda a multidão que nos habita. E lá se foi o breve suspiro.


Butler, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, 1990.
Cultura Visual Queer, UnB. Link in: http://culturavisualqueer.wordpress.com/
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003.
Anita Sarkeesian, Feminist Frequency, Link in: http://www.feministfrequency.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário